Como é sabido, as atribuições do Ministério Público, embora múltiplas, estão sintetizadas no artigo 127 da Constituição Federal, as quais consistem na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, competindo-lhe, dentre outras funções específicas, promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei (CF, art. 129, I).
Pois bem, questão que merece alguma reflexão diz respeito à legitimidade/necessidade da intervenção do Ministério Público em segundo grau nas ações penais públicas propostas perante o juízo de primeira instância e submetidas à apreciação dos tribunais mediante recurso.
Em favor da legitimidade da intervenção ministerial, é comum afirmar que o Procurador Regional da República (Sub-Procurador Geral ou Procurador de Justiça), diversamente do que ocorre na primeira instância, atua na condição de fiscal da lei ou “custos legis”, de sorte que a legitimidade dessa segunda intervenção se funda no argumento de que, embora pertencentes à mesma instituição, seus membros desempenham papeis distintos: um como parte (autor) da ação penal; outro, como fiscal da lei.
Nem todos estão de acordo com isso, evidentemente. Paulo Jacobina, por exemplo, afirma que não é possível distinguir entre parte e fiscal da lei, porque, quando o Ministério Público é parte, é fiscal da lei, e quando é fiscal da lei, é parte, pois, mesmo quando se manifesta nos processos que envolvem interesses individuais indisponíveis, como interveniente, o Ministério Público é a um tempo fiscal da lei e parte, podendo requerer a produção de prova, recorrer, agir com todos os ônus e privilégios das partes, conforme dispõe o art. 83 do CPC. Apesar disso, distingue entre parte autora, que, na ação penal pública, é exercida pelo órgão que atua na primeira instância (com exceção das ações penais originárias), e parte interveniente, atribuição que compete ao Procurador de segunda instância, distinção que legitimaria a intervenção do órgão em segundo grau nas ações penais públicas, de sorte que, embora alterada a terminologia, as coisas permanecem, no essencial, como estavam.
Elmir Duclerc entende, com base nos princípios do devido processo legal e sistema acusatório, e por ser o Ministério Público, nas ações penais públicas, parte autora, que o parecer apresentado em segunda instância não tem qualquer sentido, devendo o Procurador, quando muito, sustentar oralmente o recurso ministerial (ou dele divergir) no mesmo prazo da defesa e, eventualmente, interpor recursos contra o acórdão, quando dele discordar.
Já Rogério Schietti considera superficial e simplista a distinção entre Ministério Público agente (parte) e Ministério consulente (fiscal), eis que, na ação penal pública, por mais que uma dessas funções se esconda por trás da roupagem verbal ou escrita da manifestação do membro da instituição, ela estará sempre presente. Assinala ainda que o parecer do Ministério Público em segundo grau, que mais atende à tradição do que ao sistema acusatório, não é obrigatório, mas facultativo, devendo sobre ele se manifestar a defesa, a fim de assegurar o contraditório e a ampla defesa. No mesmo sentido, Frederico Marques e Fernando da Costa Tourinho.
Temos que realmente o Ministério Público, nas ações penais públicas, é sempre autor (titular) da ação, independentemente da instância em que autuem seus órgãos, e essa condição (parte autora) permanece absolutamente inalterada pela circunstância de intervir em segunda instância um outro membro da instituição (Procurador Regional, Procurador de Justiça etc.). Além isso, a função constitucional de ambos os representantes é rigorosamente a mesma: defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127), não importando a que título intervenha. Afinal, o Procurador-Geral da República, os Sub-Procuradores Gerais da República, os Procuradores Regionais e Procuradores da República são o próprio Ministério Público, e não instituições distintas.
Não é preciso dizer que, independentemente da distinção entre autor e fiscal, o órgão do Ministério Público poderá sempre pleitear a condenação ou a absolvição, rever posicionamentos próprios ou alheios, recorrer etc., uma vez que aqueles que o representam não são órgãos da acusação, mas órgãos legitimadas para acusar; afinal, há muito está superada a figura do Procurador/Promotor implacável que persegue condenações a qualquer custo e que contabiliza as absolvições como derrotas e as condenações como vitórias.
O mais importante reside, porém, no seguinte: a distinção entre autor e fiscal da lei, apesar de tradicional e recorrente, é infundada, porque pressupõe dualidade onde existe ou deve existir unidade. Com efeito, por ser instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado (CF, art. 127), sua missão constitucional, em todos os processos em que intervém, é sempre a mesma, independentemente de quem a represente (Promotor, Procurador etc.) e da entidade ou grau de jurisdição (juízo, tribunal, conselhos etc.) em que atue. Além disso, por ser a instituição una/indivisível, não parece razoável que possa se fazer representar, autonomamente, por mais de um membro num só e mesmo processo, não raro para repisar os mesmos argumentos. Aliás, exatamente por isso, ninguém propõe que, na primeira instância ou nas ações penais originárias, atuem dois Promotores/Procuradores, um como autor da ação penal, outro como fiscal da lei.
