Na generalidade das profissões, toda ação humana é direcionada a um fim previamente traçado. Para alcançá-lo, são despendidos energia, tempo e dinheiro. O gasto é justificado, portanto.
Todavia, na área jurídica, berço de princípios como o da proporcionalidade e o da eficiência, por muitas vezes consomem-se todos aqueles bens da vida a que antes nos referimos – energia, tempo e dinheiro – com prévia ciência da inutilidade do esforço.
Mais do que em qualquer outro ramo do direito, é no processo penal que essa equação desproporcional verifica-se. Demandas são iniciadas ou desenvolvidas com o objetivo (declarado) de alcançar-se a condenação do réu quando sabido de antemão que elas não terão um resultado útil, pois, ainda que a acusação logre sucesso, a pretensão punitiva estatal ver-se-á fulminada pela prescrição no momento em que definida a pena do acusado.
A prática, que no âmbito de qualquer outro ofício seria encarada como contrária à razão, é contemplada com absoluta naturalidade no meio jurídico. Mais: é legitimada pelo Supremo Tribunal Federal, que rechaça a possibilidade de reconhecer-se antecipadamente a prescrição da pretensão punitiva estatal mediante a realização de um prognóstico da pena que seria aplicada ao indiciado – no caso de processo ainda não deflagrado – ou ao acusado – no caso de demanda em tramitação –, como demonstram recentes decisões proferidas pela Corte (HC 90.337/SP [01], HC 88.087/RJ [02] e RHC 86.950/MG [03]).
Embora o Supremo Tribunal Federal, assim como a maioria dos tribunais do país [04], venha dessa maneira decidindo, não há como negar que a decretação antecipada da prescrição é uma realidade (e bem sabe disso quem vive o dia-a-dia do processo penal).
Uma realidade que, na imensa maioria das ocasiões, não é levada até o grau recursal (onde a decisão extintiva da punibilidade é invariavelmente cassada), mas que se faz presente em primeiro grau de jurisdição, local no qual magistrado, promotor de justiça e defensor concordam sobre a total inutilidade do seguimento de determinada investigação ou demanda penal.
Resta saber qual entendimento deve prevalecer. Para nós, certamente, o da possibilidade de reconhecimento antecipado da prescrição.
É dentro dessa perspectiva que as presentes linhas serão desenvolvidas. A idéia, que não é nova, aqui é encarada por ângulo diverso do habitual. Ao invés de trabalharmos com as condições da ação penal, e, especificamente, com o conceito de interesse de agir, que, segundo variados autores, estaria ausente na hipótese versada [05], foca-se o estudo na inconstitucionalidade material do provimento estatal que promove (Ministério Público) ou permite (Poder Judiciário) demandas inúteis.
A mudança do olhar, a par de prestar deferência à hierarquia das normas, permite concluir, com tranqüilidade, que a instauração ou a continuidade de uma ação penal que não poderá, em hipótese alguma, alcançar o objetivo almejado pelo Estado é que agride o ordenamento jurídico, e não o contrário.
Ainda dentro dessa perspectiva, fiéis à nossa origem, e convictos de que o sistema inquisitorial estatuído pelo Código de Processo Penal, e lamentavelmente ainda adotado por muitos atores jurídicos, não sobrevive frente às atuais disposições constitucionais, buscamos relacionar o tema principal com a atividade do membro do Ministério Público. Novos tempos, novas concepções: não é admissível que, em um sistema onde o Ministério Público é o titular da ação penal, e em que vigoram os princípios do devido processo legal, da proporcionalidade e o acusatório, uma demanda penal predestinada à inutilidade seja instaurada ou continue sem a vontade do órgão acusatório. Decorrência lógica da asserção é que não só nas mãos do Poder Judiciário mas também do Ministério Público está a decisão acerca do destino de um inquérito ou processo dessa natureza.
Portanto, são estes, em suma, os objetivos das presentes linhas: defender (a) que o reconhecimento antecipado da prescrição da pretensão punitiva é uma exigência constitucional e (b) que o Ministério Público também tem responsabilidade por seu reconhecimento.
Salienta-se, por oportuno, que aqui não se realizou qualquer juízo de valor acerca da conveniência do instituto da prescrição [06]. Pelo contrário, trabalhamos com fatos: a prescrição, da pretensão punitiva ou executória, tem previsão expressa no ordenamento jurídico brasileiro. A partir dessa premissa é que são desenvolvidas as ponderações que seguem.
