A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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28 de fevereiro de 2009

Sistema Penal Restaurativo


“O sistema penal continua a representar o interesse de classes dominantes” (Marcelo Gonçalves Saliba, Promotor de Justiça (SP) e Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Estadual do Norte do Paraná. É Professor das Faculdades Integradas de Ourinhos e foi professor convidado da Faculdade de Direito do Norte Pioneiro e da Escola da Magistratura do Paraná. Autor da obra "Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo" - Editora Juruá).

1- Não é difícil constatar a crise do sistema penal vigente. Quais são as razões para essa crise?

R: A crise do sistema penal tem raízes na modernidade, uma vez que atendeu aos seus projetos, e o sistema penal (e também o Direito penal) tem importância central, ao fixar os projetos da modernidade, encontrando dentro da espiral da razão e ordem importância na sua manutenção, no controle social e dominação. Então, podemos observar que a diretriz dada ao sistema penal passou a representar interesses de classes/grupos dominantes, para mantença de seus interesses econômicos, principalmente. Esta é a principal crise enfrentada pelo sistema na atualidade: o sistema penal, passados séculos, continua a representar o interesse de classes.

2- Em sua dissertação de mestrado (que deu origem à obra), o Sr. assinala a seletividade exercida pelas polícias. O Sr. também afirma que a justiça penal, com fundamento na dogmática jurídica, empresta legitimidade àquela seletividade. Por que a justiça penal não consegue (ou não quer) quebrar essa seletividade? Por que, como se diz, “só pobre vai para a cadeira”?

R: Para muitas pessoas o problema está restrito ao “rico” não ser “preso”, quando em verdade devemos questionar o próprio sistema como um todo. Por qual motivo punir? Por qual motivo aprisionar? Por qual motivo incriminar determinada conduta e outra não? A seletividade, por mais estranho que pareça, faz parte da nossa vida social e sempre dou um simples exemplo: eu sou branco; tenho carro novo; uso roupas de acordo com “padrões normais” Jamais fui abordado em qualquer operação policial. Agora, se a abordagem se dá, preferencialmente, para determinados grupos, isso transmite a falsa ideia de que somente aquele grupo pratica condutas criminosas – determinados bairros em nossa cidade são constantemente objeto de operações policiais. O professor Pedro Bodê (UFPR) faz uma conclusão importante a respeito do assunto: a população aprisionada seria a prova inconteste da “periculosidade” das classes populares. A Justiça não quebra a seletividade por ter se construído com ela e lhe dado, até o presente, legitimidade. O “pobre” vai para a “cadeia” por causa do sistema penal moldado para “blindar” as classes dominantes e direcionar a atuação para as classes dominadas.

3- As leis penais brasileiras constantemente são criticadas, tanto que o Código de Processo Penal está em vias de ser substituído por uma nova codificação. O problema está mesmo nas leis ou na interpretação delas?

R: Nosso sistema legal e nosso sistema judicial necessitam de mudanças, sem dúvida alguma. Novas regras processuais agilizaram o processo penal e novas regras de investigação têm de ser implementadas. A falta de efetividade do sistema processual leva-o ao descrédito e, em última análise, à deslegitimidade. Os legisladores, “produtores” da leis, têm parcela nesta problemática. O intérprete, por sua vez, também é fonte produtora da problemática situação em que o sistema se encontra. Uma visão voltada para os interesses sociais e pessoais (dos seres humanos), em respeito aos envolvidos no conflito, poderia reduzir, em muito, as críticas direcionadas ao nosso sistema.

4- Há vontade política de mudar o sistema penal?

R: Não vislumbro vontade política para implantar um sistema penal diferente do atual, nem mesmo vejo propostas legislativas neste sentido. As propostas atuais navegam num rumo de maior criminalização e maior punição, seguindo linhas traçadas por programas de Lei e Ordem ou Tolerância Zero. Parcela significativa da população acredita ser este o único meio para o controle das relações sociais e eliminação da criminalidade, e as novas leis penais apaziguam os ânimos da mídia e das classes populares sedentas por uma forte resposta estatal.

5- O Sr. defende um novo modelo de justiça penal (justiça restaurativa), pacificador e não punitivo. Como seria esse modelo?

R: O objetivo do meu trabalho é discutir e apresentar um novo modelo de Justiça, voltado para o interesse das partes e das comunidades envolvidas no conflito. Respeitando princípios e regras, as partes são chamadas a debater e discutir a prática delitiva, e a finalidade do procedimento é a restauração. Pessoas capacitadas acompanham todo o procedimento, e o Judiciário pode ser chamado a intervir a qualquer momento. O magistrado dá lugar a um agente e a resposta sancionatória (punitiva) é apenas uma das possíveis respostas a serem aplicadas. Em suma, é um modelo de Justiça que deixa a estrutura forense para se relacionar com as comunidades; é um modelo de Justiça social. No Estado de São Paulo, mais precisamente na cidade de São Paulo, diversas Escolas municipais desenvolvem projetos de Justiça Restaurativa, e diversos países igualmente adotam o sistema. Não há abolição ou fim do sistema penal, mas uma proposta diversa para se tratar o problema.

FONTE: Jornal "Gazeta do Povo" - 26/02/09.

27 de fevereiro de 2009

Questões - Júri


Pode a defesa, na tréplica, inovar os fundamentos do pedido de absolvição, ou seja, defender uma tese que não foi exposta durante a exposição normal?

Entendo que, se a Defesa, durante a tréplica, defender uma tese que não foi exposta durante a exposição normal, haverá impreterivelmente violação ao princípio do contraditório, pois o Ministério Público não poderá combater tal tese in casu, o julgamento será nulo. Qual seria a solução processual, na sessão do júri, diante de tal situação processual, para se preservar o contraditório pleno, isto é, quando for sustentada tese nova na tréplica? O indeferimento da quesitação a respeito, a mesma solução, que vem sendo dada, em resposta a requerimento sobre matéria não-constante dos debates.

No mesmo sentido, a doutrina de Tourinho Filho: “pode a defesa, na tréplica, sustentar tese diversa da sustentada até então? A plenitude da defesa, obviamente, não pode chegar a esses exagerados extremos, até porque seria lesionado outro princípio constitucional, qual seja, o da contraditoriedade. Após a réplica, a acusação não mais terá oportunidade para manifestar-se” .

É a posição doutrinária dominante: (Hermínio A. Marques Porto, Damásio, Adriano Marrey, Dante Busana, entre Outros).

No mesmo sentido:

STJ: “Não há ilegalidade na decisão que não incluiu, nos quesitos a serem apresentados aos jurados, tese a respeito de homícidio privilegiado, se esta somente foi sustentada por ocasião da tréplica. É incabível a inovação de tese defensiva, na fase de tréplica, não ventilada antes em nenhuma fase do processo, sob pena de violação ao princípio do contraditório” (STJ, RESP 65.379/PR, p. 218).

‘Não pode o defensor, na tréplica, inovar apresentando tese não debatida na primeira fase, pois isto implicaria surpresa para o Promotor de Justiça e, portanto, cerceamento da acusação, violados os princípios do contraditório e da ampla defesa (acusação)’ (TJSP, Ap. no 300.671-3, São Paulo, 3o C., Rel. Walter Guilherme, m. v., JUBI no 54/01)”.

POSIÇÃO DIVERGENTE

Vicente Greco Filho defende a corrente amplamente minoritária da seguinte forma: “questiona-se se a defesa pode inovar na tréplica, ou seja, apresentar na tréplica tese até então não-constante dos autos. Ainda que isso possa causar surpresa para a acusação, a garantia da ampla defesa assegura que isso seja permitido. Esse expediente, porém, se estrategicamente pretendido pela defesa é muito perigoso, porque pode não haver tréplica se a acusação, na falta de argumento consistente da defesa, não faz a réplica, o que pode levar o réu a ser considerado indefeso”. É também a posição de Nucci, Dirceu De Mello e James Tubenchiak.

Pode o advogado dar testemunho pessoal de fatos, apresentando prova nova, inédita no feito, com surpresas à acusação?

