A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



Pesquisar Acervo do Blog

16 de março de 2007

Em Busca do Ministério Público Perdido


É tempo de começar a questionar determinados aspectos relacionados à atuação do Ministério Público, que são considerados como tabus, mas que não podem prosseguir sem discussão, sob pena de perda da própria substância da instituição.

Um texto em particular vem à mente quando se fala em Ministério Público. É um trecho de PIERO CALAMANDREI que todos os candidatos em concursos ministeriais sabem de cor. Diz o seguinte: Entre todos os cargos judiciários, o mais difícil, segundo me parece, é o Ministério Público. Este, como sustentáculo da acusação, devia ser tão parcial quanto um advogado; como guarda inflexível da lei, devia ser tão imparcial como um juiz. Advogado sem paixão, juiz sem imparcialidade, tal é o absurdo psicológico no qual o Ministério Público, se não adquirir o sentido do equilíbrio, se arrisca, momento a momento, a perder, por amor da sinceridade, a generosa combatividade do defensor, ou, por amor da polêmica, a objetividade sem paixão do magistrado.

O trecho mencionado é muito importante, na formação psicológica do promotor de Justiça (e aí incluídos os procuradores da República). E, diga-se de passagem, ele é muito mais importante, até, pelo que não diz textualmente do que pelo seu conteúdo literal. Para começar, vale lembrar que ele está contido num trecho de livro que se diz um "elogio a juízes feito por um advogado". Não se propõe, portanto, a discorrer sobre o parquet. Em segundo lugar, trata-se de uma obra italiana, que de nenhuma forma deveria servir de referencial psicológico para a instituição brasileira, juridicamente tão diversa da continental. Tendo em mente esses dois pressupostos - 1. não se trata de uma obra que se proponha a avaliar a relação entre os promotores e os juízes, ou entre aqueles e os advogados; 2. A realidade jurídica é, antes de mais nada, uma realidade cultural, e a realidade jurídica brasileira é diversa da italiana. Ora, o livro baseia-se na realidade jurídica italiana, e deve, portanto, ser avaliado com a devida cautela pelos operadores jurídicos brasileiros - pode-se avaliar melhor esse trecho, dando-lhe o devido valor.

O livro de Calamandrei, apesar das limitações hermenêuticas acima explicitadas, reflete a esquizofrenia a que estamos submetidos, nós membros dessa classe tão desprovida, ainda, de uma identidade profissional e institucional. Na verdade, num mundo em que advogados e juízes representam a tradicional imagem popular do universo judicial, é natural que as pessoas definam o Ministério Público tomando como base as figuras do advogado e do juiz.

Daí decorre, de forma imediata, que não temos uma imagem própria. Somos "advogados sem paixão", ou "juízes sem imparcialidade"? Nem um nem outro. Somos membros do Ministério Público.

Tanto a expressão "advogado sem paixão" quanto a expressão "juiz sem imparcialidade" representam contradições em termos. De fato, se a função do advogado consiste em defender um interesse, pertencente ao seu cliente, da melhor forma possível - mesmo as questões mais indefensáveis devem, constitucionalmente, ser representadas por advogados - um advogado sem paixão é um profissional falido. Inviável mercadologicamente. Como defender um interesse contestado perante outros interesses, havendo sido contratado para fazê-lo, sem paixão? Impensável. Se essa hipótese fosse possível, os problemas jurídicos seriam resolvidos num banco de praça, enquanto os envolvidos tomassem um sorvete e apreciassem os pássaros. Quanto ao "juiz sem imparcialidade", da mesma forma essa figura contraditória seria de impossível existência.

Definindo "parcialidade" como "envolvimento, a priori, econômico ou psicológico, com os interesses concretos de uma parte", a imparcialidade é pressuposto mesmo da função de julgar. Parcialidade, nesses termos, para um juiz, corresponde a venalidade - que, graças ao bom Deus, ocorre tão raramente. Bom, há casos históricos de juízes que também são partes, como na trovinha citada por TORNAGHI, sobre o juiz Antão Duarte, exilado, no Brasil Colônia, por ter sido flagrado em situação de improbidade:

O juiz Antão Duarte
Um dos bons da velha escola
parte hoje para Angola.
Então é juiz e parte?