De acordo com o Código Penal, a prescrição da pretensão punitiva estatal, que é aquela que ocorre antes de a sentença penal transitar em julgado, pode ser regulada por dois padrões distintos. Em um primeiro momento, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime (artigo 109 do Código Penal): é a denominada prescrição abstrata [07]. Após a concretização da reprimenda na sentença, e desde que não exista recurso do Ministério Público, ou, havendo recurso, desde que ele seja julgado improcedente [08], a prescrição passa a ser regulada pela quantidade de pena aplicada ao acusado (artigo 110, § 1° e § 2°, do Código Penal). Dependendo do momento em que o lapso necessário para o reconhecimento da prescrição verificar-se, ela será chamada de prescrição retroativa [09] – quando esse interregno é satisfeito entre a data do fato reputado delituoso e o recebimento da denúncia ou da queixa, ou entre esse marco regulatório e a publicação da sentença condenatória – ou intercorrente [10] – quando o intervalo é liquidado entre a publicação da sentença condenatória e o trânsito em julgado dessa decisão.
É evidente que o tormentoso tema da prescrição da pretensão punitiva não se esgota nas breves linhas do parágrafo anterior. Para os objetivos do presente artigo, no entanto, é suficiente fixar a distinção entre prescrição abstrata, retroativa e intercorrente.
E a diferenciação é necessária porque foi com o empréstimo da noção de prescrição retroativa que a doutrina criou a chamada tese da prescrição antecipada [11], também conhecida como prescrição em perspectiva ou virtual.
A idéia subjacente a essa teoria é a de que a pena que será aplicada ao indiciado ou ao réu no momento da sentença pode ser prognosticada antes mesmo do início do processo (e, logicamente, também em seu decorrer). Basta realizar a subsunção do fato tido como criminoso ao tipo penal correspondente e, após, com base em parâmetros jurídicos (aqueles indicados no artigo 68 do Código Penal) e reais (aqueles que se extraem da conjuntura do próprio fato delituoso e da vida do indiciado ou réu), calcular a pena que provavelmente seria aplicada àquele que é apontado como responsável pelo ilícito, se condenado viesse a ser. A seguir, de posse dessa informação, e com base nos parâmetros indicados no artigo 109 do Código Penal, verifica-se a eventual ocorrência da prescrição punitiva na forma retroativa, que, como vimos, é aquela que acontece entre a data do fato delituoso e o momento do recebimento da denúncia ou da queixa, ou entre esse marco temporal e a data da publicação da sentença condenatória. Caso entre qualquer um desses espaços de tempo já haja passado prazo suficiente para a decretação da prescrição, ela é, então, antecipadamente declarada, sem a necessidade de percorrer-se o caminho até a sentença.
Como é perceptível, tratamos de uma teoria defendida por muitos, porém não prevista expressamente na lei. A lacuna legislativa, contudo, não se afigura como obstáculo intransponível ao reconhecimento da prescrição antecipada. Pelo contrário, à luz do princípio constitucional da proporcionalidade, que será na seqüência analisado, vedar-se o reconhecimento antecipado da prescrição é que, parece-nos, contraria o ordenamento jurídico.
A premissa de que todo ato que emana do Estado deve ser dotado de proporcionalidade é aceita hoje, sem maiores discussões, como princípio constitucional. Sinal disso é que, ao contrário do que ocorre com outros assuntos polêmicos, onde a doutrina habitualmente caminha solitária, o consenso em relação ao princípio é, há décadas, compartilhado pelo Supremo Tribunal Federal. De fato, a Corte, que inicialmente admitia apenas a sindicabilidade dos atos administrativos [13] e judiciais [14], paulatinamente passou a acolher também a tese de que mesmo os atos legislativos são passíveis de ter sua constitucionalidade analisada sob o viés da proporcionalidade [15]. Portanto, hoje é pacífico que o referido princípio projeta sua força normativa sobre qualquer ato que emana do Estado, tenha ele natureza administrativa, judicial ou legislativa.