Entendo que não. Na exposição, não pode o advogado dar testemunho pessoal de fatos, pois estaria apresentando prova nova, inédita no feito, com surpresas à acusação, com total afronto ao princípio ao princípio do contraditório.

No mesmo sentido:

“O defensor do réu que, em plenário, afirma fato duvidoso, de que tinha conhecimento pessoal, produzindo prova inédita no processo, determina, com sua atuação anômala, do ponto de vista de oportunidade de prova, grave irregularidade, que acarreta a nulidade do julgamento, por ficar a acusação posta na conjuntura de irremediável surpresa”.[1]

“O advogado que, ao defender o réu perante o Tribunal do Júri, atesta fatos, como testemunha pessoal do caso, e, assim, produz prova inédita do feito, determina, com sua atuação anômala, do ponto-de-vista de oportunidade de prova, grave irregularidade, que acarreta a nulidade do julgamento, por ficar a acusação posta na conjuntura de irremediável surpresa”.[2]

[1] RT no 780/636.
[2] RT no 607/275.

Por Francisco Dirceu de Barros, promotor de justiça, in Teoria e Prática do Novo Júri (Editora Campus).

26 de fevereiro de 2009

Interpretação Constitucional


Programa Espaço Forense da Rádio Justiça
Dr. André Ramos Tavares e Dr. Lênio Luiz Streck.




25 de fevereiro de 2009

Aniversário do Blog: 2 Anos!


Hoje este blog completa dois anos de existência. Iniciado a título de hobby ou passatempo, adquiriu status de significativo portal concentrador de temas ligados ao Direito, Literatura, Política e Filosofia - logicamente voltados ao aperfeiçoamento da atuação do nosso gradioso Ministério Público, mas não só.

Tudo isso graças a você, amigo(a) leitor(a).

Até agora, foram mais de 1.100 postagens; na medida do possível, uma por dia.

Modéstia à parte, o blog constitui grande fonte de pesquisa (textos, arestos, peças jurídicas, reportagens, dicas de livros, links etc.). Por força disto, pôde angariar a cifra de mais de 10.000 acessos mensais.

Como editor, continuarei buscando tempo e disposição com o desiderato de postar assuntos de interesse institucional et al. Para tanto, conto com as costumeiras contribuições, colocando, por conseguinte, este veículo à disposição dos ledores: projus@folha.com.br.

Relembrando o grande poeta: que seja eterno enquanto dure.

Abraço a todos.

César Danilo Ribeiro de Novais - Editor do Blog

Nota: vide mensagens acerca da primeira postagem e do primeiro aniversário.

24 de fevereiro de 2009

Oração


Que o Direito corra como a água e a Justiça como um rio caudaloso!

Fonte: Bíblia - Amós, 5:24.

23 de fevereiro de 2009

Confiança

Fonte: FGV

"Abolitio criminis temporalis"?


Alguns autores chamam abolitio criminis temporalis1 os casos em que a lei possibilita ao agente regularizar, num prazo determinado, a sua situação jurídico-penal, isentando-o de responsabilidade. Exemplo disso é o art. 30 da Lei n° 10.826/2003, que permitiu aos possuidores de arma de fogo não registrada regularizar, no prazo de 180 dias, o respectivo registro junto ao órgão competente. De modo semelhante dispôs a Lei n° 11.706/2008.

Mas não é exato falar, em princípio, de abolitio criminis, porque a rigor não existe infração penal a punir, pois o fato praticado é formalmente atípico. É que o crime do art. 12 da referida lei (posse irregular de arma), por exemplo, só se realiza se o agente possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo “em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.

Exatamente por isso, se, de conformidade com a própria lei, o sujeito vem a regularizar, no prazo legal, o porte da arma, o tipo não chegará a se realizar plenamente, por falta de um seu elemento normativo essencial. Afinal, nos casos de lei penal em branco, como aqui, não há infração penal sempre que o agente atender à norma a que o tipo remete (lei, regulamento, portaria etc.).

Tratar-se-á, portanto, de um comportamento atípico; logo, não cabe falar de abolitio criminis, visto que não existe crime punível. A abolição de crime pressupõe, logicamente, o cometimento de um crime, isto é, fato típico, ilícito e culpável.

Só haverá abolitio criminis relativamente aos agentes que já respondam a inquérito, processo ou já condenados por tais delitos e forem beneficiados por lei superveniente ao cometimento da infração(a exemplo da Lei n° 11.706/2008) , atendendo à respectiva condição.

Evidentemente que a abolição do delito produz efeitos independentemente de ser definitiva ou temporária, mesmo porque nem a Constituição nem o Código Penal fazem distinção no particular, nem se compreenderia que fizessem.

Por Paulo Queiroz, Procurador-Regional da República.


1 Rogério Greco. Curso de Direito Penal. Parte Geral. Niterói: 2009, 11ª edição, p. 113.

22 de fevereiro de 2009

Evolução?


Ironia

Irony is an elegant way to be bad.
A ironia é uma forma elegante de ser mau.
(Berilo Neves)

21 de fevereiro de 2009

O direito-dever de visitas e os alimentos


Clineu De Mello Almada*

Problema que acarreta muito dissabor e contenda entre as famílias é o da separação de casais.

Deixando de lado os traumas psicológicos e emocionais que atacam, e muitas vezes arrasam, os parentes mais próximos dos envolvidos e, sobretudo, tangem os filhos menores, totalmente despreparados para suportar o desatino dos pais, este modesto estudo pretende se restringir às conseqüências da regulamentação de visitas de pais a filhos e à prestação alimentar.

Gize-se, de início, que nos filiamos ao entendimento de que deve haver uma acentuada correlação entre uma e outra dessas conseqüências, encarando-se a visitação não só como direito, mas como "direito-dever".

Explicamos:

O direito de visita é uma prerrogativa independente, que tem estrita relação com a noção de parentesco. Seu objeto fundamental é a salvaguarda das relações de família e pode pertencer, além dos pais, aos avós e amplamente até mesmo a outras pessoas, parentes ou não, em consideração de situações excepcionais.

Caio Mario acentua que "a visita é daqueles direitos que melhor se caracterizam como deveres" (Direito de Família, nº 408, p. 157).

Antigo acórdão da Egrégia 1ª Câmara do TJ/SP, da lavra do eminente Desembargador Octavio Stucchi, salienta que:

"À justiça cabe impedir que o exercício do direito de visitas seja dificultado por sentimentos abjetos como também não atende aos interesses dos menores dificultar o desempenho desse direito-dever”. Mais adiante, enfatiza o julgado: “As visitações não devem ser dificultadas, pois representam o desempenho de um direito-dever"1.

No mesmo diapasão é a afirmação de Yussef Said Cahalli, ao pronunciar que "o direito de visitas é ao mesmo tempo um dever de visitas"2.

A visita dos pais aos filhos constitui, pela regra do artigo 15 da Lei nº 6.515/77, direito inderrogável e tem como um dos principais objetivos, o de fortalecer os laços de amizade entre pais e filhos, enfraquecidos pela separação dos genitores.
Não deve, porém, servir de arma de combate entre o guardião do filho e o outro genitor, como corriqueiramente acontece.

O sempre lúcido Ministro, então Desembargador do Egrégio TJ/SP, Antonio Cezar Peluso, dispensou, como traz à tona o não menos lúcido Desembargador Guilherme Gonçalves Strenger3, tratamento peculiar aos fatos e incidentes que podem determinar a suspensão ou exclusão do direito de visita, incluindo nessa hipótese a inadimplência alimentar, com a seguinte justificativa:

"De ordinário, o pai que apresenta condições financeiras e não solve obrigação de alimentos aos filhos, insiste na pretensão de exercer o direito de visitas, como se tratasse de qualificações jurídicas independentes. Não será demasia repisar que o direito de visitas não se estrutura como objeto de prazer pessoal dos genitores, predispondo-se, antes, como dever, à tutela de necessidades próprias do desenvolvimento adequado da personalidade dos filhos, devendo seu exercício manifestar, assim, a natural preocupação do bem estar destes, que envolve toda a concepção das faculdades do pátrio poder. Ora, não se entende nem justifica que o pai, capaz de assegurar a subsistência material do filho e que, culposamente, desatende a esta obrigação primeira, possa afetar, na pretensão das visitas, afeição e cuidados que não demonstra na ordem das prioridades da vida. O inadimplemento em que é elementar a nota de culpa, do dever de sustento dos filhos menores, porque contraditório e incompatível com a exigibilidade do direito de visitas, autoriza a suspensão destas, no decurso de execução alimentar” ("O menor na separação", RTJSP 80/20).

