A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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15 de dezembro de 2007

Animais morais


Um dos livros mais instigantes que li este ano é "Moral Minds" (mentes morais), de Marc Hauser, no qual este biólogo evolucionário de Harvard apresenta um modelo bastante convincente de como desenvolvemos um senso universal do certo e do errado.

Trata-se de um tema seminal, que despertou a atenção de alguns dos maiores filósofos de todos os tempos, e está no centro dos mais acalorados debates da atualidade, constituindo o substrato de questões como religião, violência, aborto, eutanásia, liberação das drogas etc.

A tese central da obra de Hauser é a de que a faculdade moral é um instinto. A analogia é com a teoria da gramática universal de Noam Chomsky, que já comentei numa coluna mais antiga. Da mesma forma que nossos cérebros são equipados com um "software" lingüístico, que nos habilita a aprender praticamente "por osmose" o(s) idioma(s) ao(s) qual(is) somos expostos na primeira infância, nossa cachola também já vem com uma moral de fábrica. Não se trata, por certo, de um código penal, uma lista pronta e acabada de todas as ofensas possíveis e as respectivas punições, mas de um conjunto de princípios elementares, comuns a toda a humanidade, e maleáveis o bastante para comportar uma boa gama de variações culturais.

Com efeito, por maior que seja a exuberância dos comportamentos humanos narrados pelos antropólogos, não se conhece cultura que considere positivo matar o próximo, por exemplo. Assim, como regra geral, toda sociedade proíbe o homicídio. Mas uma característica das regras gerais é que elas comportam exceções. E é justamente a lista de exceções à regra geral da proibição do homicídio que dará o caráter de cada sociedade.

A maioria das culturas excusa o homicídio no contexto da legítima defesa (da própria vida ou da de terceiros). Algumas, estendem essa licença à proteção da propriedade. No velho Oeste americano, era legal e legítimo enforcar ladrões de cavalos. Um número não desprezível autoriza assassinatos em defesa da honra. Em alguns grupos, notadamente islâmicos (embora o preceito não esteja no Alcorão nem nos "hadith") espera-se que pais assassinem filhas que se mostrem infiéis a seus maridos. Variações semelhantes ocorrem em relação ao tratamento que diferentes culturas dão ao aborto, ao infanticídio, às presas de guerra etc.

Para ficarmos na analogia lingüística, da mesma maneira que idiomas apresentam características universais --como operar com sujeitos, verbos e predicados--, diferentes sistemas morais também possuem traços básicos comuns, a exemplo da proibição do homicídio, do horror ao incesto, da promoção da família etc. Mas, assim como cada língua, apesar das estruturas profundas comuns, permanece singular, também uma cultura, mesmo mantendo certos padrões universais, difere da outra.

É claro que tanto a razão como as emoções estão presentes em todas as decisões morais que tomamos. Não matamos aquele motoboy imbecil que arrancou o espelhinho de nosso carro tanto porque a maioria de nós tem uma repulsa natural ao assassinato --a emoção produzindo a moral, como defendia David Hume-- e também porque tememos as conseqüências legais de tal gesto --a razão, segundo a concepção de Immanuel Kant. O ponto que Hauser procura enfatizar, entretanto, é que a moral é um instinto, operando independentemente de razão e emoção. Aqui, ele se aproxima das idéias de John Rawls.

Esse é um campo que vem recebendo grande atenção de psicólogos evolucionistas e tem como matéria-prima os dilemas morais. É nesse ponto que os experimentos de Hauser trazem novos e fascinantes "insights". O autor propõe uma série de situações difíceis e nos convida a dar soluções. Também apresenta os resultados de suas entrevistas. São mais de 60 mil pessoas, gente de diversas etnias e com diferentes "backgrounds" que responderam ao questionário "on line" (não chega a ser uma amostra representativa do globo, mas não é um "n" desprezível). Você, leitor, também pode participar, clicando no site do teste.

Vamos ver alguns exemplos: Denise é passageira de um trem cujo maquinista desmaiou. A locomotiva desembestada vai atropelar cinco pessoas que caminham sobre a linha. Ela tem a opção de acionar um dispositivo que faz com que o comboio mude de trilhos, e, neste caso, atinja um único passante. Denise deve acionar a alavanca? Cerca de 90% dos entrevistados cederam à razão utilitária e responderam que sim. É melhor perder uma vida do que cinco.

Hauser então coloca uma variante do problema. Frank está sobre uma ponte e avista um trem desenfreado prestes a abalroar cinco alegres caminhantes. Ao lado dele está um sujeito imenso, que, se lançado sobre os trilhos, teria corpo para parar a locomotiva, salvando os cinco passantes. Frank deve atirar o gordão ponte abaixo? Aqui, a maioria (90%) responde que não, embora, em termos puramente racionais, a situação seja a mesma: sacrificar uma vida inocente em troca de cinco.

A constatação de que as respostas estão além da razão (pelo menos em sua expressão utilitarista) e da emoção é um argumento poderoso em favor do instinto, que é ainda reforçado pelo fato de representantes de grupos bastante diversos terem dado respostas muito semelhantes nestes casos.

Hauser sustenta que nosso "software" moral opera em torno de parâmetros como tipo de ação (se pessoal ou impessoal, direta ou indireta), conseqüências negativas e positivas e, principalmente, a intencionalidade. No fundo o que difere a ação de Denise da de Frank é que o sacrifício do passante solitário é uma espécie de efeito colateral (ainda que antevisto) de uma ação que visava a salvar cinco pessoas. Já atirar o gordão seria um ato intencional, um homicídio ainda que com o objetivo de obter um bem maior. Estamos aqui, se quisermos, diante da materialização empírica do imperativo categórico kantiano, que nos proíbe de usar seres humanos como meio para obter um fim (mesmo que nobre). Se assim não fosse, um médico estaria livre para capturar um sujeito saudável que passasse diante do pronto-socorro e, arrancando-lhe rins, fígado e coração para transplante, salvar a vida de quatro doentes.

Os experimentos mentais podem multiplicar-se e ficar bem mais sofisticados. E se, em vez da vida de cinco pessoas, o que estivesse em jogo fosse uma cidade inteira de 5 milhões de habitantes? Com números assim superlativos não seria lícito matar o gordão mesmo que intencionalmente?

Para além da riqueza de dados e novas perspectivas, "Moral Minds" oferece farta munição para destruirmos algumas "idées reçues" (idéias recebidas) renitentes. Uma falsa crença com a qual sempre me vejo às voltas quando incorro em textos ateus é a de que a religião é a fonte do comportamento moral das pessoas. Besteira. Como Hauser mostra de forma muito competente, a moralidade é tributária de um instinto que se consolidou no homem muitos milênios antes do primeiro padre celebrar a primeira missa. O que a religião fez, além da tentativa de usurpar para si a ética, foi despi-la de seus parâmetros variáveis e congelá-la no tempo, proclamando-a una e eterna. A menos que imaginemos um Deus racista, que faça questão de condenar todos os fores, de Papua-Nova Guiné, (canibais) e todos os faraós ptolomaicos (incestuosos), entre muitos outros povos e grupos que violam comandos bíblicos, temos de concluir que a moral é assunto complicado demais para ficar apenas nas mãos de religiosos.


Por Hélio Schwartsman, 42, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/helioschwartsman/

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