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12 de fevereiro de 2009

Artigo 212 do CPP - Parecer MPF


Habeas Corpus n.º 118092/DF
Processo n.º 2008/0223543-7
Impetrantes: Ministério Público do Distrito Federal e Territórios e a Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Distrito Federal
Paciente: Thiago Anderson Leite da Silva
Impetrado: Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios
Relator: Ministro Paulo Gallotti – SEXTA TURMA

Ordem de habeas corpus. Desrespeito ao art. 212 do CPP, caput e par. único. Inquirição da testemunha pelo magistrado anteriormente às partes. Nulidade absoluta. Malferimento aos princípios constitucionais do acusatório, da igualdade jurídica, no seu viés da paridade de armas, e da imparcialidade do juízo. Legitimidade do Ministério Público e da OAB como impetrantes. Parecer pela concessão da ordem, para que seja declarada a nulidade da audiência referida, bem como dos atos a ela subseqüentes e dependentes.

Colenda Turma:

Trata-se de ordem de habeas corpus, com pedido de liminar, pela qual o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios e a Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Distrito Federal, insurgem-se contra acórdão proferido pela 1ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.
O paciente, denunciado pela suposta prática de tentativa do crime de furto duplamente qualificado (art.155, § 4°, incisos I e IV, c/c o art. 14, inciso II, ambos do Código Penal), teve, contra si, julgado parcialmente procedente o pedido condenatório, a impor-lhe a pena de 01 (um) ano, 05 (cinco) meses e 10 (dez) dias de reclusão, em regime semi-aberto, e o pagamento de 22 (vinte e dois) dias-multa, à razão mínima, por incurso nas sanções do art. 155, §4º, I, c/c o art. 14, II, ambos do CP, como se colhe da sentença acostada às fls. 194/208 dos autos.

Sucede que, no processo de conhecimento, abertos os trabalhos, em audiência de instrução datada de 11/09/2008 (termo acostado à fl. 41), aduzem os impetrantes, ocorrida nulidade absoluta, derivada da inobservância pelo juiz do quanto prescrito no art. 212 do CPP, que, em arrepio às recentes modificações legislativas (Lei 11.690/2008), teria arrogado a si o direito de, primeiramente, interrogar a testemunha, em detrimento das partes, para quem tão-só posteriormente teria sido deferida a palavra.

Vislumbrando o vício apontado, impetraram, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios e a Ordem dos Advogados do Brasil, habeas corpus perante o Tribunal de Justiça, requerendo fosse declarada a nulidade da audiência de instrução referida. Ao entender dos impetrantes, encontrando-se disposto no art. 212 do CPP, caput e par. único, poder o juiz, após as perguntas formuladas pelas partes, e tão-só, complementar a inquirição tendo em vista os pontos não esclarecidos, eivada de nulidade absoluta - porque atentatória ao princípio acusatório e ao devido processo legal - restaria a audiência de instrução

Levada a julgamento, indeferiu-se liminarmente a ordem com espeque no art. 663 do CPP. Primeiramente, aduziu o órgão colegiado a inadequação da via, visto que teria sido utilizada em prejuízo do paciente, em favor tão-só da tutela dos direitos do Estado na persecução penal (fl. 61), que seria representado, aqui, pelo “(...) direito do Ministério Público de fazer perguntas às testemunhas de acusação em primeiro lugar, seguindo-se a defesa e, por fim, se o caso (sic), o juiz” (fl. 62), o que lhe retiraria a legitimidade para a causa. Ilegitimidade essa que se estenderia igualmente à OAB, pelos mesmos motivos. Consignou-se, nessa mesma linha de raciocínio, que não competiria aos impetrantes substituírem a advogada do réu, regularmente constituída nos autos. Por fim, no âmbito das preliminares, segundo o entendimento esposado pelo Tribunal, não haveria in casu sequer ameaça à liberdade de ir e vir do paciente pelo descumprimento do dispositivo processual.

Ressaltaram os julgadores, de outra banda, que o vício suscitado é de índole relativa, a exemplo do que entende a jurisprudência do STJ em relação à inversão da ordem de inquirição das testemunhas de acusação e defesa, sendo imperativo, dessa forma, que tivesse sido comprovado o efetivo prejuízo, a par de que se o impugnasse no primeiro momento em que coubesse à defesa pronunciar-se nos autos, o que não teria ocorrido.