Ao defender tal entendimento, certamente inspirou-se o eminente Ministro, nas lições de Guilhermo Borda e de Cesar Belluscio, referidos por Cahali (ob. cit., p. 1063/4).

Para o primeiro "... la suspensión de las visitas es un remedio eficacísimo contra la mora del padre y un justo castigo para quien non cumple con el deber primordial de alimentar a sus hijos" ("Familia", 3ª ed., Buenos Aires, Perrot, 1962).

E Belluscio assevera: "el criterio de la doctrina y la jurisprudencia actuales es el de que las visitas en favor del padre puedem ser suspendidas cuando éste non da cumplimiento a su obligación alimentaria salvo que se deba a circunstancias ajenas a su voluntad, como su falta material de recursos unida a la imposibilidad de adquiridos con su trabajo pues se trata de una obligación primordial, sin cuyo cumplimiento no puede pretenderse ejercer los derechos correlativos ni afegar un cariño cuya inexistencia se demuestra" ("Manual de Derecho de Familia", II, n. 531, p. 266).

"Alimentos e visitas não são entidades autônomas, senão expressões conexas do mesmo dever unitário e do mesmo substrato moral do pátrio poder"4 - destaca Peluso.

Correta é a advertência de Eduardo de Oliveira Leite, no sentido de que "a grande maioria das vezes marido e mulher brigam para demarcar o terreno das visitas, sem qualquer preocupação com o destino dos filhos; os mesmos são transformados em objeto de disputa e ataques cáusticos, ao invés de serem respeitados como pessoas, com suas próprias preferências e necessidades"5.

Há pais que desrespeitam a regulamentação judicial das visitas, permanecendo semanas e até meses, quando não anos, sem procurar o filho e, de repente, surgem, exigentes e impassíveis, pretendendo restabelecer o seu "direito"...

O mesmo acontece com o fornecimento da pensão alimentícia, quando o alimentante é autônomo ou profissional liberal, cuja exatidão de rendimentos é de difícil comprovação.

Existem aqueles, até, que vão recolhendo importâncias irrisórias no transcorrer do mês, sem justificativa alguma, completamente divorciadas da ostentação que seus comportamentos e seus modos de viver retratam, ao invés de, em uma data demarcada, efetuarem o pagamento do acordado, ou fixado.

Transmitem a impressão de que estão fazendo um favor e, não, cumprindo uma obrigação...

Conhecemos casos de pais que, ao exercerem o direito de terem consigo o(s) filho(s) no período de férias escolares que lhes são reservados, têm o desplante de descontar as despesas daqueles dias do total da pensão!

A Colenda Terceira Turma do Egrégio STJ já decidiu, por unanimidade, que "A jurisprudência e a doutrina assentaram entendimento no sentido de que os valores atinentes à pensão alimentícia são incompensáveis e irrepetíveis, porque restitui-los seria privar o alimentado dos recursos indispensáveis à própria mantença, condenando-o assim a inevitável perecimento. Daí que o credor da pessoa alimentada não pode opor seu crédito, quando exigida a pensão"6.

O tema, como já salientado, não é pacífico, ensejando contestações e opiniões contrárias. Mas, por outra face, é ponderável e provoca estudos mais acurados, máxime tendo-se em vista os avanços dos entendimentos jurisprudenciais, face à modernização da legislação.

Como é curial, para que se autorize a suspensão ou até mesmo a exclusão do direito de visitas, não basta, por óbvio, estar o genitor em inadimplência em relação à pensão alimentícia devida, ainda mais quando tal fato é justificável. Mas, em situações como as da acima exemplificadas, não nos parecem injusta a adoção dessa medida.

Em certos casos, como os aqui retratados, a suspensão ou exclusão do direito de visitas é antes de tudo um estímulo para que a relação entre o genitor faltoso e sua prole modifique, já que deteriorada.

O abalo psicológico e o sofrimento de perda causado pela separação de seus genitores, mesmo que esta ocorra de forma consensual, já conduz os filhos a experimentarem sentimentos de dor. O que dizer então, quando o genitor, certamente por se tratar de pessoa de ínfima estatura moral, utiliza-se de seus filhos como arma de combate em relação ao outro genitor? Antes de atingir o alvo pretendido, com certeza estará aquele por enterrar as últimas das esperanças de seus filhos. A nocividade de tais atitudes é patente.

A nefasta atitude de deixar de cumprir com a obrigação alimentar de seus filhos, apenas e tão somente como forma de atacar o outro genitor, tenha este contribuído culposamente ou não para com a separação do casal, deve ser sempre energicamente repelida pelo Estado-Juiz.
______________
1 Apud Yussef Said Cahali, Divórcio e Separação, RT, São Paulo, Tomo 2, p. 980/981.
2 Ob. e Tomo cits., p. 984.
3 In “Guarda de Filhos”, LTR, 1998, p. 80/81.
4 Hoje Poder Familiar
5 In "O DIREITO (não sagrado) DE VISITAS", RT, 1993, p.66/93).
6 Apud Maria Cristina Ananias Neves, “Vademecum do Direito de Família”, Ed. Jurídica Brasileira, 1997, p. 520.
______________
Por Clineu De Mello Almada, juiz aposentado do TJ/SP e advogado. - Via Migalhas.

20 de fevereiro de 2009

Político e Ladrão


Millôr Fernandes lançou um desafio através de uma pergunta:

- Qual a diferença entre Político e Ladrão ?

Chamou muita atenção a resposta enviada por um leitor (Fábio Viltrakis, Santos-SP):

- Caro Millôr, após longa pesquisa cheguei a esta conclusão: a diferença entre o político e o ladrão é que um eu escolho, o outro me escolhe. Estou certo ?

Eis a réplica do Millôr:

- Puxa, Viltrakis, você é um gênio... Foi o único que conseguiu achar uma diferença !...

A SUPERAÇÃO DO ANALFABETISMO COMO PROVIDÊNCIA IMPRESCINDÍVEL À GARANTIA DO MÍNIMO EXISTENCIAL


Rodrigo Leite Ferreira Cabral[1]

O Brasil, com a Constituição de 1988, assumiu um claro e profundo compromisso com os direitos humanos, assentando como objetivos fundamentais, dentre outros, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a garantia do desenvolvimento nacional (CR, art. 3º), tudo isso em harmonia com os tratados internacionais, trazendo possivelmente o mais amplo rol de direitos e garantias fundamentais do constitucionalismo mundial.[2]

Esse extenso catálogo de direitos consagrados pela Constituição (“supreme law of land”), tanto em sua dimensão individual, quanto social, é dotado de inegável força normativa, sendo certo que “hoje a Contituição domina não somente o campo, relativamente estrito, da justiça constitucional, mas a totalidade da vida jurídica da sociedade, com um influxo efetivo e crescente. Se pode e se deve dizer, em conseqüência, que a Constituição operou em todo nosso sistema normativo e judicial uma verdadeira revolução jurídica de uma extraordinária significação.”[3]

Os direitos sociais, todavia, vêm sofrendo uma séria crise de falta de efetividade[4] e o Poder Estatal, para tentar esconder sua injustificável omissão, vem invocando, com assombrosa frequência, as tradicionais reservas[5]: a “reserva de lei” para o não-reconhecimento de direitos fundamentais constitucionalizado s (em afronta manifesta ao princípio da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais – CR, art. 5, §1º) e a “reserva do possível” para o inadimplemento de deveres prestacionais do Estado que reclamam aportes financeiros.