Apesar da sofisticação teórica que dá sustentação ao aludido princípio, a idéia que o embasa é muito simples: todo ato proveniente do Poder Público deve ser proporcional, razoável, equilibrado, voltado, enfim, à satisfação dos interesses estatais, sem, todavia, acarretar um fardo desmesurado àquele que é atingido pela medida. Ou, nas palavras de Luís Roberto Barroso:
O princípio da razoabilidade é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça. Sendo mais fácil de ser sentido do que ser conceituado, o princípio se dilui em um conjunto de proposições que não o libertam de uma dimensão excessivamente subjetiva. É razoável o que seja conforme a razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso; o que corresponda ao senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou lugar. [16]
Como é evidente, essa breve noção não encerra o assunto, sobretudo porque são necessários parâmetros para definir quando um ato oriundo do Poder Público será, ou não, razoável.
Esses parâmetros, assim como, de resto, o desenvolvimento da teoria que dá sustentação ao princípio da proporcionalidade, são devidos, em sua maior parte, à doutrina e jurisprudência alemãs.
Diante da árdua lição ministrada durante os tempos da Alemanha nacional-socialista, quando barbáries foram cometidas com apoio na lei, ponderaram os estudiosos alemães que a mera legalidade de um ato ou norma estatal não é sinônimo de sua constitucionalidade. A par de legal, é necessário que o ato seja também proporcional, sob pena de afronta à Constituição.
Partindo dessa premissa, os idealizadores da teoria decompuseram o princípio da proporcionalidade em três subprincípios, a que está submetido todo provimento estatal: adequação (idoneidade), necessidade (exigibilidade) e proporcionalidade em sentido estrito. A função deles é servir de guia do intérprete na tarefa de desvendar se um ato estatal atende, ou não, ao princípio da proporcionalidade.
Analisemos, rapidamente, o significado de cada um desses subprincípios, para, a seguir, relacioná-los com o tema da prescrição antecipada.
Todo provimento estatal (ao menos idealmente) deriva de um motivo e é meio para alcançar um determinado fim. Mediante a aplicação do subprincípio da adequação (idoneidade) procura-se, então, verificar se o meio utilizado (provimento estatal) é adequado para alcançar o fim que o Poder Público está (ao menos declaradamente) buscando. Um exemplo singelo, relacionado à prática de um ato típico do Poder Executivo, servirá como ilustração. Imagine-se uma repartição pública onde os funcionários, em número de cinco, não são suficientes para dar conta do serviço (motivo). Objetivando aperfeiçoar o serviço (finalidade), o chefe da repartição, obedecendo a todos os trâmites legais, providencia a compra de cinco computadores de última geração (meio). Descobre-se, porém, que todos esses funcionários, por conta da natureza do serviço, limitam-se a realizar trabalho de campo, em local onde o uso dos computadores seria absolutamente inviável. Nesse caso, malgrado a aparente legalidade do ato, sua inidoneidade para o alcance do fim proposto é evidente. Padece o ato, portanto, do vício da ausência de proporcionalidade entre o motivo, meio e fim.
Por intermédio do subprincípio da necessidade (exigibilidade) perquire-se se o meio escolhido para alcançar a finalidade almejada pelo Poder Público é aquele que atinge de forma menos gravosa a esfera privada do cidadão. Caso exista um meio menos agressivo, mas tão eficaz quanto aquele eleito, ter-se-á o ato como desproporcional por ofensa ao subprincípio da necessidade. Da recente Lei n° 11.340/2006 podemos colher outro exemplo, agora relacionado a uma atividade típica do Poder Judiciário. Imaginemos que no decorrer de um inquérito policial surjam indícios de que o investigado tenha violentado sua esposa. Nesse mesmo procedimento, apura-se que a violência não é uma constante na vida do casal, tratando-se de fato isolado. Ainda assim, por prudência, o magistrado, analisando pedido do Ministério Público, entende que o distanciamento dos membros do casal é salutar, razão por que decreta a prisão preventiva do indiciado. O ato é legal? Sim, sem dúvida. Será, no entanto, proporcional quando sabido que essa mesma Lei permite que o afastamento seja realizado através de meio muito menos gravoso ao investigado (medida protetiva de afastamento do lar)? Definitivamente, não. Logo, o ato judicial é desproporcional por ofensa ao subprincípio da necessidade, pois o distanciamento do casal (finalidade) podia ter sido alcançado através do mero afastamento do lar (meio menos agressivo).