Daí decorre que a nossa formação psicológica já se iniciou dividida. Como nos autodefinir? somos advogados da sociedade? somos "magistrados de pé", como se costuma dizer, com base no direito europeu? Bom, se somos advogados, como poderemos ou conseguiremos ser tão imparciais como um juiz e continuarmos sendo bons advogados? Se somos juízes de pé, como manteremos a generosa combatividade do defensor?

Concretamente, vale lembrar a experiência dos jovens promotores, designados para pequenas comarcas do interior. Algumas vezes, com apenas vinte e poucos anos, assumem o primeiro cargo de promotor de Justiça. Entrando no Fórum, encontram uma pequena mesa, numa salinha do fundo, com uma velha máquina de escrever e uma pilha de processos. Enquanto desesperam-se, tentando entender de que trata o grosso processo que o escrivão, não raro maldosamente, lhe põe na frente, são visitados pelo prefeito, ou por outra autoridade local, que, na melhor das intenções, afirmam, em tom elogioso: "Puxa vida, o senhor é muito jovem, e já é promotor! Desse jeito, vai ser logo promovido a juiz, hein?".

Assim, para a população mais desinformada, o promotor, notadamente nas pequenas cidades, é uma espécie de sub-juiz, alguém para se procurar quando não há dinheiro para pagar o advogado, um tribunal de pequenas causas das pequenas comarcas, um defensor público nas grandes. Ou então é o acusador do júri. E a esquizofrenia começa, no fato de que, como "defensor da sociedade", na maioria das vezes o promotor age como acusador criminal. Ocorre que o acusado também é membro da sociedade que o promotor deve defender! Como fica a situação? E quando a pobre esposa do réu, do pequeno ladrão, adentra a sala do promotor, carregado de pequenas crianças sujas e mal-alimentadas, que passarão mais fome ainda com a condenação do pai? Como fica o profissional, mormente, repito, nas pequenas comarcas, onde ele normalmente acumula as funções de promotor criminal e promotor da criança e juventude? Dividido, é óbvio.

Todos já viram alguns advogados afirmarem que o promotor, como pessoa, é alguém que desistiu da advocacia. Alguém que fraquejou e passou para o outro lado. Ou alguém que nunca teve coragem suficiente para o conflito aberto estabelecido na prática do patrocínio. Mais do que isso, um verdadeiro traidor, alguém que teima em dificultar a vida do seu cliente, pelo mero prazer da crueldade ou da vaidade, uma vez que a condenação daquele réu em especial (logo o meu cliente...) não trará nenhum lucro a mais ao acusador. "Ora, por que empenhar-se tanto em perseguir meu cliente, doutor? seu salário não vai aumentar, caso ele seja condenado! Que interesse é esse, então, em condená-lo? Isso não vai acabar com a impunidade no Brasil". Ao contrário, "o promotor quer fazer o meu cliente de cristo, de exemplo". Ou então a variante mais direta, "o promotor está mancomunado com fulano ou Beltrano, que são meus inimigos". É claro que o retrato aqui pincelado é caricatural, e a maioria dos advogados não pensa assim. Normalmente, ao contrário, os advogados sabem que um promotor atuante é a melhor garantia de muito serviço e bons honorários.

Assim, não se pode definir o promotor como uma espécie do gênero "advogado", da espécie "sem paixão". São psicologicamente incompreensíveis, pela ótica do advogado, as motivações do membro do Ministério Público, como foi dito acima. Não há nenhum cliente (senão o cliente genérico "sociedade", ou o mais abstrato ainda, "ordenamento jurídico") cobrando uma atuação imediata. É certo que a lei determina que o promotor aja, nesta ou naquela situação, mas a lei não determina que ele se empenhe tanto para vencer, no processo! Ao contrário, como Calamandrei disse: advogado sem paixão! Promotor entusiasmado, diligente, cuidadoso, apaixonado, sob essa ótica, seria bastante suspeito!

Quanto à afirmação de que o promotor é um juiz sem imparcialidade, o mais comum é que as pessoas vejam o promotor como alguém que não conseguiu ser juiz, ficou na metade do caminho. Na verdade, sabe-se de pelo menos um juiz que, num artigo publicado em revista técnica, elencou os promotores na categorias dos auxiliares do Poder Judiciário, confundindo Justiça, conceito constitucional abstrato, com Instituição Jurisdicional.