Independentemente das sérias objeções que se deve opor ao uso indiscriminado dessas alegações (reserva de lei e do possível)[6], é inegável que ao Estado é imposto o dever inadiável e imediato de garantir um mínimo existencial a cada cidadão.

Conforme afirma Emerson Garcia, “o mínimo existencial indica o conteúdo mínimo e inderrogável”[7] dos Direitos Fundamentais, sendo “geralmente associado ao princípio da dignidade da pessoa humana” ele “decorre também de outros princípios constitucionais, sobretudo da igualdade material.”[8]

Muito embora, o mínimo existencial não ostente um conteúdo específico, três direitos básicos integram sua composição: saúde, moradia e educação fundamental.[9]

Cumpre frisar, também, que “o aspecto distintivo fundamental entre os direitos que compõem o mínimo existencial e os outros direitos sociais, está no fato de que aqueles, por serem direitos mínimos imprescindíveis a uma vida digna, não se submetem à ‘reserva do possível’.”[10]

Veja-se que o conceito de mínimo existêncial jamais pode ser utilizado como forma de amesquinhar os direitos sociais ou individualizar direitos coletivos (no sentido de que ao Estado cumpre assegurar apenas o mínimo existencial) , mas deve ser visto como núcleo de direitos fundamentais que demanda prioritária e urgente implementação, especialmente nas áreas da saúde, habitação e educação.

No que diz respeito ao mínimo existencial na educação a Constituição da República, “com o objetivo de assegurar uma proteção adequada à dignidade do indivíduo, (...) impõe ao Estado o dever de oferecer a todos, gratuitamente, o ensino fundamental (art. 208, I).”[11]

Assim, a alfabetização do cidadão é o mínimo do mínimo existencial, o que revela a necessidade de uma política urgente e prioritária para superação do analfabetismo como passo inicial (juridicamente tímido, mas faticamente grandioso) para garantia do “ensino fundamental, obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria” (CR, art. 208, I) e para a “progressiva universalizaçã o do ensino médio gratuito” (CR, art. 208, II).

Assentadas essas premissas – de que a alfabetização da população constitui providência imprescindível para a garantia do mínimo existencial e de que é dever jurídico do Estado a criação de políticas prioritárias para tanto – cumpre esboçar uma sugestão de roteiro para a superação do analfabetismo, introduzindo uma linha-guia (guideline) de boas práticas para a implementação e efetivação desse aspecto educacional do mínimo existencial.

A Constitiução atribuiu ao Estado e à família o dever de promover e incentivar a educação (CR, art. 205) e, interpretando- se sistematicamente o princípio da solidariedade (CR, art. 3º), pode-se extrair o dever ético e jurídico de engajamento da sociedade civil organizada (empresas, igrejas, associações etc.) na caminhada educacional, sendo de inegável importância a conjungação de esfroços pela educação[12], especialmente para a formação de uma vibrante força alfabetizadora.

Ao Estado – lato sensu – impõe-se, inicialmente, a realização de um mapeamento da realidade a ser trabalhada (levantamento da quantidade de analfabetos, identificação dos analfabetos, modo de operacionalizar o ensino) e a reserva financeira para por em prática a alfabetização (verba para pagamento de professores, material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde - CR, art. 208, VII).

Após, é de rigor a elaboração de um planejamento estratégico para viabilizar a alfabetização, que deve ser feito, preferencialmente, por uma equipe técnica multidisciplinar (professores, pedagogos, psicólogos, assistentes sociais, administradores) , com a previsão, pelo menos, de plano de metas, cobrança de resultados quantitativos e qualitativos, mecanismo de revisão e aprimoramento do planejamento e do método de ensino.

A realização de um plano pedagógico é, a nosso aviso, o ponto fundamental para a superação do analfabetismo. É importante o emprego de meios tecnológicos (programas audiovisuais, uso de televisão, internet) para catalizar o aprendizado. O conteúdo das aulas deve ser motivacional, explorando temas de grande interesse, a partir das necessidades mais comuns da comunidade (alfabetização funcional), potencializando- se o desenvolvimento dos traços positivos da personalidade dos alunos, contribuindo, assim, de forma sitemática e permanente para a formação de planos de vida e para solucionar problemas e necessidades práticas[13].

Da família espera-se – principalmente na educação de crianças e adolescentes – a participação ativa e efetiva na educação, devendo ser fator de incentivo para a alfabetização e escolarização de seus integrantes, criando-se um ambiente familiar intelectualmente sadio.

A participação da sociedade civil organizada deve ser estimulada, esclarecendo- se os aspectos positivos decorrentes da evolução educacional da população, dando-se chances à comunidade para atuar concorrentemente no referido processo, especialmente com a participação voluntária de educadores (força alfabetizadora voluntária) e outras formas de ativismo, tais como franqueamento de local para as aulas, doação de material e transporte de estudantes.

Não se pode esquecer, ainda, que o Ministério Público pode ter papel central em todo esse processo de aprendizado, cobrando dos entes federados que coloquem em marcha essa caminhada, fiscalizando as metas e as providências desenhadas, podendo, também, servir como valiosa ligação entre a sociedade civil organizada e os agentes estatais.

Diante do que foi analisado, é possível concluir que a superação do analfabetismo tem forte fundamentação constitucional, apresentando- se como garantia para se assegurar o mínimo do mínimo existencial em sua perspectiva educacional, demandando, portanto, políticas públicas prioritárias. O mais importante, todavia, é a existência de uma contagiante e séria força alfabetizadora, pois é certo que – se existir vontade política e engajamento institucional e social – é possível operar-se verdadeiros milagres.[14]

Está mais do que na hora de os alfabetizadores brasileiros levarem “as letras a lugares perdidos, onde essas coisas estranhas não chegam nem de visita” [15].

[1] Promotor de Justiça no Estado do Paraná.
[2] SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais, Estudos de Direito Constitucional, p. 178.
[3] Tradução livre: “Hoy la Constitución domina no sólo el campo, relativamente estricto, de la justicia constitucional, sino la totalidad de la vida jurídica de la sociedad, con un influjo efectivo y creciente. Se puede y se debe decir, en consecuencia, que la Constitución ha operado en todo nuestro sistema normativo y judicial una verdadera revolución jurídica de una extraordinaria significación.” (ENTERRIA, Eduardo García; TOMÁS-RAMÓN, Fernández. Curso de Derecho Administrativo, vol. I, 13ª ed., 2006, p. 114).
[4] Segundo Luis Roberto Barroso: “A idéia de efetividade expressa o cumprimento da norma, o fato real de ela ser aplicada e observada, de uma conduta humana se verificar na conformidade de seu conteúdo. Efetividade, em suma, significa a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social.” (BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de sua Norma, limites e possibilidades da Constituição brasileira. 8ª ed., p. 290).
[5] CANOTILHO, J. J. Gomes. Estudos sobre Direitos Fundamentais. ‘Bypass’ Social e o Núcleo Essencial de Prestações Sociais. Revista dos Tribunais, 2ª ed. brasileira, p. 266.
[6] Vide crítica de KRELL, Andreas J. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha, os (des)caminhos de um direito constitucional ‘comparado’. 2002, p. 54.
[7] GARCIA, Emerson. O Direito à Educação e suas Perspectivas de Efetividade. In a Efetividade dos Direitos Sociais. p.184.
[8] NOVELINO, Marcelo. Leituras Complementares de Constitucional. O Conteúdo Jurídico da Dignidade da Pessoa Humana, p. 124.
[9] NOVELINO. Op Cit., p. 124.
[10] NOVELINO. Op Cit., p. 125.
[11] NOVELINO. Op Cit., p. 125.
[12] Sobre a conjugação de esforços ou divisão de trabalho pela educação, Peter Haberle assevera que: “La educación de la juventud es un mandato constitucional, el cual se lleva a cabo mediante la división del trabajo entre los padres, el Estado y la escuela, así como otros sujetos de la educación en forma optativa (como las iglesias) y también es ejercido de manera diversa en cuanto a sus objetivos sustantivos. La Constitución no puede sustraerse a estas funciones diferenciadas de la educación para los niños hasta la enseñanza de los adultos, sino que los norma en favor de su propia permanencia.” (HABERLE, Peter. El Estado Constitucional. Universidad Autónoma del México, 2003, p. 191).
[13] GUTIÉRREZ, Jaime Canfux; JIMÉNEZ, Marbot Jiménez. Metodologia para la Educaión de Personas Jóvenes y Adultas Subescolarizadas. Disponível em: . Acesso em: 18.11.2008.
[14] Um desse ‘milagres’ mais impressionantes,é assim noticiado por Eduardo Galeano: “Em 1961, um milhão de cubanos aprenderam a ler e escrever, e milhares de voluntários apagaram os sorrisos zombeteiros e os olhares compassivos que tinham recebido quando anunciaram que fariam isso em um ano.” (GALEANO, Eduardo. Espelho: uma história quase universal. 2008, p. 307)
[15] GALEANO, Eduardo. Op. Cit. p. 306.