Finalmente, por meio do subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito é examinado se a restrição gerada pelo provimento que emana do Poder Público se mostra em uma relação proporcional com o proveito por ela produzido. Figurativamente, colocam-se em diferentes lados de uma balança a restrição ao direito e o proveito criado por ela, analisando-se se eles estão em uma relação proporcional, ou seja, se a vantagem é suficiente para justificar a restrição. Ou, na feliz síntese de Daniel Sarmento (tratando, especificamente, da incidência do princípio sobre os atos legislativos): "o ônus imposto pela norma deve ser inferior ao benefício por ela engendrado, sob pena de inconstitucionalidade". [17] O exemplo seguinte, que é real, envolve a análise da proporcionalidade de um ato legislativo: o Supremo Tribunal Federal, ao analisar pedido de medida cautelar na ADIN n° 855-2 (ainda em tramitação), deferiu o pleito para suspender provisoriamente os efeitos da Lei n° 10.248/93, do Estado do Paraná, que obrigava as companhias de gás a pesarem, em cada venda, o botijão de gás na frente do consumidor. Ao analisar o caso, Suzana de Toledo Barros anota, com precisão, a ausência de uma relação proporcional entre o ônus gerado às empresas de gás e o benefício ocasionado ao consumidor:
O diploma legal (Lei n° 10.248/93), que previa a obrigatoriedade de pesagem de botijão de gás à vista do consumidor, foi impugnado, entre outros argumentos, por impor ônus excessivo às companhias de gás, já que elas teriam de dispor de uma específica balança em cada veículo ou posto de revenda, gravame este ao qual não corresponderia uma vantagem ao consumidor. [18]
Agora que examinamos, de maneira sucinta, os três subprincípios em que se decompõe o princípio da proporcionalidade, é momento de relacioná-los com o tema da decretação antecipada da prescrição.
De início, porém, é propositado assinalar que a menção aos subprincípios da necessidade (exigibilidade) e da proporcionalidade em sentido estrito foi realizada muito mais para fins didáticos do que para os objetivos da tese que aqui se defende. Isso porque o exame da proporcionalidade do provimento estatal deve ser realizado por etapas [19], apreciando-se cada um dos subprincípios na ordem em que aqui foram apresentados: adequação (idoneidade), necessidade (exigibilidade) e proporcionalidade em sentido estrito.
E, quando perscrutada sob a ótica da proporcionalidade, a manifestação estatal representada pela propositura ou manutenção de uma ação penal quando sabido de antemão que posteriormente verificar-se-á a prescrição da pretensão punitiva estatal na forma retroativa, falha já no primeiro "teste", mesmo que o ato seja revestido de legalidade.
A conclusão é, aliás, elementar. É o desrespeito ao mandamento proibitivo de uma regra penal (motivo) que autoriza a deflagração (ou manutenção) da ação penal (meio) que, por sua vez, tem como objetivo "restringir o jus libertatis com a inflição da pena" (finalidade) [20]". Mas o que acontece quando se sabe, com antecedência, que a prescrição fatalmente ocorrerá? O Estado emprega um meio (ação penal) que não tem qualquer finalidade, pois o investigado ou acusado não será, em hipótese alguma, atingido por sanção penal. Regressando ao que dissemos no início, estaremos diante de um legítimo caso em que energia, tempo e dinheiro são gastos inutilmente.
Nada, salvo o fetiche pelo positivismo e a incapacidade de leitura das normas penais à luz da Constituição Federal, justifica essa postura, ultrapassada não só do ponto de vista científico mas também quando nos damos conta dos gastos que envolvem a empreitada.
Refutamos, então, a tese, professada inclusive pelo Supremo Tribunal Federal, no sentido da não aceitação do instituto da prescrição antecipada em virtude da inexistência de previsão legal que o ampare. Nosso Estado é de Direito e não de Lei. E Direito, desde o "descobrimento" da força normativa dos princípios, não se resume à mera aplicação irracional do que está inscrito em norma ordinária.
Ainda menos sedutores são os argumentos, também abraçados pelo Supremo Tribunal Federal, no sentido de que o instituto não pode ser utilizado porque (a) obsta que o réu prove a sua inocência ou porque (b) no decorrer da ação penal poderá o Ministério Público "comprovar a não primariedade ou outra circunstância judicial desfavorável aos recorridos", como pontuado no RHC 86.950/MG [21].
