A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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1 de junho de 2009

Apartes

César Danilo Ribeiro de Novais[1]

É ponto bem assentado que poucos processos[2] ostentam tanta oralidade como o julgado perante o Tribunal do Júri.

No plenário do Tribunal do Júri, após o término da instrução, o juiz presidente concede a palavra ao membro do Ministério Público para apresentação de sua tese. Em seguida, franqueia a palavra à defesa para que emita a antítese. Após, caberão réplica e tréplica (art. 476 do CPP).

Ensina Borges da Rosa que “a expressão debates vem do verbo debater, que significa discutir, discorrer contestando. Assim, os debates consistem em discussão, ou exposição em que a acusação afirma um ponto de vista e refuta aquilo que lhe for contrário, e a defesa afirma ponto de vista diferente e contesta aquilo que acusação sustenta ou afirma”[3].

Como é curial, por força do princípio dialético ou dialógico, o ritual do Júri é caracterizado por um embate contraditório: para cada argumento, um contra-argumento; para cada prova, uma contra-prova. Não por outra razão que, em meio aos debates, as partes poderão apartear quem estiver fazendo uso da palavra. Vale dizer, a parte ex adversu poderá participar do discurso do orador, pronunciando-se sobre o assunto em debate. É a figura do aparte[4].

Em outras palavras, no Júri, ocorre verdadeiro embate dialético entre Ministério Público e defesa, confronto sempre enriquecido pelos apartes, que são da essência do duelo em plenário. Bem entendido: é do entrechoque de argumentos, idéias e teses que faísca um julgamento justo.

Aparte vem do termo à parte, que significa ao lado, à margem, consistente na palavra ou frase pronunciada enquanto outrem está falando.

Eduardo Espínola Filho ensinou que[5] “os apartes são de significação extraordinária, no desenvolvimento dos debates perante o tribunal popular... São a alma do debate...”[6]

A título de ilustração, conta-se que em certo julgamento numa cidade do Rio Grande do Sul, o aparteante disse: “Eu sei o que digo, estou montado no Código Penal...”, obtendo, de imediato, a reposta do adversário: “O colega foi imprudente. Como bom gaúcho, não deveria montar em animal que não conhece. Sua queda era fatal...” [7].

Até a edição da Lei n.º 11.689/2008, o CPP não dispunha de nenhuma regra regulando os apartes. Essa lei acrescentou o inciso XII ao artigo 497 do CPP, inovando, pois, o ordenamento jurídico com os denominados apartes judiciais, que, como o próprio nome aponta, são concedidos pelo juiz presidente.

Fica evidente, assim, que, seguindo a linha de pensamento de Edilson Mougenont Bonfim e Domingos Parra Neto[8], atualmente, existem duas formas de apartes: a) Livre ou Consentido - consistente numa concessão do orador que estiver fazendo uso da palavra; pertence à práxis, ao habitus juridicus, à tradição do Júri; não há regra temporal, cronológica, mas sim regra de bom senso, elegância, como reclama a tradição forense; e b) Judicial ou Regulamentado: sediado no art. 497, XII, do CPP; decorre dum requerimento ao juiz presidente pelo aparteante, que pode concedê-lo por até três minutos, que serão acrescidos ao tempo do orador.

Por isso, durante os debates no Tribunal do Júri, no que concerne à figura do aparte[9], aos oradores restam duas opções, quais sejam: requererem a concessão de aparte diretamente ao opositor, e, em caso de negativa, ao juiz-presidente.

Vale ressaltar, nesse passo, que se o aparte for impertinente não há qualquer ilegalidade no indeferimento do pedido, por não constituir direito subjetivo do pretenso aparteante. Conseqüentemente, o juiz pode ou não o deferir.

Numa visão apressada, poder-se-ia concluir que os apartes são desnecessários e tumultuários, já que as partes dispõem da réplica e da tréplica, ocasiões em que poderão contra-argumentar. Todavia, muitas das vezes, os apartes, além de oportunos, são necessários, porque esclarecedores aos jurados, mormente nos casos em que a parte adversa tenta desvirtuar, omitir ou distorcer dados processuais. Devem, porém, ser curtos, comedidos e ordeiros, sem que configurem discursos paralelos.

A propósito, segue interessante aparte retratado por Alfredo Tranjan[10]: Desmoralizados os depoimentos, o advogado, excelente orador, iniciou a peroração: “- Jurados! É inconcebível, é inacreditável que, na capital da República, em pleno ano de 1936, um promotor público ouse afrontar a nossa inteligência, pedindo a condenação de um réu primário baseado em depoimentos de prostitutas, cafetinas e pederastas passivos! Os senhores...” “- E Vossa Excelência queria que, um crime ocorrido na zona do Mangue, eu arrolasse como testemunhas as alunas do Colégio Sion?”. Era o promotor Rufino de Loy, entre irritado e sorridente. Era o aparte fulminante.

Nesse cenário, não resta dúvida que, no julgamento da causa, as partes devem prezar pela honestidade e fidelidade dos autos, haja vista que estão, a todo o tempo, sob fiscalização recíproca, por meio da réplica, tréplica, argüição de questões de ordem e apartes, que, em alguns casos, podem fazer a diferença quanto ao resultado do veredicto.

Em suma, invocando uma vez mais as palavras de Eduardo Espínola, conclui-se que: “Apartes, sim; mas, curtos e oportunos – aconselha a boa técnica; comedidos, não insistentes, nem prolongados, e em termos moderados – exige a perfeita ordem dos trabalhos, que não pode ser sacrificada pelas interrupções dos debates e pelas respostas dos oradores, em termos desrespeitosos e agressivos, capazes de estabelecer o tumulto”[11].

Notas

[1] É Promotor de Justiça no Mato Grosso, especialista em Direito Constitucional, Direito Penal e Direito Processual Penal e editor do blog Promotor de Justiça.
[2] Leia-se: procedimentos.
[3] ROSA, Borges. Comentários ao Código de Processo Penal. Vol.2, 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, p. 183.
[4] A título de curiosidade, na Câmara dos Deputados, o aparte é possível, desde que o orador permita, nos termos do art. 176 do seu Regimento Interno.
[5] Bem como que “os apartes são o tempero dos debates” (TJSP, AP, Rel. Corrêa Dias, RJTJSP 144/495).
[6] ESPINOLA, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. Vol. IV, 6ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1980, p. 447-448.
[7] BRANCO, Vitorino Prata Castelo. O Advogado no Tribunal do Júri. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 49.
[8] BONFIM, Edilson Mougenot; PARRA, Domingos. O novo procedimento do Júri. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 125-126.
[9] Faz certo notar, por oportuno, que, não obstante a existência do aparte, conforme dispõe a cabeça do art. 480 do CPP, a acusação, a defesa e os jurados poderão, a qualquer momento e por intermédio do juiz presidente, pedir ao orador que indique a folha dos autos onde se encontra a peça por ele lida ou citada, facultando-se, ainda, aos jurados solicitar-lhe, pelo mesmo meio, o esclarecimento de fato por ele alegado.
[10] TRANJAN, Alfredo. A Beca Surrada – Meio Século no Foro Criminal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994, p. 245.
[11] ESPINOLA, Eduardo. Obra citada, p. 451.

Um comentário:

Jarbas Murilo de Lima Rafael disse...

O blog é extremamente interessante, e não apenas para entusiastas do MP. Como advogado, garimpei muita coisa boa e proveitosa.

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O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)