
Rodrigo Leite Ferreira Cabral[1] O Brasil, com a Constituição de 1988, assumiu um claro e profundo compromisso com os direitos humanos, assentando como objetivos fundamentais, dentre outros, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a garantia do desenvolvimento nacional (CR, art. 3º), tudo isso em harmonia com os tratados internacionais, trazendo possivelmente o mais amplo rol de direitos e garantias fundamentais do constitucionalismo mundial.
[2]Esse extenso catálogo de direitos consagrados pela Constituição (“supreme law of land”), tanto em sua dimensão individual, quanto social, é dotado de inegável força normativa, sendo certo que “hoje a Contituição domina não somente o campo, relativamente estrito, da justiça constitucional, mas a totalidade da vida jurídica da sociedade, com um influxo efetivo e crescente. Se pode e se deve dizer, em conseqüência, que a Constituição operou em todo nosso sistema normativo e judicial uma verdadeira revolução jurídica de uma extraordinária significação.”
[3]Os direitos sociais, todavia, vêm sofrendo uma séria crise de falta de efetividade
[4] e o Poder Estatal, para tentar esconder sua injustificável omissão, vem invocando, com assombrosa frequência, as tradicionais reservas
[5]: a “reserva de lei” para o não-reconhecimento de direitos fundamentais constitucionalizado s (em afronta manifesta ao princípio da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais – CR, art. 5, §1º) e a “reserva do possível” para o inadimplemento de deveres prestacionais do Estado que reclamam aportes financeiros.
Independentemente das sérias objeções que se deve opor ao uso indiscriminado dessas alegações (reserva de lei e do possível)
[6], é inegável que ao Estado é imposto o dever inadiável e imediato de garantir um mínimo existencial a cada cidadão.
Conforme afirma Emerson Garcia, “o mínimo existencial indica o conteúdo mínimo e inderrogável”
[7] dos Direitos Fundamentais, sendo “geralmente associado ao princípio da dignidade da pessoa humana” ele “decorre também de outros princípios constitucionais, sobretudo da igualdade material.”
[8]Muito embora, o mínimo existencial não ostente um conteúdo específico, três direitos básicos integram sua composição: saúde, moradia e educação fundamental.
[9]Cumpre frisar, também, que “o aspecto distintivo fundamental entre os direitos que compõem o mínimo existencial e os outros direitos sociais, está no fato de que aqueles, por serem direitos mínimos imprescindíveis a uma vida digna, não se submetem à ‘reserva do possível’.”
[10]Veja-se que o conceito de mínimo existêncial jamais pode ser utilizado como forma de amesquinhar os direitos sociais ou individualizar direitos coletivos (no sentido de que ao Estado cumpre assegurar apenas o mínimo existencial) , mas deve ser visto como núcleo de direitos fundamentais que demanda prioritária e urgente implementação, especialmente nas áreas da saúde, habitação e educação.
No que diz respeito ao mínimo existencial na educação a Constituição da República, “com o objetivo de assegurar uma proteção adequada à dignidade do indivíduo, (...) impõe ao Estado o dever de oferecer a todos, gratuitamente, o ensino fundamental (art. 208, I).”
[11]Assim, a alfabetização do cidadão é o mínimo do mínimo existencial, o que revela a necessidade de uma política urgente e prioritária para superação do analfabetismo como passo inicial (juridicamente tímido, mas faticamente grandioso) para garantia do “ensino fundamental, obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria” (CR, art. 208, I) e para a “progressiva universalizaçã o do ensino médio gratuito” (CR, art. 208, II).
Assentadas essas premissas – de que a alfabetização da população constitui providência imprescindível para a garantia do mínimo existencial e de que é dever jurídico do Estado a criação de políticas prioritárias para tanto – cumpre esboçar uma sugestão de roteiro para a superação do analfabetismo, introduzindo uma linha-guia (guideline) de boas práticas para a implementação e efetivação desse aspecto educacional do mínimo existencial.
A Constitiução atribuiu ao Estado e à família o dever de promover e incentivar a educação (CR, art. 205) e, interpretando- se sistematicamente o princípio da solidariedade (CR, art. 3º), pode-se extrair o dever ético e jurídico de engajamento da sociedade civil organizada (empresas, igrejas, associações etc.) na caminhada educacional, sendo de inegável importância a conjungação de esfroços pela educação
[12], especialmente para a formação de uma vibrante força alfabetizadora.
Ao Estado – lato sensu – impõe-se, inicialmente, a realização de um mapeamento da realidade a ser trabalhada (levantamento da quantidade de analfabetos, identificação dos analfabetos, modo de operacionalizar o ensino) e a reserva financeira para por em prática a alfabetização (verba para pagamento de professores, material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde - CR, art. 208, VII).
Após, é de rigor a elaboração de um planejamento estratégico para viabilizar a alfabetização, que deve ser feito, preferencialmente, por uma equipe técnica multidisciplinar (professores, pedagogos, psicólogos, assistentes sociais, administradores) , com a previsão, pelo menos, de plano de metas, cobrança de resultados quantitativos e qualitativos, mecanismo de revisão e aprimoramento do planejamento e do método de ensino.
