
Daí a necessidade do Direito, conceituado como o conjunto de princípios, valores e regras imperativas com o escopo de garantir a convivência social, limitando-se a ação de cada um de seus membros. O Direito, portanto, é concebido como a realização de convivência ordenada.
Todavia, sabe-se que o Direito depende de interpretação para ser vivificado, segundo processos lógicos adequados. Incumbe, pois, ao lidador jurídico extrair o sentido pleno dos textos legais, sob a ótica da sistemática jurídica, dando-lhe significados.
Pois bem, na atualidade, o Supremo Tribunal Federal figura como grande expoente na imprensa falada e escrita em nosso país, por força de várias questões polêmicas submetidas a seu crivo, exempli gratia, recebimento da denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República (MPF) sobre o “caso mensalão”, liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias, interceptações telefônicas, regulamentação do emprego de algemas, vedação ao nepotismo, demarcação da reserva indígena Raposa do Sol, em Roraima, aborto de feto anencéfalo etc.
Não é por outra razão que, nos dias que correm, tanto se fala ou se escreve sobre hermenêutica na seara jurídica (e até não-jurídica), tendo como principal vertente os princípios da proporcionalidade (razoabilidade) e da dignidade da pessoa humana[2].
Mas em que consiste a cantada e decantada hermenêutica jurídica?
O vocábulo hermenêutica deriva do teônimo grego Hermes, que era uma divindade detentora de inúmeros segredos, considerada capaz de revelá-los.
Diz a mitologia grega que Hermes era inventor de práticas mágicas, que conduzia as almas na luz e nas trevas, que sabia tudo, que esclarecia tudo.
Numa visão teológica, hermenêutica significa a arte de interpretar o verdadeiro sentido dos textos sagrados.
Já no âmbito jurídico, pragmaticamente falando, hermenêutica exprime a idéia de interpretação e compreensão da norma. É o descortínio do sentido e do alcance da norma, procurando a significação dos conceitos jurídicos. É preciso fazer escavações na lei para encontrar o Direito, disse Victor Hugo[3].
São vários os métodos de interpretação do Direito, desde os clássicos – gramatical, lógica, histórica e teleológica – até os contemporâneos – jurídico, científico-espiritual, tópico-problemático, hermenêutico-concretizador e normativo-estruturante.
A verdade é que o processo de interpretação do Direito é infinito, em que o exegeta funciona apenas e tão-somente como um mediador. É o que Sheakespeare, na sua tragédia Hamlet, disse pela boca de Horácio: há mais coisas entre o céu e a terra do que possa supor nossa vã filosofia[4].
Não menos verdade é o fato de o Direito ser uma Ciência eminentemente dialética, que, salvo raras exceções, não admite verdade absoluta. É dizer, a polissemia é regra nas normas jurídicas.
Leguleio jurídico à parte, uma coisa é certa: pouca importância tem o método empregado, quando razoável. Fato é que tudo é questão de escolha, já que a liberdade do Judiciário é quase que completa, só estando limitada pela obrigatória fundamentação (art. 93, IX, da CF).
Em outras palavras, o mesmo texto permite inúmeras exegeses: não há nenhuma exegese correta[5].
Trocando tudo isso em miúdos, sem circunlóquios nem eufemismos, pode-se afirmar que o ponto crítico da hermenêutica é o ponto de vista do exegeta.
Por isso que o ganhador do Prêmio Nobel da Paz (1964), pastor e ativista Martin Luther King[6], ao visitar um país estrangeiro e ser informado da excelência do Direito ali legislado, respondeu: não quero saber de suas leis; quero saber dos seus intérpretes.
Daí que, convenhamos, em um país como o nosso, carcomido pela corrupção, criminalidade e impunidade, mostram-se inconcebíveis exegeses jurídicas que ao invés de extirparem/amenizarem tais problemas só fazem fomentá-los.
A propósito, faz certo notar que a hermenêutica penal e processual penal (clique aqui), ultimamente, professada por alguns setores do Judiciário, dá azo à conclusão de que a violência, neste país, está naturalizada, banalizada e até mesmo autorizada.
Nesse cenário, apresenta-se como obrigação urgente uma mudança de paradigma. Os membros do Poder Judiciário, intérpretes necessários e permanentes do Direito e servos da população que são, não podem desprezar a hermenêutica sociológica. Por essa rota, o intérprete coloca-se diante da realidade social, nunca perdendo de vista os reflexos de sua decisão no seio da sociedade – fazendo com que o Direito cumpra sua função ordenadora da convivência social. Vale dizer, no fogo cruzado doutrinário e jurisprudencial, deve o magistrado preferir a posição que melhor atenda aos anseios sociais.
Mais incisivamente: dentro das escolhas do exegeta frente à Ciência polissêmica que é a Jurídica, o único método interpretativo razoável é o que decorre da lógica humana, do justo, que tenha ressonância congruente no inconsciente social. É a decisão que convence o Homem da Rua - o homem simples, ingênuo e destituído de conhecimentos jurídicos, mas capaz de distinguir entre o bem e o mal, o sensato do insensato, o justo do injusto, segundo a imagem criada por Piero Calamandrei (l’uomo della strada)[7].
