A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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28 de novembro de 2007

Da oportunidade de ficar calado


Na última sexta-feira, o Comitê das Nações Unidas Contra a Tortura publicou um relatório que reserva ao Brasil um quadro de iniqüidade. De acordo com a ONU, a tortura nos estabelecimentos penais do país é comum e sistemática, negros e mulatos são vítimas preferenciais do Estado e a impunidade das autoridades é um imperativo. Ao se defender do documento, o ministério da Justiça foi tímido e vago diante de uma conclusão apressada, prenhe de bobagens politicamente corretos e inconsistente. A ONU tomou a parte de todo e perdeu oportunidade fantástica de fazer estudo sério e fundamentado sobre a realidade do sistema prisional brasileiro.

Não há como negar que existe tortura no Brasil e a prática criminosa ocorre, principalmente, no âmbito das polícias estaduais. Também é verdade que dificilmente uma autoridade chega a ser sequer investigada pelo crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. Agora, dizer que a tortura é sistemática e alcança o sistema penitenciário é um exagero deliberado. Por sistemático entende-se como uma prática institucionalizada, o que não confere com a realidade, já que o desvio é exceção praticada pelo policial bandido. Estender a conduta como regra do quotidiano penitenciário beira à má-fé. O sistema prisional brasileiro tem vários defeitos e seria bom que a ONU os escancarasse até para que as autoridades brasileiras despertassem da omissão.

Não se pode admitir, entretanto, que a falta de infra-estrutura do dispositivo carcerário seja entendido como prática de tortura, crime há dez anos muito bem tipificado no ordenamento penal do Brasil. Isto é, no mínimo, obra de analfabetismo criminal assinada por policiólogos em busca de notoriedade. O documento chega a ser bizarro quando reclama que nas cadeias do país os observadores da ONU constataram “calor insuportável.” Depende. Se for em Cuiabá, o calor é mesmo expressivo e atinge até as sabiás que voam romanticamente pelas ruas. Não se pode dizer o mesmo de penitenciária gaúcha quando sopra o minuano.

Esse pessoal da ONU antes de vir para o Brasil devia entender que somos um continente tropical, de sol abrasador e composto por Nação miscigenada. Quando o relatório da ONU afirma que os descendentes de africano são vítimas preferenciais da tortura quer reeditar a máxima de botequim de que só o negro vai preso no País, quando isso não é verdade. De acordo com o censo penitenciário de 2007, a maioria dos presidiários se declara branca, depois vêm os mulatos e bem atrás os negros. Exatamente como é a composição étnica da sociedade brasileira. Há uma razão que explica o fato de o governo brasileiro ter ficado indignado com as conclusões, mas não extremamente indignado, como era de se esperar.

Os comissários da ONU argumentam que a superlotação dos presídios é causada pela imposição de penas longas e duras e pelo desprezo das chamadas penas alternativas. Bastava que tais analistas se debruçassem sobre a contabilidade da União para saber que a falta de investimentos é o motivo do déficit de vagas e da desumanidade encontrada. No Brasil se prende muito pouco e a chance do criminoso permanecer preso é mínima. O relatório da ONU possui uma singeleza extraordinária quando aponta a tendência de parte da sociedade e dos políticos brasileiros no sentido de pretender o isolamento dos bandidos em estabelecimentos penais. De acordo com o que se depreende do libelo da ONU, os signatários de tal entendimento são facínoras segregacionistas enquanto os bandidos vítimas do sistema. Perfeitamente, mas qual seria mesmo a sugestão do pessoal abrigar os autores de roubo, latrocínio e tráfico de drogas, clientela majoritária dos presídios? Isso eles não falam, até por respeito à soberania do Brasil.

A divulgação do relatório coincidiu com dois fatos comuns e sistemáticos que atestam a falência do sistema prisional. O primeiro foi o caso da adolescente presa junto a 20 marginais em cela degradante e com o conhecimento das autoridades policiais e judiciais. O outro, talvez pior, foi a constatação de que os presídios federais de segurança máxima não são páreo para a influência do Fernandinho Beira-Mar. Tivesse a ONU observado tais detalhes teria elaborado um relatório mais próximo da realidade e constatado que o problema do sistema penitenciário brasileiro é justamente o fato de não segregar, mas de agregar o crime e o criminoso no regime intramuros em uma sinergia fantástica.

Por Demóstenes Torres é procurador de Justiça e senador (DEM-GO) - http://oglobo.globo.com/pais/noblat/

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