19 de fevereiro de 2009

O povo como fiscal da "res publica"


Cem Perguntas e Respostas sobre Improbidade Administrativa: Incidência e Aplicação da Lei n. 8.429/1992 (LIA - Lei de Improbidade Administrativa)


Fonte: Escola Superior do Ministério Público da União.

Juristas: contadores de histórias?


Se pensarmos bem, nos daremos conta de que os juristas (profissionais do direito) pertencem a uma classe particular de contadores de histórias, afinal, juízes, promotores e advogados não fazem outra coisa senão contar suas próprias histórias a partir de outras tantas. Uns contam tragédias, outros, comédias; uns preferem o conto; outros, a novela ou o romance; e o fazem com maior ou menor imaginação, com maior ou menor talento.

Mas todos contam histórias e, pois, dão sua própria versão dos fatos. Sim, porque o que pretendem como simples “sentença”, “denúncia”, “testemunho”, “declarações”, “fatos” não é uma pura narração, mas uma construção, isto é, uma interpretação a partir do que a mente percebe e a memória retém.

Trata-se, enfim, de uma história recontada conforme os nossos sentidos, as nossas necessidades, os nossos interesses, as nossas crenças, as nossas limitações, a nossa sensibilidade. Não existem fatos; só existem interpretações (Nietzsche).

De um certo modo, portanto, o direito é uma ficção que não se assume como ficção.1

Que são afinal os grandes advogados senão exímios contadores de histórias, e que, como bons contadores, contam-nas conforme o seu respectivo auditório (juiz, tribunal etc.), com ele interagindo e persuadindo-o? Enfim, que fazem os juristas senão contar histórias, mais ou menos verossímeis, mais ou menos exatas, no seu próprio interesse e no interesse de seus clientes (Estado, réu, vítima)?

Talvez por isso, ou também por isso, tenhamos mais a aprender com a literatura, o teatro, o cinema, a música, a arte, do que com os livros técnicos. Porque a interpretação, na arte como no direito, mais do que técnica e razão, requer talento e sensibilidade.

Por Paulo Queiroz, Procurador-Regional da República.

1 Eis a propósito um dos sentidos possíveis de ficção: “relato ou narrativa com intenção objetiva, mas que resulta de uma interpretação subjetiva de um acontecimento, fenômeno, fato etc.”. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Ed. Objetiva: Rio de Janeiro, 2001, 1ª edição, p. 1336.

18 de fevereiro de 2009

O direito de dormir


Não existe imagem que mais tranquilize a alma que a imagem de uma criança adormecida. Seus olhinhos fechados dizem que o seu pequeno corpo está fechado dentro de si mesmo, num ninho de silêncio e escuridão.

Mas é comum que essa tranquilidade seja precedida por uma luta contra o sono: a criança não quer dormir. Ela tem medo da escuridão. E o medo agita a alma.

Foi pensando nisso que os músicos inventaram um tipo de música chamado "berceuse", que é uma canção doce destinada a ajudar as crianças a dormir. Ah! Como são lindas as "berceuses" de Brahms e de Schumann! Elas acalmam a criança amedrontada que mora em mim, põem os seus medos para dormir. E enquanto seus medos dormem, eu durmo bem longe deles...

Mas isso que os músicos fizeram foi apenas instrumentalizar as canções que as mães de todo o mundo inventaram para fazer seus filhos dormirem. As "berceuses" acalmam as almas das crianças.

Tudo o que existe precisa dormir. O simples existir cansa. A se acreditar nos poetas e nas crianças, até mesmo as coisas.

Minha filha de quatro anos, olhando os vales e montanhas que se perdiam de vista nos horizontes de Campos de Jordão, fez-me essa pergunta metafísica: "Papai, as coisas não se cansam de serem coisas?"

Fernando Pessoa teve suspeita semelhante e escreveu: "Tenho dó das estrelas luzindo há tanto tempo, há tanto tempo... Tenho dó delas. Não haverá um cansaço das coisas, de todas as coisas, como das pernas ou de um braço? Um cansaço de existir, de ser, só de ser, o ser triste, brilhar ou sorrir...".

Ele, poeta, estava cansado. Olhava para as estrelas que luziam havia tanto tempo e tinha dó delas. Elas deveriam estar muito cansadas. Suas pálpebras jamais se fechavam. Seus olhos estavam sempre abertos, sem poder dormir jamais...

Pergunto-me então se não haverá um simples cansaço de viver. Será que não chega o momento em que a vida diz, das profundezas do seu ser, como um pedido de socorro aos que entendem a sua fala: "Estou cansada. Quero dormir o grande sono..."?

Os especialistas na arte da tortura descobriram que uma das técnicas mais eficazes e discretas para se obter a confissão de um torturado era a de impedir que ele dormisse. Assentado numa poltrona confortável, o prisioneiro espera. O tempo passa em silêncio, sem interrogatório. Vem o sono. As pálpebras pesam e querem se fechar. Mas alguém que o vigia o sacode para impedir que ele durma. E assim o tempo vai passando. O desejo de dormir vai crescendo, as pálpebras pesam até um ponto insuportável. Nesse momento, a necessidade de dormir é tão terrível que o prisioneiro está pronto para confessar qualquer coisa só para poder dormir.

Foi coisa parecida que fizeram com a Eluana Englaro, mulher italiana com 38 anos de idade, dos quais 17 em vida vegetativa. Seu sono sem despertar dizia que ela desejava dormir. Mas os torturadores, a ciência, as leis e a religião lhe negavam esse direito. Obrigavam-na a continuar viva contra a vontade do seu corpo, que ansiava pelo grande sono. Ligaram seu corpo a máquinas que impediam que ela dormisse. Vivia mecanicamente.Finalmente o direito de dormir lhe foi concedido. Fantasio que ela dormiu como uma criança, ouvindo a "berceuse" de Brahms.

Por Rubem Alves - Jornal "A Folha de S. Paulo", 17/02/09.

17 de fevereiro de 2009

Ao Promotor do Júri


Título: Não Matarás - Desenvolvimento, Desigualdade e Homicídio
Autor: Gláucio Ary Dillon Soares
Editora: FGV
Número de Páginas: 200
Ano de Publicação: 2008

O autor analisa o homicídio numa perspectiva histórica e comparada: no Brasil e no mundo, através dos tempos. Utilizando diferentes pontos de vista teóricos e metodológicos, ele correlaciona essas mortes violentas com variáveis econômicas, culturais, demográficas e sociais: desenvolvimento econômico e social, urbanização, metropolização, favelas, migrações, densidade demográfica, idade, raça, gênero, estrutura da família, religião e religiosidade. A contribuição das políticas públicas, as teorias mais comuns e as questões metodológicas, inclusive a qualidade dos dados disponíveis, também passam pelo crivo analítico do autor.

Clique aqui, para maiores informações sobre a obra.