Outra colocação rotineira na atuação do membro do Ministério Público pertine à natureza das suas manifestações. Não raro, ouve-se esse comentário: "Mas o que é que promotor faz? opina, pede? o juiz é quem decide!"

Quanto à colocação de que o promotor somente "opina", ou no máximo "requer", mas nunca "decide", pode-se constatar que, de fato, a decisão judicial não é a última palavra no processo. A última palavra, em cada instância, é o recurso - salvo, é claro, no Supremo Tribunal Federal, da qual não cabe recurso senão para o Bispo. De fato, o juiz decide, mas são o promotor e o advogado quem recorre, quando a decisão está equivocada, ou não atende aos interesses defendidos. Isso é tremendamente democrático na Justiça. Ninguém detém o poder total. No fim das contas, o juiz de fato decide, mas se o cidadão resolve descumprir a decisão judicial, é o promotor quem terá a responsabilidade de processá-lo por desobediência. Isso para não lembrar que, se o promotor não decide, primeiro, levar o caso às barras da Justiça, o juiz, que não tem poder de iniciativa, nunca vai poder decidir sobre o mérito.

É indiscutível a importância, ou antes, a essencialidade do juiz na distribuição da Justiça. O processo, no entanto, não existe para ele, mas para as partes, das quais ele é servidor.

Ao contrário do que faz Calamandrei, no seu livro citado, não se pode nem se deve entronizar o juiz. Ele não está acima das partes, mas ao lado delas, numa posição equidistante, buscando a melhor solução para o conflito, a cada instante. Na verdade – e apesar de exercer um atributo divino, que é julgar - o juiz não é um deus. Mas Calamandrei o vê um pouco assim, quando, por exemplo, confunde a "fé na Justiça" com a "fé no juiz", e chega a comparar o juiz com a própria noção do direito personificada. "O juiz é o direito tornado homem", diz ele. "Sei que és a garantia de tudo quanto de mais caro tenho no mundo", diz ele, dirigindo-se a essa classe. "Em ti saúdo a paz do meu lar, a minha honra e a minha liberdade". Essa passagem do poderoso livro faz-me lembrar um trecho de salmo - "O Senhor é meu pastor, nada me pode faltar". Os juízes não são deuses. Tampouco o são os promotores, ou os advogados. Essa afirmação parece ser óbvia, mas às vezes - não raro - é esquecida.

Não são incomuns os desentendimentos entre Ministério Público e membros da magistratura. Isso decorre, normalmente, de equívoco quanto à verdadeira vocação de cada um. Nada pior do que um juiz que quer ser promotor - e se vê envolvido pela contenda, tomando partido por esse ou aquele lado, sentindo-se o próprio inquisidor, que reúne em si o acusador e o julgador - ou do que um promotor que quer ser juiz, e, ao contrário de envolver-se, apaixonar-se, levar as causas a discussão judicial, profere verdadeiros oráculos de sabedoria, condenando ou inocentando liminarmente a outra parte, antes mesmo de começar o jogo, ou ainda ofendendo pessoalmente o juiz que discorda do seu posicionamento - confundindo entusiasmo com egolatria. É essencial respeitar a decisão judicial, como expressão democrática da solução de conflitos, sem prejuízo do irrenunciável exercício do direito, também democrático, de recorrer, sem agredir ao prolator da decisão atacada.

O promotor se apaixona, sim. É uma paixão diferente, é claro. Não se trata de apaixonar-se pela causa, mas pela idéia de justiça existente no próprio âmago do ordenamento. Não se trata de arvorar-se de detentor último do oráculo jurídico, nem de encarnação da deusa da justiça. Mas da paixão profissional, da convicção de que se está fazendo algo que é absolutamente necessário ao correto funcionamento da Justiça. O promotor é parcial, sim. Envolve-se com as ações que move, com as investigações que inicia. Ele se envolve pessoalmente com cada questão, sem no entanto levá-las para o lado pessoal. Isto é, empenho pessoal para o sucesso de suas posições, sem deixar de lado o sentido da impessoalidade - tão caro ao ordenamento - que tem a ver com a própria moralidade pública. Mas o envolvimento pessoal decorre da constatação de que o ordenamento jurídico brasileiro, do qual o promotor, como órgão presentante (e não simplesmente representante, como erroneamente ainda se diz) do próprio Ministério Público, é depositário fiel, é o responsável pela maior revolução que ainda pode acontecer no país – a pura e simples aplicação fiel da lei. Daí que o promotor não é um advogado sem paixão, mas antes um cidadão profissional, alguém que recebe seu salário para transformar em atos jurídicos a noção social e difusa de justiça.