Em desfecho, a palavra de ordem é: deve-se interpretar o Direito com um olho na lei e o outro na realidade[8] ou restará ao povo brasileiro uma só esperança, qual seja, confiar que algum dia a Justiça brasileira faça injustiça com as próprias mãos.[9]
Por César Danilo Ribeiro de Novais, Promotor de Justiça no Mato Grosso.
[2] Aliás, oportunas as palavras do Ministro Carlos Ayres de Brito: “A pretexto de defender a dignidade da pessoa humana comete-se muita indignidade contra a sociedade humana”.
[3] HUGO, Victor (texto em português: TÁTI, Miécio). Os Miseráveis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
[4] SHAKESPEARE, William. Hamlet, Ato I. Século XVII.
[5] NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos finais. Brasília: Editora da UnB, 2002, p. 155.
[6] 1929-1968.
[7] DINAMARCO, Candido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. São Paulo, janeiro/dezembro, 2001, vol.55/56, p. 67.
[8] É a lição de Marcel Planiol: “Desapareceu nas trevas do passado o método lógico, rígido, imobilizador do Direito: tratava todas as questões como se fora problemas de Geometria. O julgador hodierno preocupa-se com o bem e o mal resultantes do seu veredictum. Se é certo que o juiz deve buscar o verdadeiro sentido e alcance do texto; todavia, este alcance e aquele sentido não podem estar em desacordo com o fim colimado pela legislação - o bem social”. (Traité Élementaire de Droit Civil, 7º ed., 1.915/1.918, vol. I, n.º 224).
[9] VIEIRA, Roberto. Painel do Leitor - Jornal “A Folha de S. Paulo”. São Paulo: 18/07/2008.
9 comentários:
Que coisa. Depois desse discurso, autêntica vitrine de palavras de enfeite, no fundo uma rebuscada construção de tijolinhos gramaticais, fica ao homem da rua a certeza de que nos moldes de hoje, a Justiça tornou-se apenas uma funcionária da Injustiça. Ou como o homem simples da rua vai entender que o assassino confesso de uma jovem, depois de condenado está solto? Ou que o promotor que atropelou e matou uma família inteira, deu um "carteiraço" nos policiais e está solto? Ou que corruptos que desviam 5 bilhões de reais por ano no Brasil estão soltos? Martin Luther King, se fosse vivo e viesse ao Brasil, horas depois de chegar no aeroporto, embarcaria de volta e diria aos pasmos jornalistas americanos: Assim que soube das leis, nem quis saber dos seus intérpretes naquele triste país. Mas é tudo uma questão de ponto de vista. Eu atropelo e mato sua família e fico solto. Você risca minha caminhonete e vai preso por desacato. Isso é exegese da justiça brasileira, é polissemia pura do conceito de Justiça, é hermenêutica final do enunciado das leis.
Excelente artigo. Resumiu tudo. Júlio Lopes, juiz de direito
Gostei!
Dr. César,
Há um certo sarcasmo no seu texto, saudável indício de insatisfação com a ordem instituída. Mas é compreensível dada a sua profissão. O Sr. é claro na argumentação e apresenta um traço do chamado 'homem da rua', que Sr. mesmo cita. Essa espécie de confusão de raciocínio parece habitar a cabeça de qualquer advogado, profissional que pratica a multidisciplinaridade toda hora. Participo de sua inquietação.
Sou estudante de Direito, com foco na magistratura.
Saudações,
Julga-se em favor da sociedade ou da bandidagem. Existem argumentos pra tudo. O resto é conversa fiada. O texto é muito bom. Parabéns!
Seguindo a linha do texto em testilha são as palavras do Min. Eros Grau:
http://www.domtotal.com/multimidia/audio_video_detalhes.php?mulId=33&mulArqId=101
(Copie e cole na barra de navegação)
Dr Carlos,
Sou acadêmica de Direito. Fiquei impressionada com o artigo.
De fato, tanto se fala ou se escreve sobre hermenêutica na seara jurídica ... para mim, uma simples iniciante um texto dessa natureza só soma meus conhecimentos de forma muito positiva!
Excelente!
Somhara Salassiene
Salvador - Bahia
Prova de que é possivel defender qualquer ideia, seja ela boa ou ruim (tudo depende do ponto de vista do intérprete), sao as palavras do Min. Marco Aurélio, quando ele diz que: primeiro busca a solução mais justa para o caso, e só depois passa a buscar a fundamentação legal.
Estudante de direito, com foco para o Ministério Público.
Compreender o Direito é muito fácil!! Basta vc fazer parte de uma família. Lá vai estar praticamente tudo o que rege a vida em sociedade. Um pai (magistrado), mae (ministerio publico), irmaos (sociedade) e vizinhos (outros países). E, assim vai... há regras tácitas, náo solenes! Os filhos sabem o que podem ou nao fazer, reivindicar, opinar nas finanças, contribuir com formulaçoes de novas normas. Reclamar algo que lhes atingiu dentro do prazo de prescriçao, ou dos pais, se houver demora das atitudes (decadencia)... e por aí a fora... simples... simples... simples! abraço!
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