Justiça + Política = &X#@*


PT no S

O ministro Celso de Mello segredou a colegas que cogita aposentar-se do STF. Faz par com Eros Grau, outro ministro que flerta com o pijama.

O advogado-geral da União, José Antonio Toffoli, sente avizinhar-se a sua hora. Ele frequenta os subterrâneos no topo da lista de opções de Lula para uma vaga no STF.

Confirmando-se a nomeação, Toffoli iria ao tribunal como o primeiro representante do PT do Supremo. Já advogou para o partido.

De resto, Toffoli traz enganchada à biografia uma assessoria jurídica prestada ao ex-chefão da Casa Civil José Dirceu.

16 de fevereiro de 2009

Grau de Credibilidade



População confia mais em promotores que em juízes

Pesquisa feita pela Fundação Getúlio Vargas, apresentada pelo conselheiro Joaquim Falcão, do Conselho Nacional de Justiça, revela que a sociedade reconhece a importância do Judiciário, mas quer agilidade. A pesquisa foi apresentada para os presidentes dos Tribunais de todo o país, no 2º Encontro Nacional do Judiciário, em Belo Horizonte.

A pesquisa de opinião, feita com 1.200 entrevistados, mostra o Judiciário está em 9º lugar entre 17 instituições no índice de confiança. Em relação à confiança em profissionais, os juízes ficam em quinto lugar. A pesquisa revela que em primeiro estão os professores, em segundo, os policiais federais, em terceiro, promotores de Justiça, em quarto, o presidente da República.

Segundo o conselheiro, apesar de 80% achar que vale a pena procurar o Judiciário, o principal problema apontado é a falta de agilidade. Para Falcão, agilidade, acesso ao Judiciário, conciliação, criança e adolescentes devem ser as prioridades. Quando a sociedade pede leis que limitem recursos ou mais conciliação, acredita Falcão, é porque querer uma Justiça ágil.

“O Judiciário é pouco conhecido”, afirmou o conselheiro Joaquim Falcão. Segundo a pesquisa da FGV, 36% conhece o Judiciário de “ouvir falar” ou não conhece. Uma questão colocada por Falcão é como os Tribunais e a prestação jurisdicional podem ser mais conhecidos. Dos que conhecem o Judiciário, citaram a Justiça do Trabalho, Eleitoral e Juizados. Quanto ao CNJ, 76% não conhece. Dos que conhecem, a maioria considera ótimo.

Joaquim Falcão afirmou que, apesar de o país discutir as reformas políticas e previdenciárias, a única que começou a ser feita é do Judiciário. O resultado, diz, é que a maioria está satisfeita com o Judiciário. Segundo o conselheiro, a pesquisa revela que a Justiça está melhor e que vale a pena procurar o Judiciário. Ele lembra que quanto mais funciona, mais demanda apresenta. “Isso é crescimento, importância, poder. Poder legítimo é aceitação e efetividade”, afirma. Sem um Judiciário “forte, poderoso e efetivo”, entende Falcão, não há democracia. Para o conselheiro, a proposta é a aceitação do Judiciário pela sociedade. “Se Judiciário não for aceito, o caminho será mais longo”, afirma.


O STF e a súmula sobre investigação sigilosa


No dia 2 de fevereiro deste ano, especificamente na primeira sessão do ano judiciário, o Supremo Tribunal Federal (STF) editou mais um enunciado de súmula vinculante. Oriundo de proposta apresentada pela Ordem dos Advogados do Brasil, o STF, por nove votos a dois, enunciou o seguinte texto: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”. A súmula vinculante, depois de anos de debate acadêmico, foi consolidada tanto normativamente como na prática dos Tribunais como instrumento de respeito à segurança jurídica e de racionalização dos trabalhos judiciais. Somada a outros esforços – mutirões de assistência judiciária, estímulo à conciliação e à solução extrajudicial de conflitos, óbices à proliferação de recursos repetidos a respeito de matérias cuja compreensão já se encontra consolidada –, a súmula vinculante procura, a seu modo, prestar contribuição a um esforço de acesso à jurisdição. Mas será que tal enunciado vinculante permite que o STF, primeiro, regulamente o tema do acesso aos autos do inquérito policial e, segundo, trate do tema como o fez?

Não são poucos os críticos, muitos deles sequer afetos aos temas jurídicos, do crescente papel concretizador assumido pelos Tribunais nos últimos anos. Sob figurações como neoconstitucionalismo, ativismo judicial e rótulos outros, é inegável a juridicização de temas de caráter político, econômico etc. Contudo, ao prestar-se ao salutar papel de voz ativa na solução de questões sensíveis ao Estado de Direito, o julgador igualmente assume a responsabilidade de pensar soluções aos problemas e questões que lhe são apresentados, pois de há muito permitir ao operador do Direito afirmar-se como constatador de problemas e jamais arquiteto de soluções. Essa reflexão, quase simplória, presta-se ao caso do recente enunciado vinculante do Supremo Tribunal Federal. Ao afirmar que o advogado deve ter acesso a inquérito sigiloso, desde que a diligência esteja documentada, cabe a pergunta: o Tribunal concordará com a realização de diligências que não sejam documentadas ou imaginou que toda e qualquer investigação preliminar deve observar publicidade ao investigado? No primeiro caso, o Tribunal enseja arbitrariedades mais graves que as que busca coibir; no segundo caso, o Tribunal simplesmente fulmina qualquer chance de atividade investigativa, máxime em temáticas mais complexas, resultar num conjunto de informações hábeis a permitir a discussão em juízo de responsabilização penal. O enunciado pressupõe que investigação é processo judicial e, o que é pior, confunde investigação sigilosa com investigação abusiva.

Hoje, qualquer diligência investigativa que atinja direitos fundamentais – desde uma revista pessoal, que reclama justa causa do agente policial que a realiza, até uma interceptação telefônica, que reclama decisão judicial prévia e fundamentada – observa um amplo rol de garantias judiciais, institucionais e até mesmo políticas. Se há abusos, cumpre coibi-los e puni-los, mas não dar tratamento inadequado à situação, em típica hipótese em que o remédio se revela pior que a doença. O enunciado da Súmula vinculante recém editado evidencia, quando menos, dois equívocos: o primeiro, a crença de que o Tribunal possa dar tratamento igualitário a todo e qualquer tipo de apuração preliminar preparatória a uma ação penal; o segundo, achar que a atuação investigativa possa merecer tratamento a atacado, como se um enunciado de súmula pudesse trazer, em sua necessária concisão e clareza textual, a solução dos problemas atinentes às apurações sigilosas. Aqui parece claro: sob o pretexto de dar sua contribuição, o Tribunal olvidou-se de sua responsabilidade de propor soluções possíveis aos problemas, em lugar de simplesmente ocultá-los em textos que dizem pouco ou, se dizem muito, dizem mal.

Por Antonio Suxberger, Promotor de Justiça do MPDFT - Jornal de Brasília de 10/02/09.

14 de fevereiro de 2009

O juiz e o acesso à Justiça no Brasil


Clique aqui para ler excelente texto sobre a atuação do juiz na realização do direito e da justiça, cujo autor é João Fernando Vieira da Silva, advogado e professor.

13 de fevereiro de 2009

Arestos Criminais


Coletânea de Jurisprudência Criminal
Ministério Público de Minas Gerais
(Word)

12 de fevereiro de 2009

Artigo 212 do CPP - Parecer MPF


Habeas Corpus n.º 118092/DF
Processo n.º 2008/0223543-7
Impetrantes: Ministério Público do Distrito Federal e Territórios e a Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Distrito Federal
Paciente: Thiago Anderson Leite da Silva
Impetrado: Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios
Relator: Ministro Paulo Gallotti – SEXTA TURMA

Ordem de habeas corpus. Desrespeito ao art. 212 do CPP, caput e par. único. Inquirição da testemunha pelo magistrado anteriormente às partes. Nulidade absoluta. Malferimento aos princípios constitucionais do acusatório, da igualdade jurídica, no seu viés da paridade de armas, e da imparcialidade do juízo. Legitimidade do Ministério Público e da OAB como impetrantes. Parecer pela concessão da ordem, para que seja declarada a nulidade da audiência referida, bem como dos atos a ela subseqüentes e dependentes.