Irresignados, insurgem-se os impetrantes contra o acórdão distrital por intermédio desta ordem, pugnando a declaração da nulidade da audiência referida. Sucessivamente, caso se entenda haver supressão de instância para o conhecimento da ordem pela Corte, que seja determinado à instância a qua, superando os óbices invocados, examine as ilegalidades deduzidas no writ originário.

A liminar foi indeferida (fls. 130/132).

Era o que havia para relatar.

Primeiramente, no que concerne à adequação da via, assiste razão aos impetrantes. Inexiste qualquer óbice ao reconhecimento de nulidade pela via do habeas corpus, sendo esse entendimento placitado pela jurisprudência de nossas Cortes superiores. Aliás, no próprio acórdão guerreado é trazida à colação jurisprudência que se deu no bojo do referido writ, alusivas à inversão da ordem de inquirição das testemunhas de acusação e defesa. Não obstante tenham as ordens colacionadas sido denegadas (daí servindo aos propósitos da autoridade coatora), foram todas, para tanto, conhecidas, o que revela a pertinência do habeas corpus para trazer à baila discussões concernentes às nulidades processuais.

A legitimidade do Ministério Público para a impetração da vertente ação constitucional encontra-se expressamente consignada no art. 654 do CPP. No caso presente, o que se objetiva, ao contrário do exposto pelo TJDFT, não parece ser a defesa de interesses exclusivos da acusação, em detrimento do réu (paciente). Ao contrário, na petição inicial, expõe-se de maneira fundamentada o malferimento aos princípios do devido processo legal, do sistema acusatório e da imparcialidade do juiz, trazendo-se aos autos farta documentação que atesta, ademais, a recalcitrância dos juízes do Distrito Federal, ressalvada a generalização, sempre indevida, em cumprir o dispositivo em apreço, como se fosse dada a eles uma tal possibilidade. Do documento acostado às fls. 126/127 dos autos, por exemplo, infere-se a realização de reunião com desembargadores do respectivo Tribunal, na qual se assentou a orientação de que os juízes simplesmente iniciassem as perguntas(!), como se não fossem cogentes os dispositivos processuais.

Dessa forma, tem-se que, na vertente ordem, não encartados interesses acusatórios, derivados do exercício do Estado de seu potestas puniendi; ao contrário, busca-se, como arrematam os impetrantes, “a prevalência do arcabouço normativo processual constitucional” (fl. 19), tal como disposto em linhas volvidas. Em outras palavras, a defesa da ordem jurídica, sendo essa, como se dessome do art. 127, caput, da CF, uma das funções institucionais do Ministério Público, decorrendo daí a sua legitimidade. Não obstante se lhe reconheça, em relação às ações penais públicas, a figura de dominus litis, dúvida não há de que deve primar pelo cumprimento dos preceitos constitucionais e legais, sendo pertinente a sua ação em favor dos réus quando normas de garantia estabelecidas como limites ao exercício do poder de punir do Estado sejam descumpridas, como se afigura o maltrato aos princípios constitucionais referidos. Isso, independentemente de o patrono do réu ter se insurgido ou não, porque deve se entender nesses casos, de tutela da liberdade individual, que o esforço é cumulativo, comum, e, não, exclusivo, sendo certo, ademais, que o cumprimento dos preceitos processuais não está sujeito à livre disposição dos atores processuais. O mesmo raciocínio deve ser estendido à OAB, a quem incumbe, ex vi do art. 44, I, da Lei 8.906/94, “defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”.

Ultrapassadas essas questões preliminares, é de se ver que o cerne da questão repousa em se saber se a nulidade engendrada pela não observância do que dispõe o art. 212, caput e par. único do CPP, i.e., se a inquirição das testemunhas primeiramente pelo juízo (e, posteriormente, pelas partes) teria, ipso facto, o condão de determinar a declaração de nulidade do processo desde a audiência de instrução, por se tratar de nulidade absoluta, ou, ao contrário, tratar-se-ia de nulidade relativa, a exigir, além de sua alegação opportuno tempore, a demonstração de prejuízo.

