A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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20 de agosto de 2010

O Risco de Injustiça Qualificada


Os assassinatos de Mércia Nakashima e Eliza Samudio, ocorridos recentemente, ganharam notoriedade midiática e, conseqüente, repercussão na sociedade brasileira. Há um mesmo pano de fundo em ambos os casos: a violência contra a mulher.

A violência contra o gênero feminino está em todos os estratos sociais. É uma das principais causas mortificantes de mulheres: mais que guerras, acidentes de trânsito e cânceres.

“O recurso à força física por parte dos homens era, no fim do século XIX, o único resquício do tempo das cavernas que ainda resistia ao avanço da civilização”, escreveu John Stuart Mill em seu ensaio Sujeição das Mulheres. Pior que isso é constatar que, em pleno terceiro milênio, essa brutalidade atávica ainda persiste na humanidade.

Os feminicídios de Mércia e Elisa causaram indignação coletiva, ocasionando significativo clamor pela concretização, o quanto antes, da Justiça, com a punição implacável dos culpados.

Mas será que haverá Justiça?

O precedente não é nada bom e animador. No dia 20 de agosto de 2000, o jornalista Antônio Pimenta Neves, por motivação torpe e sem dar chance de defesa, deu cabo à vida de sua ex-namorada Sandra Gomide, também jornalista. Réu confesso, foi levado a Júri popular, que exarou veredicto condenatório, resultando na pena de 19 anos e 02 meses de reclusão, que foi reduzida por duas vezes: a primeira, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, para 18 anos; e, a segunda, pelo Superior Tribunal de Justiça, para 15 anos. Há ainda recurso pendente no Supremo Tribunal Federal, cujo objeto é a anulação do julgamento popular.

Há exatos dez anos, portanto, o assassino em questão está impune do homicídio biqualificado, já que passou menos de 07 meses preso, pois foi beneficiado por habeas corpus.

Esse descalabro tem nome: absolutização do princípio da presunção de inocência. É a famigerada jurisprudência imperante no Poder Judiciário brasileiro de restringir a liberdade do réu apenas com o advento do trânsito em julgado da decisão condenatória. Em outras palavras, a bandeira de atuação da toga palaciana é obstar o encarceramento de um suposto inocente, ainda que réu confesso. Isso se verificou no HC 84078-7, em que o Supremo Tribunal Federal decidiu que não pode haver prisão do réu por força de sentença ou acórdão, antes do trânsito em julgado, face ao princípio da presunção da inocência. Dito de outro modo, restou decidido que, em regra, ninguém deve ser tido por culpado até o esgotamento de todos os recursos.

O interessante disso tudo é que, em um sistema jurídico em que não se admite direitos absolutos – nem mesmo a vida -, como é o brasileiro, paradoxalmente, a Suprema Corte nacional parece idolatrar o princípio da presunção da inocência, como se absoluto fosse.

No entanto, vale ressaltar que, no Direito Transnacional, cujo Estado brasileiro é filiado, a regra é que todo acusado se presume inocente até prova de sua culpa em um tribunal, v.g. Declaração Universal de Direitos Humanos (artigo XI), Convenção Européia dos Direitos Humanos (artigo 5, 1, “a”), Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU (artigo 14, 2), Pacto de San José da Costa Rica (artigo 8º, 2, e Estatuto de Roma) e Tribunal Penal Internacional (artigo 66, I).

Nota-se, então, que, neste país, há, a bem da verdade, uma interpretação equivocada sobre o alcance do referido princípio, já que o absolutiza, fato que, diante de uma miríade de recursos, fomenta o abuso do direito de defesa e promove, por corolário, a impunidade. Com isso, impossível não lembrar da máxima de Marques de Maricá: “O sistema de impunidade é também o promotor de crimes”.

Assim, valendo-se da metáfora de Geraldo Ataliba, pensar que a impunidade possa ser acolhida num Estado Constitucional, sob qualquer disfarce, é imaginar que se pode construir uma fortaleza para dar segurança e nela instalar um portão de papelão. E seria exatamente isso o que teria sido construído, constitucionalmente, se continuarem a interpretar o princípio da presunção da inocência em detrimento da vida, da liberdade e da paz dos demais componentes da sociedade, que são, indiretamente, sujeitos passivos do crime.

Diante desse quadro infeliz, resta concluir que é tempo de abandonar o-tudo-pro-réu-e-o-nada-pra-sociedade, hasteando-se a bandeira pela defesa da ordem social e, principalmente, da vida humana. É verdade que a prisão provisória não é justiça pronta e acabada, porém, é fato que ela é instrumento garantidor para que a justiça não se transmude em injustiça qualificada (Rui Barbosa), qual seja, justiça tardia, em detrimento da própria credibilidade do Judiciário. Do contrário, Mércia e Eliza estarão apenas engrossando a fila já ocupada por Sandra Gomide e outras tantas vítimas, cujos sangues derramados pela maldade masculina sequer implicaram na punição dos culpados.

Por César Danilo Ribeiro de Novais, Promotor de Justiça (MT) e editor do Blog www.promotordejustica.blogspot.com

3 comentários:

Fernando Zaupa disse...

Caro César Danilo...
a proposta para meu blog era não fazer transcrições de artigos ou matérias...
Mas; devo admitir, em meio a brilhante digressão que estampara em seu blog, mostrando que em meio a tantos 'laxistas' e inescrupulosos, em variadas vertentes do direito e 'órgãos de justiça', existe ideais e pensamentos voltados às pessoas de bem (vítimas!), tenho que há que ser destacada toda ação, voz e atitude que lute contra o absurda onda de injustiças, impunidades e descalabros que assolam nosso país!
Assim, eis breve desabafo, para destacar que postei seu texto em meu blog (www.considerandobem.blogspot.com)
Parabéns e força sempre!
Abraços
Fernando M. Zaupa
Promotor de Justiça (Campo Grande-MS)

Manu disse...

Aplaudo de pé esse artigo coerente e atual. Nossos julgadores precisam sair de seus gabinetes e presenciar a realidade das milhares de mulheres que são atendidas nas Delegacias da Mulher de nosso país. Em verdade, deveriam levar "um tapa na cara" como muitas mulheres pelo mundo afora e pelo Brasil, para só então sentirem na pele o que significa ser vítima de violência doméstica. É inconcebível que, nos tempos de hoje, ainda se admita que um condenado por um crime que tenha uma mulher como vítima seja tratado como um réu de ofensividade mínima.[Leia-se: em briga de marido e mulher não se mete a colher!! Jarguão ainda muito utilizado - mesmo que subliminarmente - pelos nossos julgadores em suas decisões patéticas acerca do assunto.] Isto porque é notório que a violência praticada contra a mulher além de deixar marcas no corpo, deixa marcas na alma dessas vítimas amarguradas.

Abraços,

Manuela Ferreira
Servidora Pública do TJPE

Renata Ramos - Advogada disse...

Parabéns pela coragem em sustentar o que a maioria quase absoluta dos juristas brasileiros não ousam mais sequer citar. Engraçado como a inversão de valores vem sendo aplaudida pela nossa doutrina, que aos montes vão se filiando ao extremo garantismo. Eu também não quero acordar com o Estado deitado em minha cama, mas não consigo dormir com as lágrimas das vítimas encharcando meu travesseiro.

Bravo!

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