A realização de um plano pedagógico é, a nosso aviso, o ponto fundamental para a superação do analfabetismo. É importante o emprego de meios tecnológicos (programas audiovisuais, uso de televisão, internet) para catalizar o aprendizado. O conteúdo das aulas deve ser motivacional, explorando temas de grande interesse, a partir das necessidades mais comuns da comunidade (alfabetização funcional), potencializando- se o desenvolvimento dos traços positivos da personalidade dos alunos, contribuindo, assim, de forma sitemática e permanente para a formação de planos de vida e para solucionar problemas e necessidades práticas
[13].
Da família espera-se – principalmente na educação de crianças e adolescentes – a participação ativa e efetiva na educação, devendo ser fator de incentivo para a alfabetização e escolarização de seus integrantes, criando-se um ambiente familiar intelectualmente sadio.
A participação da sociedade civil organizada deve ser estimulada, esclarecendo- se os aspectos positivos decorrentes da evolução educacional da população, dando-se chances à comunidade para atuar concorrentemente no referido processo, especialmente com a participação voluntária de educadores (força alfabetizadora voluntária) e outras formas de ativismo, tais como franqueamento de local para as aulas, doação de material e transporte de estudantes.
Não se pode esquecer, ainda, que o Ministério Público pode ter papel central em todo esse processo de aprendizado, cobrando dos entes federados que coloquem em marcha essa caminhada, fiscalizando as metas e as providências desenhadas, podendo, também, servir como valiosa ligação entre a sociedade civil organizada e os agentes estatais.
Diante do que foi analisado, é possível concluir que a superação do analfabetismo tem forte fundamentação constitucional, apresentando- se como garantia para se assegurar o mínimo do mínimo existencial em sua perspectiva educacional, demandando, portanto, políticas públicas prioritárias. O mais importante, todavia, é a existência de uma contagiante e séria força alfabetizadora, pois é certo que – se existir vontade política e engajamento institucional e social – é possível operar-se verdadeiros milagres.
[14]Está mais do que na hora de os alfabetizadores brasileiros levarem “as letras a lugares perdidos, onde essas coisas estranhas não chegam nem de visita”
[15].
[1] Promotor de Justiça no Estado do Paraná.
[2] SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais, Estudos de Direito Constitucional, p. 178.
[3] Tradução livre: “Hoy la Constitución domina no sólo el campo, relativamente estricto, de la justicia constitucional, sino la totalidad de la vida jurídica de la sociedad, con un influjo efectivo y creciente. Se puede y se debe decir, en consecuencia, que la Constitución ha operado en todo nuestro sistema normativo y judicial una verdadera revolución jurídica de una extraordinaria significación.” (ENTERRIA, Eduardo García; TOMÁS-RAMÓN, Fernández. Curso de Derecho Administrativo, vol. I, 13ª ed., 2006, p. 114).
[4] Segundo Luis Roberto Barroso: “A idéia de efetividade expressa o cumprimento da norma, o fato real de ela ser aplicada e observada, de uma conduta humana se verificar na conformidade de seu conteúdo. Efetividade, em suma, significa a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social.” (BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de sua Norma, limites e possibilidades da Constituição brasileira. 8ª ed., p. 290).
[5] CANOTILHO, J. J. Gomes. Estudos sobre Direitos Fundamentais. ‘Bypass’ Social e o Núcleo Essencial de Prestações Sociais. Revista dos Tribunais, 2ª ed. brasileira, p. 266.
[6] Vide crítica de KRELL, Andreas J. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha, os (des)caminhos de um direito constitucional ‘comparado’. 2002, p. 54.
[7] GARCIA, Emerson. O Direito à Educação e suas Perspectivas de Efetividade. In a Efetividade dos Direitos Sociais. p.184.
[8] NOVELINO, Marcelo. Leituras Complementares de Constitucional. O Conteúdo Jurídico da Dignidade da Pessoa Humana, p. 124.
[9] NOVELINO. Op Cit., p. 124.
[10] NOVELINO. Op Cit., p. 125.
[11] NOVELINO. Op Cit., p. 125.
[12] Sobre a conjugação de esforços ou divisão de trabalho pela educação, Peter Haberle assevera que: “La educación de la juventud es un mandato constitucional, el cual se lleva a cabo mediante la división del trabajo entre los padres, el Estado y la escuela, así como otros sujetos de la educación en forma optativa (como las iglesias) y también es ejercido de manera diversa en cuanto a sus objetivos sustantivos. La Constitución no puede sustraerse a estas funciones diferenciadas de la educación para los niños hasta la enseñanza de los adultos, sino que los norma en favor de su propia permanencia.” (HABERLE, Peter. El Estado Constitucional. Universidad Autónoma del México, 2003, p. 191).
[13] GUTIÉRREZ, Jaime Canfux; JIMÉNEZ, Marbot Jiménez. Metodologia para la Educaión de Personas Jóvenes y Adultas Subescolarizadas. Disponível em: . Acesso em: 18.11.2008.
[14] Um desse ‘milagres’ mais impressionantes,é assim noticiado por Eduardo Galeano: “Em 1961, um milhão de cubanos aprenderam a ler e escrever, e milhares de voluntários apagaram os sorrisos zombeteiros e os olhares compassivos que tinham recebido quando anunciaram que fariam isso em um ano.” (GALEANO, Eduardo. Espelho: uma história quase universal. 2008, p. 307)
[15] GALEANO, Eduardo. Op. Cit. p. 306.