Essa situação (duas ou mais intervenções) é ainda mais incompreensível quando, nas apelações criminais, o apelante, valendo-se do disposto no art. 600, §4º, do Código de Processo, apresenta razões em segundo grau, quando é então designado um Procurador Regional para apresentar contra-razões e outro para atuar como fiscal da lei, como se representassem instituições distintas ou cumprissem funções institucionais diversas.
Dir-se-á que a situação na segunda instância é diferente: o Procurador Regional da República (ou Procurador de Justiça) não ofereceu denúncia, não participou da instrução etc., e, por isso, exerceria semelhante munus mais isentamente. No entanto, a tese, além de questionável, dada a tendência natural de o colega de segunda instância se solidarizar com o de primeira, inclusive em razão da unidade da instituição, não justificaria, por si só, a intervenção em segundo grau, mesmo porque o dever de imparcialidade é comum a todos os seus membros, motivo pelo qual são passíveis de argüição de suspeição e impedimento (CPP, art. 104 e 112). Mais: a maior ou menor isenção é um atributo personalíssimo, que, como tal, varia de pessoa a pessoa, independentemente da posição em que é chamado a atuar.
Enfim, nas ações penais públicas, o Ministério Público é sempre titular da ação – logo, parte, obviamente -, não cabendo falar de fiscal da lei, interveniente ou similar, ao menos como pretexto para justificar posição processual autônoma, até porque a expressão “fiscal da lei”, que deve ser entendida como “fiscal da Constituição”, constitui expressão das mais vagas e que remete, em verdade, às próprias funções constitucionais e legais da instituição, e encerra, em última análise, uma tautologia. Mais: o vocábulo “fiscal da lei” (generalíssimo), que é também sinônimo de controle de legalidade, notadamente da legalidade constitucional, constitui função de praticamente todos os órgãos do Estado e da administração pública, apesar da diversidade de competências: Congresso Nacional, Judiciário, Tribunais de Contas, Fazenda Nacional, Polícias etc.
Também por isso, é irrelevante a distinção – que não é de natureza constitucional, mas processual - entre parte e fiscal da lei, porque, ainda que eventualmente não seja parte num determinado processo, o Ministério Público é sempre fiscal do ordenamento jurídico, motivo pelo qual a sua intervenção judicial ou administrativa sempre terá essa qualidade como pressuposto lógico inevitável. Quando em juízo, ser fiscal da lei e ser parte significam uma só e mesma coisa: o Ministério Público quando é fiscal da lei, é parte; quando é parte, é fiscal da lei, ou seja, fiscal da Constituição.
Por tudo isso é que parece insustentável a intervenção do Ministério Público em segundo grau nas ações penais apenas como “custos legis”, posição inclusive que não raro ofende o contraditório e a amplitude da defesa. No futuro a atuação do MP como parecerista deve ser abolida, se é que de fato foi recepcionada pela Constituição.
Por essas e outras, temos que já é tempo de se iniciar amplo debate sobre a necessidade urgente de revisão de toda a estrutura funcional do Ministério Público, a fim de tornar a sua atuação mais racional e eficiente.
Porque a história do Ministério Público é a história do Estado, um largo caminho de democratização, que só estamos iniciando, e que por isso requer uma constante revisão crítica e que implica, ao menos tempo, remover, permanentemente, mitos, ficções e alienações que impeçam essa revisão.
Por
Paulo Queiroz, doutor em Direito (PUC/SP), Procurador Regional da República, Professor do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e autor do livro Direito Penal, parte geral, S. Paulo, Saraiva, 3ª edição, 2006. -
http://pauloqueiroz.net/
Ministério Público como fiscal da lei em ação penal pública. Boletim dos Procuradores da República, ano 1, n° 6, outubro de 98.
Paulo Jacobina. Ministério Público como fiscal da lei em ação penal pública. Boletim dos Procuradores da República, ano 1, n° 6, outubro de 98.
Curso de Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen júris, 2007.
Garantias Processuais nos Recursos Criminais. S. Paulo: Atlas, 2002, p. 91/94.
