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18 de novembro de 2011

Críticas lógico-jurídicas contra o juiz de garantias


Tramita na Câmara dos Deputados, sob o número 8.045/2010, o projeto de novo Código de Processo Penal (CPP), com a promessa de que sua aprovação irá colaborar na redução da impunidade no Brasil.

Há diversos problemas neste projeto, mas um dos que tem sido mais divulgados como a grande “novidade” ou “solução” trará, em verdade, um atraso no combate ao crime.

Trata-se do chamado “Juiz das Garantias”, isto é, a ideia de separar o juiz que atua na fase da investigação criminal daquele que comanda a ação penal, proibindo que presida a ação o juiz que tenha determinado ou decidido alguma medida liminar ou de prova durante o inquérito.

Esta proposta, porém, tem sofrido inúmeras críticas - muitas com razão, por sinal.

O presente artigo pretende arrolar algumas destas críticas, usando, tanto quanto possível, linguagem clara e fora do conhecido “juridiquês”, a fim de permitir que todos possam compreender os motivos que levam a crer que esta novidade será um retrocesso no combate à impunidade.

Uma das principais críticas é de ordem prática: nas comarcas do interior, que tenham poucos juízes, a novidade acabaria com as especializações de varas criminais ao obrigar que o juiz cível atue ou na investigação ou na ação penal, medida que, na realidade, atrasará mais ainda o processo. Embora o projeto permita que, no começo, o instituto não se aplique às comarcas com apenas um juiz, ele prevê que, no futuro, de acordo com as regras locais, será aplicável. Isso tornará mais lenta a situação dos processos em que o juiz da comunidade não poderá presidir a ação, transferindo tudo para outra cidade, a depender de viagens e deslocamentos ou do juiz vizinho ou das testemunhas, vítima, advogados e réus para aquele outro local. Este fato já foi apontado pelo CNJ, que, em sua nota técnica 10, de 2010, observou que 40 % das comarcas do Brasil tem apenas uma única Vara.

Outra crítica faz referência ao momento político de nascimento da proposta, pois logo em seguida a rumorosos casos envolvendo crimes de colarinho branco, em especial banqueiros, com prisões determinadas por juízes de primeiro grau.

Uma terceira crítica, agora com relação à academia, é que alguns teóricos apontam a necessidade desta separação como se fosse uma tendência internacional. A doutrina funda esta conclusão com base em julgamentos da década de 80 do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (casos Piersack vs. Bélgica e De Cubber vs. Bélgica). Porém, não observam que os precedentes citados referem-se a casos em que o juiz tinha sido “de fato” o órgão investigador (o que no Brasil já gera o impedimento na atuação do juiz que tiver sido policial ou promotor no mesmo caso) e não esclarecem que, posteriormente, na década de 90, a mesma corte internacional entendeu que esta diretriz não se aplicava ao caso do juiz que tivesse apreciado pedidos de prisão ou de produção de prova antes do processo criminal, esta sim a hipótese da novidade em questão. Para o tema, confira-se, com maiores detalhes clicando aqui.

Porém, as críticas que entendo mais importantes são de ordem lógica e jurídica, que são muito mais fortes e contundentes e, curiosamente, menos lembradas.

O projeto parte do pressuposto da "contaminação" do juiz pela prova, pelo qual o o juiz que defere uma liminar ou uma medida de investigação faria um um juízo de valor - ainda que parcial - sobre o mérito e, por isso, ficaria “suspeito” ou “tendente em condenar” (interessante que não se menciona o fato de que o juiz que indeferir as medidas ficaria mais tendente a absolver).

Nada mais falso, por múltiplas razões.

Primeiro: o fato de o juiz deferir uma prova no começo de um processo ou decidir sobre um flagrante não implica que, posteriormente, com outras provas realizadas, o mesmo juiz não possa ter outro convencimento.

O fato de um magistrado permitir uma interceptação telefônica à luz de indícios iniciais não quer dizer que depois, com a ação penal e a instrução, o juiz, estudando as provas e ponderando os argumentos, não possa absolver. Apesar de inicialmente ter tido a impressão de que havia indícios, o juiz pode perceber - e isso acontece várias vezes - que não há prova suficiente à condenação ou concluir que a pessoa é, na realidade, inocente. Ademais, a própria prova determinada pelo juiz pode revelar pelo seu conteúdo que o investigado é inocente!

Aliás, o fato de o Juiz ter iniciativa probatória ou conhecer de alguma medida durante o inquérito não significa que irá produzi-la contra o réu. O juiz busca a verdade possível, dentro das regras processuais, pois ninguém tem poderes paranormais para adivinhar como ocorreram os fatos.

