A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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24 de dezembro de 2008

Maldade


Guimarães Rosa indagava o seguinte: “Se todo animal inspira ternura, o que houve, então, com os homens?”

Sem dúvida, o instinto serve melhor aos animais do que a razão serve ao ser humano. O animal mata para se alimentar ou se defender, ao passo que o homem mata por maldade, para ver sangue jorrar. É dizer: definitivamente, não é na mata que se mata criminosamente, mas no mundo dos racionais, dos denominados “civilizados”.

Nesse sentido, vale a pena uma reflexão sobre o brilhante texto "Cultura e Crueldade" de Aldo Pereira, publicado no jornal "A Folha de S. Paulo" de hoje.

***

Cultura da Crueldade

Nas horas que precedem a tourada, auxiliares se ocupam de preparar o touro. Penduram-lhe no pescoço pesados sacos de areia, para fatigar os músculos que acionam as chifradas.

Passam-lhe vaselina nos olhos para embotar-lhe a visão. Desde a véspera, ou até antes, não o alimentam. Na pouca água que lhe dão, misturam purgantes: perda de fluidos e sais na diarréia irão levá-lo mais cedo à exaustão.

A intenção é reduzir-lhe a capacidade de lutar, não a disposição, que buscam excitar ao confiná-lo em curral escuro e exíguo. Ali, golpeiam-lhe os rins e espicaçam os testículos com longas agulhas. Quando finalmente o deixam galopar para a falsa liberdade da arena, o touro primeiro estaca, aterrorizado, furioso, aturdido pelo sol que reverbera na areia.

Depois, ataca o primeiro inimigo a provocá-lo: o picador, toureiro montado e armado de lança, pernas protegidas por armaduras. Enquanto chifra o cavalo (precariamente protegido pela "calzona" de camurça) e o comprime contra o muro da arena, o touro expõe a nuca a pontaços da "puya", ponta piramidal da lança. Afiadas arestas da "puya" rasgam o couro e rompem tendões e ligamentos sem aprofundar os ferimentos.

Para prevenir importunos relinchos de terror, prévia operação sem anestesia terá extirpado as cordas vocais do cavalo. Se incapacitado por chifradas, ele será abatido. Mas, caso lhe sobre alguma força, passará por grosseira sutura dos ferimentos, sempre sem anestésico, para ser aproveitado na tourada seguinte. (Tipicamente, cada corrida sacrifica seis touros numa tarde.) Em média, cavalo de tourada sobrevive a três ou quatro espetáculos.

Depois do picador, toureiros subalternos virão atormentar o touro com as bandarilhas que lhe fincam no dorso enquanto o rodeiam e confundem. Corcovos para livrar-se desses dolorosos arpões coloridos meramente aumentam lacerações e o sangramento do touro, mas divertem e excitam o público.

Entra em cena o matador. Também ele terá passado por preparativos esmerados. Entre estes, oração contrita perante réplica da chorosa Virgem da Macarena, santa tutelar dos toureiros. Na arena, depois de elaborado balé de esquivas e rodopios da "muleta" (capa usada no ato final), o toureiro se posta diante do touro exausto e atordoado, arranca em curta corrida e crava-lhe a espada num dos lanhos abertos pela "puya".

A lâmina pode penetrar mais de meio metro, perfurar um pulmão e também alguma artéria grossa; hemorragia profusa fará o touro golfar sangue enquanto sufoca e tomba.Tentará reerguer-se, mas outros toureiros acorrem para cravar-lhe entre vértebras da nuca repetidos golpes de "puntillas" (adagas), para destruir-lhe a medula espinhal e paralisá-lo. Exultação orgástica do público.

Acenos de lenços brancos sinalizam ao diretor da tourada que conceda ao toureiro a honra de decepar uma orelha do touro que, ainda consciente, bufa sangue e agoniza. Insistência do público rende as duas orelhas. Enquanto contorna a arena para exibir os troféus, o toureiro pisa cravos vermelhos, leques, mantilhas: oferendas simbólicas de mulheres excitadas pela virilidade do herói.

Matanças e torturas recreativas continuam vastamente distribuídas no mundo: boxe, rinhas de galo, rodeios, lutas de cães, caçadas e pescarias "esportivas" -difícil completar a lista. Mas, enquanto boxe e rinha conotam crueza cafona, vulgaridade e gangsterismo barato, tourada é sofisticação perversa, com pretensões de refinamento aristocrático, arte, romance -e interesses financeiros muito mais cobiçosos.

Esses atributos a projetam como epítome de todas as tradições que degradam por igual espectadores, promotores, patrocinadores e os governantes que prevaricam ao dever de proscrevê-las. Alguns, como a família real espanhola, até as prestigiam.

A maioria do povo espanhol não se compraz com touradas. Porém, para elevá-lo da indiferença à vergonha, turistas deveriam gastar noutros países os US$ 50 bilhões que todo ano deixam na Espanha. Boicotar também patrocinadores de touradas, como a Pepsi-Cola, e oportunistas como Giorgio Armani, que desenhou o "traje de luces" para o matador Ordóñez usar na "Corrida Goyesca" de setembro último.

Protestos e boicotes funcionam: forçaram a Mattel a tirar de linha bonecas Barbie fantasiadas de toureiro. Aliste-se. É simples: condene visitas à Espanha enquanto esse rito de crueldade macular de sangue seus esplêndidos tesouros culturais.

Por Aldo Pereira, é ex-editorialista e colaborador especial da Folha de S. Paulo.

Fonte: Jornal "A Folha de S. Paulo" de 24/12/2008.


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2 comentários:

Anônimo disse...

Sempre que vi filmes ou reportagens de touradas, pareceu-me um espetáculo que tinha sim, um pequena dose de coragem do toureiro e no mais apenas um grande treinamento de malabarismo para ele escapar das chifradas do animal. E eu imaginava que o touro entrava na arena com todo o vigor de sua força, fisicamente preparado para a luta.

Então fazem todas essas obscenidades, essas baixezas com o animal e isso há coisa centenas de anos e consideram tudo isso grande e heróico embate contra um animal? Que coisa mais deprimente e vergonhosa para a chamada hombridade espanhola.

Se a maioria do povo espanhol repudia as touradas, muito bem faz.

Mas considerando o sofrimento estarrecedor e inútil do touro, dos cavalos e a hipocrisia da aura de romance e coragem concedidas aos toureiros e tendo eu lido que até a família imperial espanhola prestigia as touradas, só me ocorre um pensamento.

Tendo o rei Juan Carlos perdido a paciência com Hugo Chaves há tempos atrás, seria também o caso de todos que se indignarem com essa barbárie mandarem a para a casa real da Espanha, mensagens com uma simples pergunta:

- Porque não te envergonhas?

Anônimo disse...

Prezado colega,

Parabenizo a todos por esse excelente sítio.

Sou membro do Ministério Público da Paraíba e gostaria de obter permissão para postar em site da APMP, bem como em grupo do google, formado por Promotores de Justiça a matéria "MALDADE", datada de 24.12.2008, em sua integra, inclusive com a transcrição do texto de "A Folha de São Paulo".

Atenciosamente

Ana Cândida Espínola

Promotora de Justiça
1a. Promotoria de Família de Campina Grande- Ministério Público da Paraíba

e-mail para resposta: anacandidaespinola@hotmail.com

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