É preciso acordar para a realidade. Ignorar o suplício que é um processo penal e se fiar no simplório argumento de que o réu tem direito a provar sua inocência beira à hipocrisia. Em primeiro lugar, porque o argumento é falacioso: se isso fosse verdade, a prescrição retroativa (a real, não a antecipada), embora decorrente de norma expressa (artigo 110, § 1º, do Código Penal), não poderia ser decretada quando houvesse recurso exclusivo da defesa (e, note-se, nesse caso estaríamos lidando, supostamente, com o princípio constitucional da inocência, que prevaleceria frente à norma de lei ordinária). Depois, porque, a par da falha do argumento, o "problema" é muito fácil de ser contornado: basta que, antes da decretação da prescrição, o investigado ou réu seja intimado para que informe se concorda com a providência. Caso sua anuência não seja colhida, o processo segue em frente.
De outro lado, é verdade que no decorrer da ação poderá o Ministério Público, eventualmente, trazer aos autos algum fato que acarrete o aumento da pena do réu. Disso não há dúvida. É necessário, todavia, manter os pés no chão. Quando defendemos a decretação antecipada da prescrição, não estamos admitindo que a providência seja tomada quando houver qualquer espécie de hesitação acerca do que ocorrerá futuramente. O instituto deve ter aplicação reservada às hipóteses em que é incontestável que a continuidade da investigação ou do processo será inútil, na medida em que inevitável a posterior decretação da prescrição na forma retroativa. E, sabe qualquer um que lida com processo penal e não mente a si mesmo, existem numerosas ocasiões em que, mesmo se admitindo a possibilidade de durante o processo surgir alguma circunstância que acarretará o aumento da pena (o que é exceção – em geral, antes mesmo da propositura da ação o Ministério Público já tem condições de saber se existem circunstâncias que pesam contra o réu), ainda assim ocorrerá a prescrição retroativa. Aliás, como bem pontua Róbson de Vargas ao tratar das dificuldades de se avaliarem certas circunstâncias judiciais na fase inquisitorial: "avaliações sobre circunstâncias como conduta social e personalidade do agente normalmente são precárias nesta fase, mas, diga-se de passagem, que diferente não é na própria instrução do feito na fase judicial" [22]. Portanto, é somente nas ocasiões em que evidente a ocorrência futura da prescrição – e somente nelas – que a extinção da punibilidade poderá ser decretada antecipadamente.
Por fim, é oportuno assinalar que o princípio da proporcionalidade se projeta tanto sobre o ato judicial que recebe ou permite a continuidade da ação penal quanto sobre os atos ministeriais que promovem sua propositura ou impulso. Sobre o assunto, aliás, é perfeita a análise realizada por Denílson Feitoza Pacheco:
O princípio da proporcionalidade é aplicável toda vez que ocorre uma intervenção em um direito fundamental. (...) No presente estudo, concentramo-nos especificamente nos direitos fundamentais das pessoas ou entes sujeitos à persecução criminal. (...) Mutatis Mutandis, essas regras são aplicáveis às medidas administrativas e judiciais de intervenção em direitos fundamentais, ou seja, às intervenções persecutório-administrativas (delegado de polícia, promotor de Justiça, procurador da República, encarregado de inquérito policial-militar, CPI etc.) e judiciais (juiz, tribunal, conselho de justiça militar etc.) (...). [23]
E, se assim é, cabe perguntar qual atitude se espera do agente do Ministério Público quando confrontado com a situação aqui delineada, questionamento que procuraremos responder na seqüência.
Não é novidade que desde a Constituição de 1988 as atribuições do Ministério Público cresceram. Em razão disso, ao contrário do que fez por muito tempo, hoje a Instituição lança seu foco exclusivamente sobre funções que sejam efetivamente relacionadas com sua missão constitucional. Abandona, ao poucos, as atribuições que não estejam estritamente ligadas à defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos direitos individuais e sociais indisponíveis [24]. A mudança de postura não é casual: consolidada a relevância da Instituição, é momento de responder aos anseios da sociedade – e eles não serão satisfeitos sem a racionalização de suas atividades.
