A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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16 de junho de 2012

Matar por amor...


Quem ama, mata?

Recentemente a imprensa noticiou que uma mulher matou e esquartejou o próprio marido, possivelmente em razão de ciúmes.

Há um provérbio que diz que “quem ama, não mata”.

De acordo com o citado provérbio, portanto, a mulher teria agido assim porque de fato não amava. Será?

Afinal, o que é o amor?

Não há dúvida – esse é seu lado bom - de que o amor é um sentimento maravilhoso de sentir-se bem e querer bem a alguém, de querer estar com essa pessoa que se ama, de querer tocá-la, abraçá-la, protegê-la, adorá-la etc.

Mas o amor é também vontade de possuir a pessoa amada, de mantê-la sob certa vigilância, de ser retribuído com igual carinho, gratidão etc..

E mais, amar é vontade de não querer compartilhar a pessoa que se ama com mais ninguém; é desejo de exclusividade. Tanto é assim que, por vezes, não admitimos sequer a possibilidade de que ele ou ela pense em outra pessoa ou mesmo possa sonhar com ela ou falar dela.

Queremos, é verdade, o “melhor para ele ou ela”, mas quem decide, sobre isso, não é ele ou ela, mas nós.

Enfim, por mais que pareça decepcionante ou pessimista, amar é, em última análise, vontade de poder, vontade de fazer de alguém parte de nós mesmos, ações e pensamentos.

Suponho que mesmo casais mais liberais que frequentam ambientes de swing e semelhantes alimentem esse sentimento de posse e de exclusividade. Quer dizer, mesmo nesses casos extremos existe uma relação de fidelidade e exclusividade, visto que nem tudo é aí permitido ou só é permitido o que é objeto de prévio conhecimento, consentimento e reciprocidade entre os parceiros.
Postas as coisas assim, não surpreende que uma mulher supostamente traída pelo marido

enha decidido matá-lo e esquartejá-lo, pois o amor nos faz (potencialmente) possessivos, neuróticos, violentos etc. Uma pessoa que ama é uma pessoa perigosa.

Evidentemente que nem todos reagem ao fim de uma relação matando seu parceiro, tampouco mutilando-o. Mas cada um, a seu modo, fere ou mata, imaginária ou simbolicamente, seus parceiros de muitas formas distintas.

O que é, afinal, o divórcio senão a morte simbólica da pessoa que tanto amávamos?

Queiramos ou não, quem ama, mata; e mata por amor.

Por Paulo Queiroz, Procurador-Regional da República.


***

Quem ama, não mata?

Envolvi-me nesta discussão, com um colega preparadíssimo, professor de direito penal, sobre o slogan “quem ama não mata”, a respeito de um recente crime passional que abalou o país. Ele defendia, naquela oportunidade, que o slogan estaria errado, porque todo amor envolve possessão, desejo de exclusividade, e que, portanto, é indissociável de um egoísmo travestido de grandeza – declaramos desejar o melhor para o outro, mas na verdade reservamo-nos o direito de decidir o que seria isto que é o melhor para o outro.

Sob o manto do altruísmo, dizia ele, pode-se chegar mesmo a partilhar o próprio parceiro numa orgia, mas mesmo tal compartilhamento se dá no limite do que seria previamente conhecido, deliberado e permitido por mim. O amor, diz ele, nos faz todos, ao menos potencialmente, possessivos, neuróticos, violentos, enfim, uma pessoa que ama é uma pessoa perigosa, ainda que, na maioria das vezes, tal perigo se expresse apenas na forma de destruições simbólicas ou imaginárias, como o divórcio, o desprezo ou nas mais distintas formas de ferir ou matar- não excluídas as que envolvem violência física.

Assim, meu interlocutor conclui que quem ama mata, sim, e mata por amor.

Concordo que o divórcio é desamor; também o são o desprezo e a agressão física. Mas das expressões de desamor não se pode concluir a periculosidade dos que amam. A menos que eu defina o amor como uma relação egoística de busca de poder sobre o outro, no campo sexual,travestida de altruísmo, como faz o professor com quem eu conversava. Mas será que isto é amor de fato?

