A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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20 de maio de 2008

Pena é castigo. Ressocialização é falácia.



Supondo que o pai e a madrasta de Isabella Nardoni tenham sido efetivamente os autores do crime perpetrado, a justificar provável condenação penal, cabe perguntar, não obstante, o seguinte: por que punir? Ou ainda: qual o sentido do castigo?

Bem, não parece ser o caso de punir para fins de ressocialização (prevenção individual), porque os supostos autores não têm registro de antecedentes criminais, exercem atividade lícita etc., e até então se relacionavam normalmente com as pessoas com as quais conviviam, a criança morta inclusive; e nada sugere que voltarão a delinqüir, especialmente contra os outros filhos, se mantidos em liberdade. Ao contrário, enclausurá-los na prisão parece tender mais à dessocialização, inclusive dos outros filhos do casal, pois a prisão tende a atingir não apenas os efetivamente encarcerados, mas também aqueles que dependem destes.

Também não parece ser o caso de prevenção geral negativa, isto é, evitar que outras pessoas tomem o caso como exemplo e tendam a praticar crimes semelhantes. É que, como regra, os pais não maltratam ou matam seus filhos simplesmente porque não têm razão alguma para tanto. Afinal, seus interesses e instintos são normalmente no sentido contrário, isto é, de preservá-los a todo custo, por vezes sacrificando suas próprias vidas. Dito de outro modo: a eventual impunidade dos pais que ofendam ou matem seus filhos dificilmente será tomada como referência para prática de atos semelhantes.

Talvez se pudesse então dizer que castigar tal delito é necessário como forma de prevenir reações públicas ou privadas arbitrárias contra os autores do crime (Ferrajoli), mas também esse argumento não parece convincente. Sim, porque, sendo os pais e a família, além da própria criança, as principais vítimas dessa tragédia, é pouco provável que tal viesse a ocorrer. De todo modo, caberia aos interessados, ao Estado inclusive, agir de modo a prevenir tais atos de vingança.

Parece enfim que as teorias preventivas não são capazes de justificar, razoavelmente, a inflição do castigo neste caso específico.

Restariam assim três possibilidades: castigar simplesmente porque um crime foi cometido, ou seja, independentemente de considerações utilitárias ou preventivas (Kant/Hegel); ou, ainda, inflingir o castigo como forma de afirmação contrafática da validade do direito (Jakobs); e, finalmente, não castigar porque a pena é absolutamente irracional e, como tal, constitui uma violência que se acrescenta inutilmente a uma outra violência, que nenhum benefício pode acarretar para os indivíduos ou para a sociedade (Hulsman/Scheerer). Seria um simples fato de poder sem nenhum fim legítimo (Zaffaroni).

Seja como for, parece não existir uma razão universal para castigar, isto é, aplicável a todo e qualquer caso e, pois, válida para além do tempo e do espaço, motivo pelo qual cada caso pede uma legitimação/deslegitimação particular.

Além do mais, as leis penais supõem uma regularidade de expectativas, emoções e interesses que simplesmente não existem. É que no fundo praticamos crimes pelas mesmas razões que não os praticamos, isto é, porque temos ou não motivações para tanto; e essas motivações variam de pessoa para pessoa e são sempre novas, permanentemente em mutação.

Talvez por isso ou também por isso tenha razão Nietzsche quando afirmara que é impossível saber por que realmente se castiga, e que o que chamamos justiça não é outra coisa senão uma transformação do ressentimento e, pois, uma forma de vingança com nome diverso.1

1 A Genealogia da Moral. S. Paulo: Centauro editora, 2004.

Por Paulo de Souza Queiroz, doutor em Direito (PUC/SP), é Procurador Regional da República, Professor do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e autor do livro Direito Penal, parte geral, S. Paulo, Saraiva, 3ª edição, 2006.

4 comentários:

Anônimo disse...

Bem eu sou esposa de um apenado que no momento encontra-se no Presídio Central poa/RS ele ja esteve em penitenciarias como exemplo Modulada em charqueadas, tive oportunidade de conhecer os semi-abertos e conclui que a ressocialização deveria começar no momento da entrada do individuo na sociedade carceraria atualmente pessoas que comentem delitos como muitos chamam (marginais) pois bem estas pessoas tem seus motivos muitos deles nós nao percebemos ... ao inves do o governo oferecer trabalho produção atraves de convênios com indústrias muitas organizações poderiam se beneficiar com esta ação e os apenados poderiam em troca receber salário, material higiênico e uma boa alimentação pois hoje são tratados como animais sem um colchão para dormir sem um sabonete para tomar banho etc....

Luis Henrique disse...

Sou acadêmico de direito e, no entanto, não acredito que a aplicação de pena privativa de liberdade, com adentro especial ao caso em questão, não possui finalidade de aplicação. Ora, a tutela jurisdicional estatal é uma segurança jurídica a que a sociedade merece resguardo quando um delito é praticado. E ela deve ser prestada, não só como meio preventivo e repressivo de condutas ilícitas, mas como o garantismo penal que promove a sensação de segurança jurídica. Resta provado que os altos índices de reincidência criminal se dão pelo simples fato da sensação de impunidade a que os casos sem solução são revelados à sociedade. É preciso que a lei "faça valer", DURA LEX SED LEX. É pelo contrato social (contratualistas) que optamos, e é pelo regime democrático de direito que a tutela jurisdicional deve ser prestada visando resguardar os valores que ainda restam da legislação vigente. Concordo com o caráter inexistente de ressocialização da pena no nosso atual cenário brasileiro, no entanto, não é pelas precárias condições que os presídios brasileiros oferecem para a reabilitação dos presos, que devemos nos calar diante da aberração de um homicídio, a vontade da lei, a que sucumbe a voz do povo, deve prevalecer, antes que instaure-se a anarquia da impunidade em nosso país.

Elisângela disse...

Concordo Perfeitamente Luis, Parabéns pelos argumentos!

Anônimo disse...

Então revoguemos o código penal! Protejamos os lobos e sacrifiquemos as ovelhas! O articulista, como niilista, é mais santo que o próprio Deus que pune, mas não tem a mínima compaixão pelas vítimas. Porventura ficaria calado diante de um desacato à autoridade perpetrado contra si ó V. Exa/Santidade?

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O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)