A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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20 de agosto de 2008

ANTES E DEPOIS DE DANTAS (AD-DD)

Antes de qualquer coisa, quero deixar claro que não discutirei o habeas corpus de D. Dantas. Considero, aliás, correta a decisão do Min. Gilmar, porque, como dworkiano (de Ronald Dworkin, jurista norte-americano), penso que os argumentos utilizados para justificar prisões devem ser (sempre) de princípio, e não de política. O que me preocupa é o “depois de Dantas” (DD), quando se tem a impressão de que os direitos fundamentais têm efeito ex nunc (isto é, só valem a partir de agora) em terraebrasilis. Alguns cientistas políticos e juristas chegam a chamar a PF e o MPF de “fascistas”, comparando a situação de AD (antes de Dantas) ao clima pré-1964 (sic).

Fosse eu um pessimista, começaria a estocar comida, pois a impressão é de que a PF é a KGB, e o MP é a Prokuratura. De todo modo, parcela do establishment já encontrou a solução, construída ao apagar das luzes do recesso parlamentar: “blindar os escritórios de advocacia”. Afinal, pelo menos segundo o Dep. Michel Temer, idealizador do projeto, é ali que está(va) o problema...! Agora vai! (de todo modo, o projeto foi vetado em parte pelo Presidente da República).

Passados 20 anos e o que fazemos? Continuamos a olhar a Constituição com os olhos do séc. XIX. Na literatura jurídica (penal) majoritária, continua visível a equivocada contraposição “Estado-indivíduo”, pela qual “o Estado é mau” e o “cidadão é o débil” (e nisso põem-se de acordo juristas “dogmáticos” e “críticos”)! Vejamos: enquanto a Constituição aponta para um forte dever de proteção (para os alemães, Schutzplicht), no sentido de que, no Estado Democrático, devemos usar também o direito penal para “jogar duro” com a delinqüência “asséptica”, nosso parlamento aprova leis que dizem o contrário. Por exemplo, “alçamos” o crime de fraude à licitação a crime de “menor potencial ofensivo” (paga-se cesta básica); na mesma linha, consideramos mais grave o ato de subtrair galinhas (quando praticado por duas pessoas) do que as condutas consubstanciadoras de crimes como a lavagem de dinheiro e de delitos contra as relações de consumo e o sistema financeiro; também construímos uma benesse para os sonegadores de tributos (que, de certa forma, transforma a sonegação fiscal em uma rentável “aposta sem riscos penais”), bastando o pagamento do valor desviado para que o crime se esfumace (lembremos como M. Valério se safou recentemente – claro que nisso o judiciário tem responsabilidade, ao não declarar a inconstitucionalidade desse “favor legis”). No Brasil – e repito isso há 20 anos –, “la ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos” (frase de um camponês salvadorenho).

Pudera: predominantemente, o ensino jurídico continua manualesco. É a indústria que mais cresce. Já se vende Constituição em quadros sinópticos. E nos aeroportos. A doutrina não mais doutrina. Aliás, outro dia um Ministro do STJ afirmou: não importa o que a doutrina diz...! Pois é.

Nenhum país que tenha passado pela etapa do Estado Social abriu mão de um duro combate à corrupção e congêneres. E o Brasil sequer passou por essa etapa. A tese aqui é: “direito penal mínimo para o andar de cima” e “direito penal máximo para a ratatulha”, com uma pitada de “direitos sociais de favor” para esse “rebotalho”. Aliás, basta examinar o modo como tratamos os crimes da “casa grande” desde o Império.

Enfim, tudo para que a pirâmide não se altere. Somos reféns de uma privatização do Estado. Mas de que modo poderíamos fugir do passado sem ficarmos marcados pelo patrimonialismo e pelo “extrativismo da coisa pública”? Se vacilarmos, correremos o risco de o parlamento “repristinar”, nesta fase DD, a pena de açoite..., mas para aqueles que se atreverem a incomodar o andar de cima. Pensemos: seriam os vigaristas alemães (ou americanos, etc.) menos ou mais vigaristas do que os congêneres brasileiros? Seria um “azar” nosso? Ou, quem sabe, o problema não estaria – lembremos Hobbes e Freud – (também) nos “limites e no papel da lei”? Talvez nos falte Hobbes e sobre Rousseau.

A propósito, ao contrário do que pensam alguns intelectuais brasileiros, a sociedade melhora sim, se nos livrarmos dos rufiões do dinheiro público; eles são um problema, sim! Se somarmos apenas alguns dos seus crimes (e desfalques), dará mais do que o “andar de baixo” furtou e roubou nos últimos 10 anos (e esses não surrupiaram do Estado). Pergunte-se, nos países desenvolvidos, o que acontece com essa gente. Se a política, aqui, está reduzida ao noticiário policial é porque, talvez, tenhamos corruptos demais. Talvez precisemos prendê-los. Seria um bom começo! E isso não colocará a democracia em risco. Afinal, o habeas corpus não foi feito apenas para pessoas inocentes; também pode ser usado por escroques.

Por Lênio Luiz Streck, Procurador de Justiça/MPRS, Doutor e Pós-Doutor em Direito, Professor Universitário.

3 comentários:

Anônimo disse...

Um bom artigo do procurador. Mas sabemos que apesar de tudo, esta nação não resgata mais a si mesma com Hobbes, Freud nem Rousseau. Aqui só uma arrojada mistura de Robespierre com Marco Aurélio conseguirá isso. Robespierre com seu senso extremo de vingança social, que nem sempre é injusta. Marco Aurélio com a sensatez que deixou em seus escritos do tempo do Império Romano. Hoje vemos nas ruas do Rio de Janeiro, os primeiros confrontos entre as milícias armadas por donos do poder político e grupos de traficantes, enquanto que o cidadão a tudo presencia como refém. Somente pela força saíremos desse estado de barbárie legalizada a que degeneramos. Diz a máxima neste espaço que "Se ages contra a Justiça e eu te deixo agir, então a injustça é minha." Melhor prepararmos nosso espíritos para o futuro que se aproxima dessa forma, com a ira de um Robespierre e a sensatez de um Marco Aurélio. Mas que a sensatez não seja fraqueza.

George Marmelstein disse...

Texto excepcional.

Obrigado por disponibilizá-lo.

George Marmelstein

Anônimo disse...

Concordo com George Marmelstein! Excelente!
Iumara.

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