A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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5 de maio de 2011

A Vontade de Matar



Muitas vezes, o que parece claro e simples é o que há de mais complicado. Essa afirmativa aplica-se perfeitamente à diagnose jurídica da intenção homicida.

Segundo os ditames da dogmática penal, constatada a morte de uma pessoa, por ação ou omissão, direta ou indiretamente, bem como verificado o nexo causal entre a conduta e o resultado morte, torna-se de rigor elucidar o requisito psíquico do agente, pois só se pode falar em assassinato, tentado ou consumado, quando evidenciado o animus necandi, a vontade de matar. Vale dizer, não haverá homicídio doloso quando ausente o intento assassino.

Assim, para a configuração dessa figura típica penal é necessário que o sujeito atue com o desiderato de causar a morte da vítima ou, ao menos, aceitá-la como resultado provável e previsto (artigo 18, I, do CP).

Avulta, então, esta importante indagação: como constatar o dolo de matar? (já que, ao tempo do crime, era ele albergado pelo claustro psíquico do agente)

Uma das respostas vem de Hassemer, quando ensina que o dolo é impassível de ser extraído da cabeça do agente, já que é uma instância interna. Dessa forma, ele propõe que o mesmo seja examinado através de indicadores externos, isto é, analisar todas as circunstâncias que estão ao redor do atuar do agente. Em outras palavras, sua atribuição está umbilicalmente ligada ao exame dos elementos externos que possam servir de indicadores e fundamentar sua atribuição (HASSEMER, Winfried. Los elementos característicos del dolo. En ADCP, trad. De Maria del Mar Diaz Pita, Madrid: Centro de Publicaciones del Ministerio de Justicia, 1990).

Responde também Nelson Hungria: "trata-se de um factum internum, e desde que não é possível pesquisá-lo no 'foro íntimo' do agente, tem-se de inferi-lo dos elementos e circunstâncias do fato externo. O sentido da ação (ou omissão) é, na grande maioria dos casos, inequívoco. Quando o evento morte está em íntima conexão com os meios empregados, de modo que ao espírito do agente não podia deixar de apresentar-se como resultado necessário, ou ordinário, da ação criminosa, seria inútil, como diz Impallomeni, alegar-se que não houve animus occidendi: o fato atestará sempre, inflexivelmente, que o acusado, a não ser que se trate de um louco, agiu sabendo que o evento letal seria a conseqüência da sua ação e, portanto, quis matar. É sobre pressuposto de fato, em qualquer caso, que há de assentar o processo lógico pelo qual se deduz o dolo distintivo do homicídio" (HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. V. Rio de Janeiro: Forense, 1958).

Em linha semelhante é a resposta de Olavo Oliveira: "a vontade de matar, fenômeno interno, deve ser evidenciado pelos atos externos que o corporificam: a maneira da execução do fato, os motivos do crime, os instrumentos empregados, o número e a direção dos golpes vibrados, a distância entre o ofensor e a vítima, as relações existentes entre os dois, a importância das lesões causadas, a vida pregressa do réu, o seu posterior procedimento e a diagnose da sua personalidade" (OLIVEIRA, Olavo. O Delito de Matar. São Paulo: Saraiva, 1962).

Não é difícil compreender, assim, que a definição do elemento subjetivo do crime depende dos fatores objetivos que gravitam ao redor do evento delituoso, ou seja, torna-se imperiosa a análise do revolvimento fático-probatório residente nos autos.

Isso significa dizer que os fatos antecedentes (ex.: animosidade entre réu e vítima, ameaça etc.), concomitantes (ex.: arma utilizada, número de ações, área corpórea visada etc.) e supervenientes (ex.: fuga do local, omissão de socorro, ameaça etc.) ao crime devem ser bem examinados, tendo por parâmetro as provas pericial, testemunhal, indiciária et al.

Por conseguinte, é de suma importância ter em mente esta recomendação de René Descartes: "nunca nos devemos deixar persuadir senão pela evidência de nossa razão" (DESCARTES, René. Discurso Sobre o Método. São Paulo: Editora Vozes, 2006). Ou seja, incumbe à lógica humana, frente ao conteúdo processual, diagnosticar qual era o ânimo do agente ao tempo da conduta.

Nesse claro contexto, para o reconhecimento do homicídio doloso, na forma consumada ou tentada, é indispensável que se demonstre o dolo de matar do sujeito ativo por meio de elementos objetivos, muito bem delineados na fórmula que se extrai da lição de Francesco Carrara: "instrumento + número de golpes + sede das lesões = ânimo do agente" (CARRARA, Francesco. Programa de Direito Criminal: Parte Geral. Vol. I. São Paulo: Saraiva, 1956).

Assim, o elemento subjetivo pode ser representado pela potencialidade lesiva e letal do instrumento empregado na ação, número de golpes ou tiros, e o local do corpo da vítima atingido (zonas nobres e vitais).

Bem por isso, segundo o consensus humani generis et medicus, são mortais as lesões produzidas nas grandes cavidades: cabeça, tórax, dorso e abdome, porque aí, acima da linha de cintura, se situam os "órgãos de elevada hierarquia", na feliz expressão do professor Flamínio Fávero (FÁVERO, Flamínio. Medicina Legal. São Paulo: Martins, 1969).

Isso conduz inexoravelmente a seguinte conclusão: ordinariamente, o agente que desfere golpe de faca ou efetua disparo de revólver mirando o abdome, tórax, dorso, pescoço, flanco ou crânio do ofendido, evidencia com sua conduta a sanha assassina, incorrendo na prática de homicídio doloso (tentado ou consumado). Decorre daí que de duas, uma: ou almejou o resultado morte ou, no mínimo, assumiu o risco de produzi-lo. Tertium non datur. É dedução projetada da razão humana, que decorre do território da lógica.

Por César Danilo Ribeiro de Novais, Promotor de Justiça (MT) e Editor do blogue http://www.promotordejustica.blogspot.com/

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