Colenda Turma:

Trata-se de ordem de habeas corpus, com pedido de liminar, pela qual o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios e a Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Distrito Federal, insurgem-se contra acórdão proferido pela 1ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.
O paciente, denunciado pela suposta prática de tentativa do crime de furto duplamente qualificado (art.155, § 4°, incisos I e IV, c/c o art. 14, inciso II, ambos do Código Penal), teve, contra si, julgado parcialmente procedente o pedido condenatório, a impor-lhe a pena de 01 (um) ano, 05 (cinco) meses e 10 (dez) dias de reclusão, em regime semi-aberto, e o pagamento de 22 (vinte e dois) dias-multa, à razão mínima, por incurso nas sanções do art. 155, §4º, I, c/c o art. 14, II, ambos do CP, como se colhe da sentença acostada às fls. 194/208 dos autos.

Sucede que, no processo de conhecimento, abertos os trabalhos, em audiência de instrução datada de 11/09/2008 (termo acostado à fl. 41), aduzem os impetrantes, ocorrida nulidade absoluta, derivada da inobservância pelo juiz do quanto prescrito no art. 212 do CPP, que, em arrepio às recentes modificações legislativas (Lei 11.690/2008), teria arrogado a si o direito de, primeiramente, interrogar a testemunha, em detrimento das partes, para quem tão-só posteriormente teria sido deferida a palavra.

Vislumbrando o vício apontado, impetraram, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios e a Ordem dos Advogados do Brasil, habeas corpus perante o Tribunal de Justiça, requerendo fosse declarada a nulidade da audiência de instrução referida. Ao entender dos impetrantes, encontrando-se disposto no art. 212 do CPP, caput e par. único, poder o juiz, após as perguntas formuladas pelas partes, e tão-só, complementar a inquirição tendo em vista os pontos não esclarecidos, eivada de nulidade absoluta - porque atentatória ao princípio acusatório e ao devido processo legal - restaria a audiência de instrução

Levada a julgamento, indeferiu-se liminarmente a ordem com espeque no art. 663 do CPP. Primeiramente, aduziu o órgão colegiado a inadequação da via, visto que teria sido utilizada em prejuízo do paciente, em favor tão-só da tutela dos direitos do Estado na persecução penal (fl. 61), que seria representado, aqui, pelo “(...) direito do Ministério Público de fazer perguntas às testemunhas de acusação em primeiro lugar, seguindo-se a defesa e, por fim, se o caso (sic), o juiz” (fl. 62), o que lhe retiraria a legitimidade para a causa. Ilegitimidade essa que se estenderia igualmente à OAB, pelos mesmos motivos. Consignou-se, nessa mesma linha de raciocínio, que não competiria aos impetrantes substituírem a advogada do réu, regularmente constituída nos autos. Por fim, no âmbito das preliminares, segundo o entendimento esposado pelo Tribunal, não haveria in casu sequer ameaça à liberdade de ir e vir do paciente pelo descumprimento do dispositivo processual.

Ressaltaram os julgadores, de outra banda, que o vício suscitado é de índole relativa, a exemplo do que entende a jurisprudência do STJ em relação à inversão da ordem de inquirição das testemunhas de acusação e defesa, sendo imperativo, dessa forma, que tivesse sido comprovado o efetivo prejuízo, a par de que se o impugnasse no primeiro momento em que coubesse à defesa pronunciar-se nos autos, o que não teria ocorrido.

Irresignados, insurgem-se os impetrantes contra o acórdão distrital por intermédio desta ordem, pugnando a declaração da nulidade da audiência referida. Sucessivamente, caso se entenda haver supressão de instância para o conhecimento da ordem pela Corte, que seja determinado à instância a qua, superando os óbices invocados, examine as ilegalidades deduzidas no writ originário.

A liminar foi indeferida (fls. 130/132).

Era o que havia para relatar.

Primeiramente, no que concerne à adequação da via, assiste razão aos impetrantes. Inexiste qualquer óbice ao reconhecimento de nulidade pela via do habeas corpus, sendo esse entendimento placitado pela jurisprudência de nossas Cortes superiores. Aliás, no próprio acórdão guerreado é trazida à colação jurisprudência que se deu no bojo do referido writ, alusivas à inversão da ordem de inquirição das testemunhas de acusação e defesa. Não obstante tenham as ordens colacionadas sido denegadas (daí servindo aos propósitos da autoridade coatora), foram todas, para tanto, conhecidas, o que revela a pertinência do habeas corpus para trazer à baila discussões concernentes às nulidades processuais.

A legitimidade do Ministério Público para a impetração da vertente ação constitucional encontra-se expressamente consignada no art. 654 do CPP. No caso presente, o que se objetiva, ao contrário do exposto pelo TJDFT, não parece ser a defesa de interesses exclusivos da acusação, em detrimento do réu (paciente). Ao contrário, na petição inicial, expõe-se de maneira fundamentada o malferimento aos princípios do devido processo legal, do sistema acusatório e da imparcialidade do juiz, trazendo-se aos autos farta documentação que atesta, ademais, a recalcitrância dos juízes do Distrito Federal, ressalvada a generalização, sempre indevida, em cumprir o dispositivo em apreço, como se fosse dada a eles uma tal possibilidade. Do documento acostado às fls. 126/127 dos autos, por exemplo, infere-se a realização de reunião com desembargadores do respectivo Tribunal, na qual se assentou a orientação de que os juízes simplesmente iniciassem as perguntas(!), como se não fossem cogentes os dispositivos processuais.

Dessa forma, tem-se que, na vertente ordem, não encartados interesses acusatórios, derivados do exercício do Estado de seu potestas puniendi; ao contrário, busca-se, como arrematam os impetrantes, “a prevalência do arcabouço normativo processual constitucional” (fl. 19), tal como disposto em linhas volvidas. Em outras palavras, a defesa da ordem jurídica, sendo essa, como se dessome do art. 127, caput, da CF, uma das funções institucionais do Ministério Público, decorrendo daí a sua legitimidade. Não obstante se lhe reconheça, em relação às ações penais públicas, a figura de dominus litis, dúvida não há de que deve primar pelo cumprimento dos preceitos constitucionais e legais, sendo pertinente a sua ação em favor dos réus quando normas de garantia estabelecidas como limites ao exercício do poder de punir do Estado sejam descumpridas, como se afigura o maltrato aos princípios constitucionais referidos. Isso, independentemente de o patrono do réu ter se insurgido ou não, porque deve se entender nesses casos, de tutela da liberdade individual, que o esforço é cumulativo, comum, e, não, exclusivo, sendo certo, ademais, que o cumprimento dos preceitos processuais não está sujeito à livre disposição dos atores processuais. O mesmo raciocínio deve ser estendido à OAB, a quem incumbe, ex vi do art. 44, I, da Lei 8.906/94, “defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”.

Ultrapassadas essas questões preliminares, é de se ver que o cerne da questão repousa em se saber se a nulidade engendrada pela não observância do que dispõe o art. 212, caput e par. único do CPP, i.e., se a inquirição das testemunhas primeiramente pelo juízo (e, posteriormente, pelas partes) teria, ipso facto, o condão de determinar a declaração de nulidade do processo desde a audiência de instrução, por se tratar de nulidade absoluta, ou, ao contrário, tratar-se-ia de nulidade relativa, a exigir, além de sua alegação opportuno tempore, a demonstração de prejuízo.

Dúvida não há de que o tema nulidades está intrinsecamente ligado à existência de prejuízo, seja este efetivo ou potencial (art. 563 do CPP). Todavia, mesmo partindo-se dessa premissa, há que se diferenciar aqueles vícios gravíssimos, nos quais o desrespeito às formalidades legais implicam violação aos princípios constitucionais direta ou reflexamente (nulidade absoluta), daqueles outros decorrentes da não-observância de formas estabelecidas no interesse exclusivo da partes, vale dizer, que não importam atentados à própria função jurisdicional.