Há,aí, um violento empobrecimento do termo. Confunde-se amor com libido. Nem sequer se chega, nesta noção, à consideração do amor erótico, aquele que vê, na contemplação e união física como outro um caminho de êxtase, no sentido mais estrito da palavra –ex-tasis, o sair de si. Eros vê o outro e o deseja, mas de fato deseja o outro naquilo que o outro é. A libido vê o outro e deseja apenas a sensação corporal que o outro, como objeto de prazer sensorial, pode proporcionar. O eros é extático, a libido é encrática, vale dizer, conduz ao ensimesmar-se, ao egoísmo, à autossatisfação. O eros relaciona-se. A libido apenas masturba-se,anda que ao lado de outro, ou de outros, um solitário mesmo em meio a uma orgia, para usar a mesma imagem extrema que o meu professor de direito penal usou.

O mero libidinoso é um cínico, porque aproxima-se do outro apenas para tomá-lo como objeto para si, nunca para desejá-lo como pessoa. Libido não é amor, é apetite. Se libido fosse amor,invejaríamos os cães: a cadela deixa o sinal irresistível da sua disponibilidade sexual, os cachorros lutam entre si pela sua posse e o mais forte a submete.

Sei que às vezes alguns de nós invejam de fato os cães, porque os julgam mais verdadeiros e simples do que nós. Esta postura também não é nova: era conhecida, na Grécia antiga, como “cinismo”. Ou seja, esta era a filosofia dos que invejavam a simplicidade e a sinceridade dos cães, comparada com o que viam como a “hipocrisia” humana, e escolhiam viver como os animais. Para estes, o amor, no seu único estado verdadeiro, nada mais é do que a fêmea que emite sinais de disponibilidade, a luta entre os machos pelo predomínio do poder e a corte que visa a posse sexual. Tudo o que passa daí é encobrimento, fingimento, farsa humana fantasiada de altruísmo.

A hipocrisia humana existe. O fingimento canino, não. Um cão macho, perante o cheiro de uma cadela em cio, pode apenas exercitar sua libido. Desconhecem-se cães ascetas. Mas dizer que amor é apenas aquilo que fazem os cães é desconhecer que entre cães e pessoas há pelo uma diferença ao menos que é inegável: pessoas podem escolher viver como cães. Cães não podem escolher viver como pessoas. Há algo no ser humano que supera o cão, nem que seja a capacidade de refletir sobre a diferença entre uns e outros.

Note-se que nem falo, aqui, do amor abnegado das pessoas que consomem sua vida na caridade ou na oração, dos que sacrificam suas vidas por desconhecidos, dos que morrem em silêncio pelo outro. Ou pelo amor de Deus. Se nem saímos da libido para chegar no eros, como poderíamos falar de ágape?

Há algo no ser humano que supera infinitamente o ser humano, diz Pascal. Certamente este algo também supera infinitamente o cão. O cínico, no entanto, escolhe eliminar de si a possibilidade de enxergar o que é especificamente humano, ao fazer do cão seu padrão de julgamento. Ao eliminar do seu campo de visão tudo o que é verdadeiramente humano, elimina também a possibilidade de observar quantos seres humanos há que vivem, em silêncio, a sua autodoação pelo bem do outro. Vivendo o amor. Porque a verdadeira autodoação é silenciosa, e não faz propaganda de si, ou já não é autodoação,mas autopromoção.

O problema é que só quem ama pode ver o amor: eis o mistério da fé. Quem não ama às vezes proclama que o amor não existe, porque só conhece a libido. Mas aquele que se cega voluntariamente não tem direito de dizer que a luz não existe.

Não é o amor que torna as pessoas perigosas, meu querido professor penalista. Na verdade, só o amor as liberta. A falta de amor torna-nos cegos e cínicos, quer dizer, apenas cães libidinosos. E aos cães cabe a coleira.

Quem ama de verdade não mata, embora às vezes morra. Este é o risco do amor, mas é um risco livremente assumido. Ressalto, porém, que nem todo aquele que declara amor ama de fato. Os que renunciam voluntariamente a conhecer o amor ficam, no entanto, tolos, e tomam por amor a mais vulgar declaração, uma contrafação,uma “nota de três reais”, que só ilude a quem jamais conheceu as notas verdadeiras.

Os que mentem sobre o amor, declarando-o falsamente, às vezes enganam os tolos com seu cheiro irresistível de libido, e, possivelmente, até os matam. Mas os que realmente conhecem o amor não somente não mentem sobre ele, quanto também mais dificilmente se deixam enganar por quem mente. Podem até morrer por amor, mas dificilmente o fazem por inadvertência. Porque o amor os liberta para amar até o fim.

Por Paulo Vasconcelos Jacobina, Procurador-Regional da República.

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