A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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17 de novembro de 2011

A invasão da rocinha e a Justiça a serviço do crime



Toda imprensa teve sua atenção voltada para a ação das forças armadas do Rio de Janeiro para retomar o controle das favelas da Rocinha e do Vidigal, locais dominados pelo tráfico de drogas. Causa certa estranheza o noticiário porque deixa transparecer a existência de um poder paralelo, ou até mesmo de um concubinato entre a sociedade civilizada e a organização criminosa, num verdadeiro usucapião até então não molestado e agora, num repente, ocorre o rompimento do pacto de não ingerência.

Muito se tem falado a respeito do desproporcional aumento do índice de criminalidade do país. Vários diagnósticos, acompanhados de estratégias terapêuticas foram lançados, assim como identificados fatores de correção e reabilitação, reduzindo a crise a uma questão essencialmente política e social, erigindo-a à categoria de problema científico e, como tal, a aplicação de métodos pré-concebidos e esquemas conceituais para solucioná-la. Sem sucesso, no entanto.

Em mais uma cunha fincada neste reiterado assunto, propõe-se uma análise objetiva, com o conteúdo voltado para a realidade, procurando, como qualquer cidadão quer, uma resposta que possa ser geradora da paz social. Além do uso e tráfico de drogas, de armas, do desemprego, do paradoxo da tecnologia com a miséria, do niilismo cultural, outro fator se apresenta como responsável pela desorganização do Estado organizado: a legislação penal brasileira, branda, complacente, distribuindo indulgências e deferências ao infrator.

A parte final do artigo foi emprestada do livro escrito por Arruda Campos, em 1959, editado pela Saraiva. Na obra, o autor faz ver que a lei gera o crime. Parte do princípio que representa o interesse dos grupos dominantes e o Judiciário, como escravo da lei, deve fazê-la imperar, mesmo sem o apoio do povo, pois o critério da lei é o antijurídico e não o antissocial. Não é dado ao Judiciário discutir a intenção da lei e nem escolher seus destinatários. Assiste de braços cruzados a bancarrota social e não pode aplicar nem mesmo a analogia para alcançar nas suas malhas os que circulam entre os artigos do Código Penal, em razão do princípio de que não há crime sem lei anterior que o defina. O Ministério Público, por sua vez, atrelado à idêntica reserva legal, apesar de toda boa intenção, não entrega à sociedade uma resposta penal que seja satisfatória. O Parquet reúne mais mecanismos de eficiência na ação civil pública do que na persecução penal sob sua responsabilidade.
A violação das regras nada mais é do que a desorganização social do Estado organizado, motivada por falhas normativas do sistema legislativo. O grupo organizado, aproveitando-se de sua ideia centrada e na noção de funções coordenadas de seu organismo, age como um lobo em torno de um rebanho de ovelhas, aguardando o ataque a qualquer descuido do pastor, que, por sua vez, é por demais confiante no sistema de segurança. Daí que, todo espaço deixado pelo poder público, sem o controle eficiente, é alvo de disputa por agentes ligados à criminalidade.

A lei é feita para todos, de forma indistinta, sem indagar se o cidadão é do bem ou voltado para a vida criminosa. A presunção da lei – Código Penal data de 1940 - é a de que toda pessoa seja honesta e, se delinquiu, tem o voto de credibilidade para se inserir na reabilitação social. A realidade brasileira é destoante do pensamento de nosso legislador penal. O crime, que era tratado em sua individualidade, muitas vezes com gravames insignificantes para a sociedade, hoje, mais do que maduro, invade o grupo social e, de forma orquestrada, faz o cidadão refém e prisioneiro, demonstrando a conquista do poder pela força e intimidação.

Para combater o mal que assola o país, urge que o nosso Parlamento faça uma revisão legislativa penal e dote o Ministério Público com um poder investigatório mais condizente com sua missão constitucional, respeitando sempre os resguardos pétreos e o Judiciário com leis mais rigorosas para combater não só a criminalidade individual como a organizada, que vem se acumulando de forma robusta, para que, diante do império da lei, seja retomada ordem social. É preciso fazer prevalecer que a lei é feita para proteger a pessoa que vive, palpita, tem sonhos e chora e não a que destrói vidas e anseios humanos.

Não há necessidade de se retomar o espaço que é do povo e administrado pelo Estado. Basta retirar a raposa da condição de guardiã do galinheiro.

Por Eudes Quinteno de Oliveira Jr., Promotor de Justiça aposentado (MP/SP).

Um comentário:

Vellker disse...

Bem intencionado o texto do promotor, mas é indesmentível o fato de que o poder público, representado pelo poder executivo, legislativo e judiciário há muito tempo abandonou a população à sua própria sorte.

E começou a abandonar seu próprio povo quando aceitou e até incentivou as obscenas vantagens e privilégios que lhes ofereceram na assembléia constituinte de 1988, um marco na história da perversão política e social do Brasil, disfarçada por seus beneficiados com o nome de "constituição cidadã".

O promotor acha estranho que seja noticiada de forma tão incisiva a existência de um poder paralelo formado pelo crime organizado. Ele existe e atua de forma esmagadora. A prova é que o promotor pode andar pelas ruas de sua cidade e apresentar sua identidade funcional. Mas se o fizer nos morros cariocas dominados por facções criminosas, sabemos que seu corpo jamais será encontrado, assim como aconteceu com o jornalista Tim Lopes e com milhares de outros brasileiros comuns e desconhecidos.

Também nosso parlamento não vai fazer uma revisão das leis porque é ele que cria leis que beneficiam os criminosos. Envolvido em grave e secular corrupção e que se agravou incrivelmente depois da saída dos militares do poder, nossos políticos legislam em causa própria, de forma perversa e pouco se importando com o sofrimento dos cidadãos.

Milhares de pessoas agonizam e morrem na porta dos hospitais públicos enquanto que isso não acontece com um único vereador ou deputado brasileiro, os mesmos que controlam, administram e manipulam como bem entendem as verbas públicas para a saúde.

É preciso ainda alguma prova a mais de que o crime organizado já tomou conta do poder legislativo?

O que acontece nos morros cariocas é apenas a obediência desse mesmo poder público às ordens de estrangeiros que exigem um enfrentamento momentâneo do exército do crime para que seus lucros nas planejadas competições da Copa do Mundo e das Olímpiadas não sejam prejudicados.

Na verdade, entre o pequeno contingente de policiais decentes, cresce a certeza de que estão apontando suas armas para o lado errado.

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Paradigma

O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)