Dúvida não há de que o tema nulidades está intrinsecamente ligado à existência de prejuízo, seja este efetivo ou potencial (art. 563 do CPP). Todavia, mesmo partindo-se dessa premissa, há que se diferenciar aqueles vícios gravíssimos, nos quais o desrespeito às formalidades legais implicam violação aos princípios constitucionais direta ou reflexamente (nulidade absoluta), daqueles outros decorrentes da não-observância de formas estabelecidas no interesse exclusivo da partes, vale dizer, que não importam atentados à própria função jurisdicional.

A depender justamente dos interesses envolvidos na nulidade, se prevalentemente públicos ou privados, é que se deverá cunhar de absoluto ou relativo um vício que inquine o processo. Se as formas são estatuídas no preponderante interesse das partes, cabe a elas verificarem se o seu desatendimento causa gravame a sua esfera jurídica, oferecendo impugnação. Ao revés, se o que se sobressai é o interesse público na tutela das liberdades individuais, não há, para as partes, qualquer disponibilidade, daí se dizer que as nulidades absolutas não estão sujeitas a prazos preclusivos, não se convalescendo nem mesmo ante a coisa julgada, porquanto atentatórias à própria função jurisdicional, à própria qualidade da jurisdição prestada.

O direito, e isso é consabido, lida com abstrações. Ninguém ousa dizer, por exemplo, que as hipóteses de incompetência absoluta não encartam nulidades absolutas. Jamais, todavia, para esses casos, foi requerida pelos órgãos judiciários a demonstração de efetivo prejuízo. Em outras palavras, o prejuízo decorre da violação singela ao quanto preceituado na Constituição ou na lei. Assim, processo desse jaez é considerado nulo, mesmo que à defesa tenha sido assegurado incensurável contraditório e inexistam sequer indícios da imparcialidade do órgão judicante.

No caso vertente, o juízo negou aplicação ao disposto no art. 212, caput e par. único do CPP, procedendo, desde logo, à inquirição das testemunhas, sem, antes, deferir a possibilidade às partes. Afastou-se o juízo, assim, do comando legal, que determina seja sua iniciativa eminentemente complementar, e não substitutiva, como parece se afigurar sempre que sonegadas às partes a produção probatória, violando, dessa forma, como, aliás, escorreitamente dispôs a defesa, o princípio constitucional do acusatório (art. 129, I, da CF).

O caráter complementar da atuação judicial, finda a inquirição das testemunhas pelas partes, ainda assim, deve ser interpretado com parcimônia, para dele não se extrair possa o juiz, genericamente, estender o conjunto probatório, substituindo autor e réu em seu mister. Assim, uma interpretação consentânea com o princípio acusatório informa que somente poderá o juízo proceder à inquirição das testemunhas sobre fatos que, para ele, não tenham se quedado claros, mas que já tenham sido agitados pelas partes. Essa deve ser a interpretação conforme a Constituição do dispositivo legal, porque consoante ao princípio acusatório nela albergado.

Isso, porque não há como negar que admitir a figura de um juiz inquisidor, gestor da prova, é, concomitantemente, admitir um juiz comprometido psicologicamente com a prova, tanto ao produzi-la, quanto ao valorá-la. Primeiro, porque, p.e., ao dirigir suas perguntas às testemunhas, quando nada de concreto existe acerca do crime, senão a tese acusatória, age, porque de modo diverso não poderia mesmo ser, impelido pela visão que tem dos fatos narrados na denúncia (formulada pela acusação), o que significa dizer possa consubstanciar, desde que assuma a veracidade de sobredita tese ao sair ao encalço das provas, uma extensão da acusação, a comprometer-lhe o devido alheamento em relação ao caso penal. Segundo que, uma vez produzidas as provas, restará a tentativa de legitimá-las discursivamente, a partir dessa crença primeira acerca dos fatos que lhe orientou a conduta. A problemática se intensifica quando se tem em vista que, no processo penal, vige o princípio da presunção de inocência e seu corolário “in dubio pro reo”, a imporem à acusação um amplíssimo, senão mesmo integral, ônus probatório, derivando daí a desnecessidade ou a própria inutilidade de que o juiz produza prova que venha a favorecer à defesa, o que poderia, ademais, caso se vislumbrasse a pertinência da possibilidade, entrever a atuação oficiosa do magistrado como instrumento paritário às partes, o que não sucede.