Que escrevem, respectivamente: “o procurador-geral deve ter vista dos autos, não para neles oficiar, e sim para tomar conhecimento da causa e acompanhar seus trâmites no juízo ad quem. Abre-se-lhe vista para que verifique se deve fazer sustentação oral da acusação, colocar-se a par das questões debatidas no recurso e, se requerer intervenção nos debates orais do processo para responder à defesa, encontrar-se apto a propugnar pela condenação do acusado” (José Frederico Marques. Elementos de Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1965, v.4., p.220). “Embora nunca houvesse feito referência ao assunto, continuo sem entender essa estória de o Ministério Público da segunda instância atuar como custos legis. (…) Pelo princípio do contraditório, a defesa fala por último. Sendo assim, havendo um recurso interposto na primeira instância, o membro do Ministério público que fizer as contra-razões já estará atuando como parte acusadora e como fiscal da lei, ex vi do art. 257 do CCP. Por que a ouvida da Procuradoria como custos legis? A mim me parece que o Ministério Público de segunda instância, nos recursos oriundos do primeiro do primeiro grau, devia manifestar-se apenas sobre o aspecto formal do processo, deixando o mérito para o Tribunal. Todos sabemos que os Procuradores eram Promotores. Como podem eles, da noite para o dia, perder a agressividade acusatória para adquirir a serenidade da toga? Com raríssimas exceções, os Procuradores quando se manifestam nas apelações e recursos em sentido estrito deixam entrever, com clareza, que o cordão umbilical que os liga à parte acusadora não foi cortado…Sendo assim, como podem atuar com imparcialidade? Ademais, como a defesa deve falar por último, a rigor, os autos deveriam sair da Procuradoria e ser encaminhados à OAB” (Fernando da Costa Tourinho, citado por Rogério Schietti).
Eugênio Pacelli. Curso de Direito Processual Penal. Belo Horizonte: Del-Rey, 2007.
Claus Roxin. Posición jurídica y tareas futuras del ministério público. In el Ministerio Público en el Proceso Penal. Buenos Aires: Ad-hoc, 2000, p. 39.
De acordo com Fredie Didier, parte processual é quem está na relação jurídica processual, assumindo qualquer das situações jurídicas processuais, atuando com parcialidade e podendo sofrer alguma conseqüência com a decisão final (Curso de Processo Civil. Salvador: juspodium, 2007, p. 196). De modo similar, Guilherme Marinoni: aquele que toma “parte” no litígio, ou dele faz “parte”, deve ser considerado parte; aquele que é estranho ao litígio, ou dele não faz “parte”, embora a sentença contra ele produza efeitos, deve ser considerado terceiro (Curso de Processo Civil. S. Paulo: RT, 2004, p. 117). Nem todos estão de acordo com essa afirmação, de que o Ministério Público é parte. Nesse sentido, Diaulas Costa Ribeiro, para quem, com os deveres institucionais que lhe são inerentes, o Ministério Público não pode ser parte nem estar em situação de igualdade com os advogados de defesa na relação processual (Ministério Público: dimensão constitucional e repercussão no processo penal. S. Paulo: Saraiva, 2003, p.110). No entanto, as atribuições constitucionais do Ministério Público, embora o coloquem numa situação processual especialíssima, privilegiada, não lhe tiram a condição de parte; antes o confirmam.
Temos que só se pode falar de interveniente ou similar nas ações penais de iniciativa privada ou processos cíveis em que o Ministério Público não figure como autor.
Não por acaso, nalguns países a instituição é chamada Ministério Fiscal ou Fiscalia, e seus membros são denominados Fiscais.
Como assinalam Nelson Nery e Rosa Nery, qualquer que seja a causa que autorize o Ministério Público a intervir no processo, civil ou penal, o móvel dessa autorização é sempre o interesse público. Não existem dois interesses públicos, mas apenas um, de modo que sempre deverá intervir um representante do Ministério Público no processo civil, ainda que sejam várias as causas que determinaram sua intervenção. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante. S. Paulo: RT, 2004.
Nesse sentido, Natalie Ribeiro Pletsch. Formação da Prova no Jogo Processual Penal. S.Paulo: Ibccrim, 2007. Já Alberto Zacharias Toron propõe que, nas sustentações orais, se o Ministério Público figurar como recorrente, falará em primeiro lugar, falando em seguida a defesa, e não o contrário, como ainda ocorre. O contraditório nos tribunais e o Ministério Público. In Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco. RT: S. Paulo, 2003, p.91/101.
Juan Bustos Ramírez. Bases críticas de un nuevo derecho penal. Bogotá Temis, 1982, p. 150.
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