Kelsen já demonstrou que a noção de justiça está fora do ordenamento - é metajurídica. Não está, porém, fora das pessoas. A noção de justiça relaciona-se, do ponto de vista psicológico, com a noção de empatia, que implica em sensibilidade para com o sofrimento alheio. Parte imparcial inexiste. O fato do promotor poder, reconhecendo a inexistência do interesse que motivou a sua vinda a o processo, requerer a improcedência da ação, não significa, juridicamente, imparcialidade. Significa atrelamento a interesses públicos primários. Manter posições processuais em defesa de interesses inexistentes não é parcialidade. É burrice. A parte privada pode, eventualmente, assumir essa conduta, porque eventualmente pode ser beneficiado em seus interesses privados, por artimanhas processuais. Mas qual interesse secundário teria o MP em tocar, a qualquer custo, um processo cujo interesse que defende inexiste?

O promotor, portanto, não defende interesses alheios, como advogado, mas interesses públicos primários (no sentido descrito por Alessi) interesses que, no fim das contas pertencem a ele próprio, enquanto membro, por si, por seus familiares, amigos e concidadãos, da sociedade brasileira e do mundo. Promotor não é advogado. O promotor é a própria parte! É o cidadão indignado com o crime, sensibilizado com os desastres ecológicos, de coração partido com a criança abandonada, revoltado com a fraude eleitoral, inconformado com a corrupção, transtornado com a péssima qualidade da saúde pública, irritado com os abusos de autoridade.

Em uma palavra: parcial, porque empático. Empático porque envolvido psicologicamente com o sofrimento alheio, aquele sofrimento que ultrapassa os limites pessoais, que se consubstancia na agressão à própria noção de vida em sociedade. Envolvido com suas posições, crédulo, afinal de contas, de que é possível obter justiça (ou promovê-la, uma vez que ele é um promotor de justiça) dentro dos limites do ordenamento jurídico. Aos juízes, a imparcialidade. A imobilidade. Aos advogados, a defesa do interesse alheio (mesmo quando atuando em causa própria, ele tem que obter distanciamento psicológico com relação aos interesses postos em conflito, sob pena de, como se diz no foro, ter um idiota como cliente). Ao promotor, a empatia social. O envolvimento. O entusiasmo. É claro, sem egolatria. Envolvimento não significa perda de objetividade.

Por isso, há que ser bem entendida a afirmação de que o membro do Ministério Público tem que ser "psicologicamente imparcial" no processo, como coloca MAZZILLI. Com todo respeito, não há como verificar-se "imparcialidade psicológica" de ninguém. Devesse, sim, verificar se o membro do Ministério Público em concreto, ou seja, o promotor de justiça que irá concretamente atuar em determinado feito, possui algum vínculo jurídico de ordem privada com a causa, seja por ter interesse privado objetivo na sua solução, seja por ter vínculo de parentesco ou amizade com alguma das outras partes, seja por ter aconselhado uma das outras partes antes de ingressar no feito, dentre as outras causas de impedimento ou suspeição. Impedimento ou suspeição são conceitos jurídicos, que implicam, é certo, em indesejável envolvimento psicológico com um dos interesses privados envolvidos no processo. O envolvimento psicológico com os interesses públicos, difusos ou sociais envolvidos é perfeitamente normal e mesmo desejável, até o ponto em que não provoque obnubliteração das faculdades racionais. Nenhum homem é uma máquina. Tampouco o promotor. De há muito já se demonstrou que a neutralidade científica é um mito. Também é um mito a neutralidade psicológica. Mesmo a do juiz.

Por Paulo Vasconcelos Jacobina, procurador regional da República.

Um comentário:

xxxxx disse...

Fascinante..

Postar um comentário

Atuação

Atuação

Você sabia?

Você sabia?

Paradigma

O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)