Passa por aí a questão da decretação antecipada da prescrição retroativa. Se não por razões de caráter científico, ao menos por razões de praticidade, o Ministério Público tem de fazer a pergunta a si mesmo: é correto deixar de lado outras atribuições para investir na propositura ou na continuidade de ações penais que, evidentemente, serão atingidas pela prescrição? A pergunta não é retórica. Pelo contrário. Quem atua na função sabe que o cotidiano do agente do Ministério Público é povoado de situações como essas.
O questionamento tem ainda mais pertinência quando nos damos conta que o Ministério Público tem o poder de dar fim a inquéritos policiais ou a processos penais que não chegarão a lugar algum, ainda quando os tribunais não entendam da mesma maneira.
Embora essa afirmação possa, em um primeiro momento, causar perplexidade, ela deriva de mero raciocínio lógico. Ora, o processo não inicia e não continua sem a participação do Ministério Público. Não inicia em virtude do disposto no artigo 129, I, da Constituição Federal. Não continua por conta do teor desse mesmo artigo (só uma interpretação obtusa e ultrapassada da mencionada disposição pode levar à conclusão de que o "promover" se adstringe à propositura da ação, e que, uma vez realizado esse ato processual, o juiz de direito está livre para exercer a inquisição), em razão da incidência do princípio do devido processo legal (toda defesa pressupõe uma acusação – e a acusação no decorrer do processo tem de ser exercida pelo Ministério Público e não por um juiz inquisidor) e, finalmente, por causa da adoção do sistema acusatório por nossa Constituição Federal (sistema que atribui ao Ministério Público a responsabilidade pela gestão da prova).
Assim, ainda que prossiga o entendimento da maioria dos tribunais no sentido de que é inviável a decretação antecipada da prescrição, o Ministério Público pode, se assim quiser, e desde que haja um consenso dentro da Instituição, dar solução antecipada aos inquéritos policiais e às ações penais em que certa a prescrição futura: basta, nos inquéritos policiais, não oferecer a denúncia, e, nos processos penais, não dar continuidade à demanda já instaurada (insistimos: o "promover" a que se refere o artigo 129, I, da Constituição Federal significa muito mais do que o mero ingresso da ação – naturalmente, a lição só faz sentido para aqueles que já se deram conta que o sistema inquisitorial é incompatível com a atual ordem constitucional).
Agindo dessa maneira, o Ministério Público, de um lado, refletiria sua maturidade institucional – assumindo o ônus de determinar quando o ajuizamento ou a continuidade de uma ação penal são medidas necessárias –, e, de outro, faria jus à razão de sua existência, que nada mais é do que a defesa da sociedade – que apenas tem a perder com a propositura ou continuidade de ações penais que não terão qualquer utilidade.
5.1. A decretação antecipada da prescrição da pretensão punitiva do Estado, embora não prevista em lei, é uma realidade, tanto no plano dos fatos como do direito.
5.2. No plano dos fatos, porque o instituto tem sido largamente utilizado no primeiro grau de jurisdição, onde ocorre um acordo tácito entre os atores jurídicos, evitando que a questão seja submetida aos tribunais, que, regra geral, cassariam a decisão em pauta.
5.3. No plano do direito, pois um ato estatal (judicial ou persecutório-administrativo) que restringe direitos individuais fundamentais sob o argumento de alcançar uma finalidade que jamais poderá ser atingida é materialmente inconstitucional por infração ao princípio da proporcionalidade (e, especificamente, ao subprincípio da adequação).
5.4. Discordamos do entendimento expressado pelos tribunais superiores no sentido de que a ausência de lei autorizativa impede a decretação antecipada da prescrição. Pelo contrário, o reconhecimento da força normativa dos princípios leva, justamente, à conclusão de que a providência é possível, desde que preenchidos os requisitos para tanto.
5.5. De outro lado, apesar de verdadeira a asserção no sentido de que de que o reconhecimento antecipado da prescrição impede que o investigado ou réu prove a sua inocência, o problema é contornável: basta que se dê a ele a oportunidade para manifestar se concorda, ou não, com a providência. Afinal, é ele, é só ele, quem tem condições de avaliar qual medida lhe atinge mais gravemente – a instauração/continuidade do processo ou a perda da chance de provar sua inocência.
