A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



Pesquisar Acervo do Blog

1 de julho de 2020

Protagonistas do Júri





De saída, uma indagação: a soberania dos veredictos é apenas garantia fundamental do acusado? Há gente na praça jurídica respondendo “sim” e que, por isso, não poderia ser utilizada em seu desfavor, com o imediato cumprimento da condenação pelo Júri. Mas há boa dose de desonestidade intelectual nessa resposta, como se vê na sequência.

Em 1976, foi publicada “Marcelo, Marmelo, Martelo”, uma obra-prima da literatura infantojuvenil brasileira, fruto da pena de Ruth Rocha, que foi lida por milhares de pessoas miúdas, e até graúdas, de muitas gerações. O livro narra a história do menino Marcelo que dá novos nomes às coisas. O ponto alto da narrativa ocorre quando a casinha do cão Godofredo pega fogo e ele não consegue se fazer entender por meio de sua forma de falar: “embrasou a moradeira do latildo!”. Logo, ninguém entende o que estava ocorrendo e a casinha vira cinzas.

Uma das lições que se extrai da obra é que as coisas devem ser chamadas pelo nome. É a importância da linguagem como meio de comunicação interpessoal. Há um sentido nos nomes. A mudança de nome pode ser fonte de confusão. As coisas devem ser vistas como são, sem relativismos.

Esse clássico da língua portuguesa serve muito bem de bússola aos intérpretes dos textos legais. No mundo jurídico, não é incomum a relativização, e até a mutação, de palavas no processo hermenêutico. Na maioria das vezes, trata-se de manobra interessada, cuja agenda é oculta. A (pseudo)análise desinteressada serve apenas para enganar incautos e desatentos.

Na realidade, há palavras presas a determinado sentido. Uma delas é a vida, segundo a qual, sob a perspectiva lógica e jurídica, é a fonte de todos os interesses e direitos dos humanos. A vida é soberana. Outra, é a matriz de todo poder: o povo.

Segundo o sistema jurídico brasileiro, incumbe ao Tribunal do Júri julgar as condutas humanas, deliberadamente, ofensivas ao direito à vida. E essa esfera de foro judicial tem por expressão máxima a vontade popular, que é a fonte primária do poder. É a soberania do povo quem dita a jurisdição penal. O julgamento pelo Tribunal do Júri revela o sentimento e o modelo de justiça entranhados no seio da sociedade, em total conexão com a realidade social.

A irmã siamesa da soberania popular é a soberania dos veredictos. O povo é quem dá a primeira e a última palavra nos crimes dolosos contra a vida. Ou seja, quando a vida é atacada, os jurados são os magistrados últimos e o Tribunal do Júri é a Suprema Corte.

Nessa linha, pouco esforço é preciso para se perceber que, no Tribunal do Júri, há duas protagonistas bem definidas, quais sejam, a soberania da vida e a soberania do povo. É verdade que o acusado tem a garantia de ser julgado por seus pares. Mas a coisa não para por aí. É uma dupla garantia, porque ao povo é garantido o direito de participar da administração da justiça nos crimes que ofendem o maior de todos os direitos.

Então, a vida, em toda a sua essência e extensão, é o direito a ser protegido pelo povo, como detentor de todo o poder. Não pode o Tribunal do Júri servir de escudo aos malfeitores, que desprezam a soberania da vida e atacam a existência de um semelhante.

Melhor dito, a soberania popular deve reverência à soberania da vida. Isso significa dizer que a análise e a interpretação da ordem jurídica deve reafirmar a proteção do direito à vida por parte do povo-julgador. Não há espaço para eleição de hermenêutica que relativize a importância da vida, nem que a enfraqueça, sob pena de desprotegê-la. É crucial que os jurados entendam que eles devem ser imparciais em relação aos fatos e às provas, mas parciais em relação à proteção do direito à vida. Por consequência, a interpretação da lei deve ser balizada pela máxima efetividade do direito à vida. O Júri é mecanismo de defesa e reafirmação do direito de viver. Não é um tribunal sobre morte, mas um tribunal sobre vida.

As decisões dos jurados devem ornar com a defesa do direito humano mais importante que existe: o de viver! O descaso com a morte alheia é a desvalorização da própria vida. É desumano desprezar a dor (luto) do outro, ainda que seja um desconhecido. A morte de uma pessoa importa a toda humanidade.

Logo se vê que a soberania dos veredictos é consequência da soberania popular, que, por sua vez, deriva da soberania da vida (vida, povo, sociedade, nação e Estado). É o exercício direto do poder por seu titular. O povo julga "crimes de sangue" com o selo da democracia. Não se restringe a figurar como garantia do acusado, como estão sustentando por aí. É muita desonestidade intelectual, com a agenda oculta da impunidade. A balança da justiça tem dois pratos, e não apenas um como muitos pretendem pintá-la.

O intérprete do Direito Penal e Processual Penal, incluindo o jurado, a exemplo de Ulisses, deve estar amarrado ao mastro (da razão) para não cair na sedução do canto mortal (interpretações laxistas pró-impunidade) das sereias. Trata-se de providência vital às expectativas sociais, à segurança pública e à paz social.

Infelizmente, há muitos juristas que tentam passar a impressão aos leitores/ouvintes que suas análises entorno de temas jurídicos são imparciais, quando, na verdade, são expressões de inclinações e preferências pessoais. Autointeresse, despido de neutralidade.

É uma afronta à sociedade o fato de alguém, após ser acusado, plenamente defendido, julgado e condenado soberanamente pelo povo por ter atacado a vida alheia, sair livre do Tribunal do Júri. Isso vai na contramão da ordem natural das coisas e do sentimento mais básico de justiça. Absolvido: rua. Condenado: cadeia!

É preciso não se deixar confundir por pretextos e alegações que amortecem e paralisam o intelecto. A batalha de proteção e reafirmação da vida nunca termina. É preciso estar sempre vigilante. A sociedade precisa de intérpretes da lei, dos fatos e das provas mobilizados pelo espírito da persistência nessa missão.

Portanto, ainda que tentem relativizar ou modificar o sentido das palavras, a exemplo do protagonista do clássico de Ruth Rocha, o menino Marcelo, não se poder aceitar placidamente esse tipo de impostura intelectual. Não! As palavras - soberania da vida, do povo e dos veredictos - precisam ser respeitadas, e jamais deformadas ou neutralizadas, para que não virem cinzas tais qual a casinha de Godofredo.

Por César Danilo Ribeiro de Novais, Promotor de Justiça do Tribunal do Júri. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Atuação

Atuação

Você sabia?

Você sabia?

Paradigma

O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)