Dessa forma, embora seja mesmo um delírio exigir-se um juiz sem predisposições, psicologicamente não-orientado, ser humano que é, ao final, para os efeitos de igualdade e imparcialidade reclamados, o que importa, precisamente, é não ter sua atuação constituído mecanismo de extensão do conjunto probatório. Certamente, a gestão das provas constitui uma das vigas mestras do processo penal. Com efeito, e isso em muito maior medida para a acusação, em face do princípio da presunção de inocência e seu corolário “in dubio pro reo” já referidos, toda a argumentação trazida à baila pelo Ministério Público, para que esteja revestida da necessária idoneidade, vale dizer, para que possa servir, argumentativamente, ao convencimento judicial e, assim, elidir o princípio da presunção de inocência, deve encontrar-se amparada por provas; de modo contrário, de nada vale. Daí por que se aduzir deva o juiz, em relação à gestão da prova, manter-se inerte, evitando constitua, a partir de sua atuação oficiosa, uma possibilidade de prova em favor da acusação.

Na hipótese dos autos, tem-se mesmo situação esdrúxula. Não se arrogou o juiz uma possibilidade probatória que fosse sequer supletiva às partes, o que se daria tivesse, p.e., dirigido, após as perguntas do autor e do réu, suas próprias às testemunhas, independentemente de terem sido ou não agitadas pelas partes. Não! Antes mesmo, arrogou-se a posição de protagonista na produção probatória, substituindo-se ao órgão da acusação, formulando as perguntas em seu (no da acusação) interesse, o que, à evidência, coloca frontalmente em xeque o princípio acusatório, visto que se tem por inadmissível deva a separação dos órgãos de julgamento e acusação ser estritamente formal ou que a ela se sobreponha o princípio da verdade real.

A invocação do princípio Pás de Nullité Sans Grief, ademais, não merece acolhida. De fato, se as normas processuais penais constituem normas de garantia, com o fito de proporcionar o devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF), o seu descumprimento é que deveria justificar-se, vale dizer, deveria caber ao Estado-juiz a prova de que o processo se deu com a regularidade que é constitucionalmente assegurada, apesar das sacudidelas, e não o acusado, que apenas reclama o cumprimento daquilo que, nos códigos processuais, se encontra estatuído e vigente.

De mais a mais, nesse caso, exigir-se cristalina demonstração de prejuízo, como a indicar as conseqüências da inversão da ordem estatuída no dispositivo, vale dizer, se primeiro tivessem as partes procedido à inquirição das testemunhas, quais outros resultados se fariam presentes que não aqueles que se verificaram, ou quais os efeitos da nulidade sobre os atos judiciais que se seguiram, seria de um rigor injustificável. Que tipo de prova deveria ser produzida para que se chegasse a contento à conclusão de que, p.e., respeitado o preceito legal, não teria sobrevindo condenação, ou a pena teria sido menor? Nessas situações, deve-se entender que a própria natureza da irregularidade evidencia o gravame, o prejuízo.

Aqui, como dito, a violação ao art. 212, caput e par. único, implicou violação a vários dispositivos constitucionais, como o princípio acusatório, da igualdade jurídica, no seu viés da paridade de armas, e da imparcialidade do juízo, a não permitir, a uma, se possa cunhar de relativa a nulidade presente, tão caros para a própria qualidade da prestação jurisdicional se afiguram, dúvida não pode haver. A duas, se possa exigir prova cabal e cristalina do prejuízo, argumentação falaciosa, visto que, nesses contornos, jamais logrará êxito o acusado em insurgências desse jaez, permitindo-se, ao final, ao juízo, siga o procedimento que lhe estampa as próprias opiniões, sendo certo que a esse tempo de incertezas não se quer regredir.

Bem assim, opina o Ministério Público Federal pela concessão da ordem, para que seja declarada a nulidade da audiência referida, bem como dos atos a ela subseqüentes e dependentes.

Brasília, 10 de fevereiro de 2009.

Juarez Tavares
Subprocurador-Geral da República

Ministério Público Federal
HC 118092/DF

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Paradigma

O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)