5.6. Da mesma forma, é possível decretar-se antecipadamente a prescrição sem correr-se o risco de beneficiar indevidamente um investigado ou réu que possua circunstancias judiciais desfavoráveis, mas desconhecidas do Ministério Público. Basta que a extinção da punibilidade somente seja decretada quando, em um juízo antecipado, surja incontestável a conclusão de que a prescrição ocorreria mesmo se futuramente descoberto que o investigado ou réu era detentor de um péssimo "currículo".
5.7. A partir do momento em que, afastando-nos das "certezas" pregadas pelo senso comum, damos-nos conta de que, sem a participação efetiva do Ministério Público uma ação penal não pode seguir em frente – salvo se ignorados princípios como o do devido processo legal e o acusatório –, há que se reconhecer que é também dessa Instituição a decisão acerca da instauração ou continuidade de uma ação penal predestinada à inutilidade.
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01 DJU de 6.9.2007, Rel. Min. Carlos Britto.
02 DJU de 17.10.2006, Rel. Min. Sepúlveda Pertence.
03 DJU de 10.8.2006, Rel. Min. Joaquim Barbosa.
04 A 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul é honrosa exceção, como pode ser conferido nos seguintes julgados, todos relatados pelo Desembargador Sylvio Baptista Neto: AC 70018365668, publicado do DJE de 24.4.2007; RSE 70016958670, publicado no DJE de 15.3.2007; RSE 70014264014, publicado no DJE de 27.4.2006.
05 É o caso, por exemplo, de Eugênio Pacelli de Oliveira, que afirma inexistir o interesse processual nas ações penais em que certa a prescrição futura porque "o processo, como instrumento da jurisdição, deve apresentar em juízo prévio e necessariamente anterior, um mínimo de viabilidade de satisfação futura da pretensão que informa seu conteúdo".
06 A respeito do assunto, vide Projeto de Lei da Câmara n° 19/2007, que "altera os artigos 109 e 110 do Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal (exclui do ordenamento jurídico o instituto da prescrição retroativa)."
07 Embora o termo "prescrição abstrata" seja empregado com freqüência, tecnicamente mais correto é designar essa espécie de "prescrição da pretensão punitiva estatal com base na pena abstratamente cominada ao crime".
8 É interessante perceber que, apesar de o Código Penal silenciar a esse respeito, a prescrição da pretensão punitiva retroativa ou intercorrente também pode ser regulada pela pena concretizada no acórdão.
09 Ou, com mais técnica, "prescrição da pretensão punitiva estatal na forma retroativa".
10 Ou, com mais técnica, "prescrição da pretensão punitiva estatal na forma intercorrente".
11 Ou, com mais técnica, "prescrição da pretensão punitiva estatal na forma intercorrente, com base em um prognóstico da pena que seria aplicada ao investigado ou acusado".
12 Os conceitos de proporcionalidade e razoabilidade são aqui tomados como sinônimos.
13 É exemplo a decisão proferida no RE 365368/SC. DJU de 29.6.2007, Rel. Min. Carlos Velloso.
14 É exemplo a decisão proferida no HC 82.969/PR. DJU de 17.10.2003, Rel. Min. Gilmar Mendes.
15 O marco histórico é o julgamento efetuado na ADIN n° 855-2, em 1° de junho de 1993, momento em que o Supremo Tribunal Federal admitiu expressamente que o princípio da proporcionalidade era norma do ordenamento jurídico brasileiro.
16 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 6 ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 224.
17 SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 89.
18 BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3.ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2003. p. 121.
19 BARROS, Suzana de Toledo. Op. cit., p. 182-184.
20 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 6.
21 DJU de 10.8.2006, Rel. Min. Joaquim Barbosa.
22 VARGAS, Robson de. O reconhecimento antecipado da prescrição penal retroativa. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 55, p. 347, jul./ago. 2005.
23 PACHECO, Denílson Feitosa. O princípio da proporcionalidade no direito processual penal brasileiro. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2007. p. 144-145.
24 A título de exemplo, basta observar que há bem pouco tempo o Ministério Público tinha como regra a intervenção em qualquer ação que envolvesse entes públicos. Hoje, ao contrário, o entendimento maciço da Instituição é de que a simples existência de ente público em um dos pólos da demanda não é suficiente para gerar a necessidade de intervenção do Ministério Público como fiscal da lei.
Um comentário:
Ótimo artigo! Muito bem explicado.
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