Segundo: qualquer estudante de Direito sabe que existem duas distinções muito claras e importantes não observadas pelos defensores do “Juiz das Garantias”.

Uma coisa é o chamado “juízo de cognição sumária e provisório”, que é a decisão feita no começo de um processo à luz dos documentos juntados neste início (por isso sumário, já que não é completo) e que pode se modificar posteriormente, com novas provas (daí o nome provisório).

Outra coisa, bem diferente, é o “juízo de cognição ampla e definitiva”, no qual o juiz analisa todos os documentos juntados por todas as partes com base em todos os argumentos aprofundados (por isso, amplo) e, então, quando forma a sua certeza, sentencia o processo.

Tal como ocorre no processo civil, uma medida liminar pode ser dada àquele que, num primeiro momento, tem maior probabilidade de estar com a razão (em linguagem jurídica, plausabilidade do direito invocado e verossimilhança das alegações, ou, ainda, “fumaça do bom direito”), e, depois, constatar que a razão cabia à parte contrária. Isso é normal e faz parte do jogo [para eventuais erros, há os recursos].

A outra distinção esquecida é entre o juízo de admissibilidade - decidir se pode ser feita uma prova ou não (ex: rejeitar uma gravação clandestina) - e o juízo sobre o conteúdo da prova - decidir se esta prova confirma os fatos alegados.

Em outras palavras, por exemplo, o juiz pode determinar um exame de DNA para apurar a paternidade, mas o exame dizer que a pessoa investigada não é o pai!

O fato de o juiz decidir que, naquele processo, era admissível o exame de DNA não obriga que o juiz se “contamine” e obrigatoriamente vá concluir que a pessoa é o pai. Isto é algo óbvio que aparentemente foi esquecida na defesa deste projeto.

O terceiro argumento é o da inutilidade da medida. Isso porque, se esta “contaminação” existisse, então o “Juiz de Garantias” não impede que posteriormente o juiz se contaminasse por outras decisões que são dadas entre o início da ação penal e a sentença.

Se assim não fosse, o juiz que atua no inquérito teria que ser um; o juiz que recebe a denúncia teria que ser outro; o juiz que ouve uma testemunha teria que ser um terceiro; o juiz que toma o interrogatório seria o quinto (afinal, ele tem que ouvir o réu sem se deixar influenciar pelas testemunhas) e o juiz que decide teria ser o sexto...

Aliás, e houvesse contaminação do juiz por ter proferido decisões admitindo a produção de provas ou deferindo medidas cautelares em favor de uma das partes antes do julgamento do processo, então a mesma medida deveria ser criada no processo civil com as ações que tratam de direito civil, administrativo, tributário, previdenciário, eleitoral e outras, porque também na jurisdição civil há medidas cautelares e de produção antecipada de provas.

E não bastaria criar Juiz de Garantias apenas no primeiro grau da jurisdição criminal!

Ele teria que ser criado também nos tribunais, porque uma determinada medida cautelar ou de produção de prova pode ser indeferida pelo juíz de primeiro grau e, em face de recurso, ser deferida por juízo de jurisdição mais elevada; nesse caso, o juiz da jurisdição mais elevada não só não está proibido de conhecer o processo posteriormente, como ocorerá justamente o contrário, isto é, ele é obrigado (ficará prevento) a conhecer de todos os demais recursos daquele processo, inclusive a apelação contra a sentença de mérito. Se o raciocínio do contágio fosse verdadeiro, ele dependeria também da apreciação de recursos com magistrados diversos.

Tudo isso para que um juízo proferido na fase anterior ou a colheita da prova anterior não "contaminasse" o juiz posterior.

O absurdo das conclusões demonstra a inutilidade da medida.

Em resumo, estes três argumentos demonstram que a inovação do “Juiz das Garantias” é uma medida desnecessária que, além das críticas práticas, políticas e contrárias à tendência internacional, ignora conceitos básicos da lógica do Direito. Ao final e ao cabo, será inútil, poderá gerar inúmeras discussões jurídicas com nulidades processuais que nada tem a ver com o mérito, gastando esforços que poderiam estar concentrados naquilo que realmente interessa.

Por Vilian Bollmann, juiz federal substituto da Vara Federal de Execuções Fiscais e Criminal de Blumenau (SC).

Fonte: Conjur

Um comentário:

Riquelme disse...

Ótimo texto! É muito bom poder ver o outro lado da moeda!
Os nobres "doutrinadores" que estão elaborando o CPP confundem presunção de inocência e ampla defresa com impunidade.
Peço licença para compartilhar em meu blog este texto.
Abs!!

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