A depender justamente dos interesses envolvidos na nulidade, se prevalentemente públicos ou privados, é que se deverá cunhar de absoluto ou relativo um vício que inquine o processo. Se as formas são estatuídas no preponderante interesse das partes, cabe a elas verificarem se o seu desatendimento causa gravame a sua esfera jurídica, oferecendo impugnação. Ao revés, se o que se sobressai é o interesse público na tutela das liberdades individuais, não há, para as partes, qualquer disponibilidade, daí se dizer que as nulidades absolutas não estão sujeitas a prazos preclusivos, não se convalescendo nem mesmo ante a coisa julgada, porquanto atentatórias à própria função jurisdicional, à própria qualidade da jurisdição prestada.

O direito, e isso é consabido, lida com abstrações. Ninguém ousa dizer, por exemplo, que as hipóteses de incompetência absoluta não encartam nulidades absolutas. Jamais, todavia, para esses casos, foi requerida pelos órgãos judiciários a demonstração de efetivo prejuízo. Em outras palavras, o prejuízo decorre da violação singela ao quanto preceituado na Constituição ou na lei. Assim, processo desse jaez é considerado nulo, mesmo que à defesa tenha sido assegurado incensurável contraditório e inexistam sequer indícios da imparcialidade do órgão judicante.

No caso vertente, o juízo negou aplicação ao disposto no art. 212, caput e par. único do CPP, procedendo, desde logo, à inquirição das testemunhas, sem, antes, deferir a possibilidade às partes. Afastou-se o juízo, assim, do comando legal, que determina seja sua iniciativa eminentemente complementar, e não substitutiva, como parece se afigurar sempre que sonegadas às partes a produção probatória, violando, dessa forma, como, aliás, escorreitamente dispôs a defesa, o princípio constitucional do acusatório (art. 129, I, da CF).

O caráter complementar da atuação judicial, finda a inquirição das testemunhas pelas partes, ainda assim, deve ser interpretado com parcimônia, para dele não se extrair possa o juiz, genericamente, estender o conjunto probatório, substituindo autor e réu em seu mister. Assim, uma interpretação consentânea com o princípio acusatório informa que somente poderá o juízo proceder à inquirição das testemunhas sobre fatos que, para ele, não tenham se quedado claros, mas que já tenham sido agitados pelas partes. Essa deve ser a interpretação conforme a Constituição do dispositivo legal, porque consoante ao princípio acusatório nela albergado.

Isso, porque não há como negar que admitir a figura de um juiz inquisidor, gestor da prova, é, concomitantemente, admitir um juiz comprometido psicologicamente com a prova, tanto ao produzi-la, quanto ao valorá-la. Primeiro, porque, p.e., ao dirigir suas perguntas às testemunhas, quando nada de concreto existe acerca do crime, senão a tese acusatória, age, porque de modo diverso não poderia mesmo ser, impelido pela visão que tem dos fatos narrados na denúncia (formulada pela acusação), o que significa dizer possa consubstanciar, desde que assuma a veracidade de sobredita tese ao sair ao encalço das provas, uma extensão da acusação, a comprometer-lhe o devido alheamento em relação ao caso penal. Segundo que, uma vez produzidas as provas, restará a tentativa de legitimá-las discursivamente, a partir dessa crença primeira acerca dos fatos que lhe orientou a conduta. A problemática se intensifica quando se tem em vista que, no processo penal, vige o princípio da presunção de inocência e seu corolário “in dubio pro reo”, a imporem à acusação um amplíssimo, senão mesmo integral, ônus probatório, derivando daí a desnecessidade ou a própria inutilidade de que o juiz produza prova que venha a favorecer à defesa, o que poderia, ademais, caso se vislumbrasse a pertinência da possibilidade, entrever a atuação oficiosa do magistrado como instrumento paritário às partes, o que não sucede.

Dessa forma, embora seja mesmo um delírio exigir-se um juiz sem predisposições, psicologicamente não-orientado, ser humano que é, ao final, para os efeitos de igualdade e imparcialidade reclamados, o que importa, precisamente, é não ter sua atuação constituído mecanismo de extensão do conjunto probatório. Certamente, a gestão das provas constitui uma das vigas mestras do processo penal. Com efeito, e isso em muito maior medida para a acusação, em face do princípio da presunção de inocência e seu corolário “in dubio pro reo” já referidos, toda a argumentação trazida à baila pelo Ministério Público, para que esteja revestida da necessária idoneidade, vale dizer, para que possa servir, argumentativamente, ao convencimento judicial e, assim, elidir o princípio da presunção de inocência, deve encontrar-se amparada por provas; de modo contrário, de nada vale. Daí por que se aduzir deva o juiz, em relação à gestão da prova, manter-se inerte, evitando constitua, a partir de sua atuação oficiosa, uma possibilidade de prova em favor da acusação.

Na hipótese dos autos, tem-se mesmo situação esdrúxula. Não se arrogou o juiz uma possibilidade probatória que fosse sequer supletiva às partes, o que se daria tivesse, p.e., dirigido, após as perguntas do autor e do réu, suas próprias às testemunhas, independentemente de terem sido ou não agitadas pelas partes. Não! Antes mesmo, arrogou-se a posição de protagonista na produção probatória, substituindo-se ao órgão da acusação, formulando as perguntas em seu (no da acusação) interesse, o que, à evidência, coloca frontalmente em xeque o princípio acusatório, visto que se tem por inadmissível deva a separação dos órgãos de julgamento e acusação ser estritamente formal ou que a ela se sobreponha o princípio da verdade real.

A invocação do princípio Pás de Nullité Sans Grief, ademais, não merece acolhida. De fato, se as normas processuais penais constituem normas de garantia, com o fito de proporcionar o devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF), o seu descumprimento é que deveria justificar-se, vale dizer, deveria caber ao Estado-juiz a prova de que o processo se deu com a regularidade que é constitucionalmente assegurada, apesar das sacudidelas, e não o acusado, que apenas reclama o cumprimento daquilo que, nos códigos processuais, se encontra estatuído e vigente.

De mais a mais, nesse caso, exigir-se cristalina demonstração de prejuízo, como a indicar as conseqüências da inversão da ordem estatuída no dispositivo, vale dizer, se primeiro tivessem as partes procedido à inquirição das testemunhas, quais outros resultados se fariam presentes que não aqueles que se verificaram, ou quais os efeitos da nulidade sobre os atos judiciais que se seguiram, seria de um rigor injustificável. Que tipo de prova deveria ser produzida para que se chegasse a contento à conclusão de que, p.e., respeitado o preceito legal, não teria sobrevindo condenação, ou a pena teria sido menor? Nessas situações, deve-se entender que a própria natureza da irregularidade evidencia o gravame, o prejuízo.

Aqui, como dito, a violação ao art. 212, caput e par. único, implicou violação a vários dispositivos constitucionais, como o princípio acusatório, da igualdade jurídica, no seu viés da paridade de armas, e da imparcialidade do juízo, a não permitir, a uma, se possa cunhar de relativa a nulidade presente, tão caros para a própria qualidade da prestação jurisdicional se afiguram, dúvida não pode haver. A duas, se possa exigir prova cabal e cristalina do prejuízo, argumentação falaciosa, visto que, nesses contornos, jamais logrará êxito o acusado em insurgências desse jaez, permitindo-se, ao final, ao juízo, siga o procedimento que lhe estampa as próprias opiniões, sendo certo que a esse tempo de incertezas não se quer regredir.

Bem assim, opina o Ministério Público Federal pela concessão da ordem, para que seja declarada a nulidade da audiência referida, bem como dos atos a ela subseqüentes e dependentes.

Brasília, 10 de fevereiro de 2009.

Juarez Tavares
Subprocurador-Geral da República

Ministério Público Federal
HC 118092/DF

Atuação

Atuação

Você sabia?

Você sabia?

Paradigma

O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)