
Comarca de Passo Fundo – 1ª Vara Criminal
Autor: Ministério Público
Réu: V. D. S., vulgo “N. J.”
Vistos.
Compulsando os autos e meditando sobre o tema da assistência à acusação e sobre a (escassa) doutrina escrita, chego à conclusão que se deve expurgar do processo penal a figura do assistente à acusação, por sua flagrante inconstitucionalidade. Passo a justificar, ainda que sucintamente, como segue.
A figura do assistente à acusação, também chamado assistente do Ministério Público no processo penal, está disciplinada nos arts. 268 a 273 do CPP.
Todos eles são inconstitucionais, a partir da vigência da Carta Magna de 1988.
Ocorre que a Constituição Federal, em seu art. 129, inc. I, estabeleceu como função institucional do Ministério Público “promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”.
A Constituição Federal, operando profundas mudanças no processo penal, terminou com a chamada “ação penal pública ex officio”, que anteriormente era iniciada por portaria judicial ou policial, ou através de prisão em flagrante. A opção do constituinte foi clara e desejada no sentido de dar maior publicização do processo penal, estabelecendo ao órgão estatal apropriado (o Ministério Público) o completo monopólio sobre a ação penal pública – princípio da oficialidade da ação penal pública -.
Mais, em só uma situação existe a possibilidade de atuação da parte privada no campo da ação penal pública, que é monopólio do Ministério Público: em caso de ação penal privada subsidiária da pública, art. 5º, inc. LIX, da CF.
Mas, neste caso, o que se tem é uma falta de ação do Ministério Público. Gize-se que são extremamente raros, diria até inexistentes, casos de ação penal privada subsidiária da pública. Contrariamente ao aqui previsto na ordem constitucional, o que se tem, no processo penal, é uma presente, firme e combativa atuação do Órgão Ministerial.
Haveria excesso de acusação, e até desvio acusatório, pois, sem qualquer demérito ou preconceito para a vítima, seus interesses são sempre particulares, emocionais e carregados de vindita.
O argumento de que a parte privada deve discutir, na ação penal, o direito indenizatório (an debeatur), legitimada pelo interesse patrimonial, também não convence, porque terá ela a oportunidade de (se for o caso) executar a ação penal condenatória, podendo, se preferir, discutir o mérito de sua pretensão com o ingresso no juízo cível (aqui com maior amplitude, pois é sabido que a culpa civil é mais ampla que a penal).
Pragmaticamente surge outro argumento inquestionável, o de que ainda aceitando a figura do assistente ao Ministério Público estaria o Estado admitindo deficiências em seu próprio órgão de acusação, colocando o Ministério Público sob a desconfiança de um precário desempenho na realização da pretensão punitiva, pois somente o Estado, titular do jus puniendi, tem interesse na aplicação da pena.
Volta-se a argumentar, é legítimo o interesse de vingança privada e indenizatório do particular (vítima), porém, seu campo de discussão deve ser limitado ao juízo civil.
Esta tese, da inadmissibilidade do assistente particular, é correta pelo argumento jurídico e também pelo argumento sociopolítico. LÊNIO STRECK[1] diz, com propriedade: não se pode admitir, no momento em que se caminha mais e mais em direção ao Direito Público, um retrocesso que sustente aspectos privados no processo penal. A figura do assistente de acusação é condizente com um modelo de direito liberal-individualista, de cunho ordenador, instituído em dado momento histórico.
Com o advento do estado democrático de direito, o direito passa a ter um perfil promovedor-transformador; por isso a defesa do direito individual deve dar passagem à defesa dos direitos sociais e coletivos.
Um dos precursores na defesa da dita inconstitucionalidade foi o jurista MARCELLUS POLASTRI LIMA[2], o qual, com a concordância de LÊNIO STRECK, disserta que a inconstitucionalidade deve ser entendida como a não-recepção, pela Carta Fundamental, dos dispositivos do Código de Processo Penal, que regulavam a figura do assistente particular.
Ainda, aos argumentos que defendem a figura do assistente, apenas limitando sua atuação como coadjuvante do Ministério Público, e não como parte, é de se contrapor que é exatamente aí que vem ferido de morte o princípio da proporcionalidade, que acolhe também o princípio da igualdade constitucional. Seriam dois órgãos acusando contra uma única parte-ré, o que quebra a igualdade.
Ademais, seria contraproducente e desnecessário admitir-se um órgão acusador auxiliar, quando o Ministério Público, dotado de estrutura e preparo ímpares, desempenha com maestria não só a função acusatória, mas, também, a de fiscal da lei.
Por derradeiro, o registro de que, pela nova hermenêutica constitucional que deve nortear todos os demais ramos do Direito, inclusive o Direito Penal e Processual Penal (a Constituição traz a base axiológica de todos os ramos do Direito), é obrigação do Juiz, e, mais ainda, do Juiz criminal, fazer uma jurisdição constitucional plena. Isso implica a obrigação da declaração de inconstitucionalidade de lei no caso concreto.
Usando da lição de MICHEL TEMER[3], tem-se que, neste caso, está-se a fazer o controle difuso da constitucionalidade, ou usando a via de exceção para controlar a constitucionalidade. O autor explica que tal forma de controle tem as seguintes peculiaridades: a) só é exercitável à vista de caso concreto, de litígio posto em juízo; b) o juiz singular poderá declarar a inconstitucionalidade de ato normativo ao solucionar o litígio entre as partes; c) não é declaração de inconstitucionalidade de lei em tese, mas de exigência imposta para a solução do caso concreto; d) a declaração, portanto, não é o objetivo principal da lide, mas incidente, conseqüência.
Não é outra a orientação de LÊNIO STRECK[4], o qual, distinguindo a noção de vigência e validade (a lei válida = norma é a regra positivada vigente que já passou pelo filtro hermenêutico constitucional), diz: de qualquer sorte, é importante registrar que, muito embora o controle difuso de constitucionalidade esteja presente entre nós desde a Constituição de 1891, passados, pois, tantos anos, ainda não se pode dizer – nem de longe – que os operadores jurídicos tenham se dado conta da importância desse instituto. A área de conhecimento que menos tem recepcionado o instituto é a do direito penal. Com efeito, é praticamente impossível encontrar incidentes de inconstitucionalidade relacionados à matéria penal. Uma das causas desse uso rarefeito advém da própria crise que atravessa a dogmática jurídica, que (ainda) confunde vigência com validade, dando a esses dois âmbitos o mesmo status jurídico.
A conclusão a se chegar é pela inadmissibilidade da figura do assistente da acusação no processo penal.
Em epítome, os fundamentos para rechaçar tal figura são, como postos, a inconstitucionalidade (não-recepção) dos arts. 268 a 273 do CPP, os quais perdem a sua validade pelo confronto com a norma constitucional do art. 129, inc. I, e também porque ofendem os princípios constitucionais da proporcionalidade e da igualdade.
Com base em tais argumentos, decido rejeitar a figura do assistente da acusação, não a admitindo neste Processo n.º 02100648600, onde figura como réu V. D. S. Indefiro, pois, a permanência da habilitação de assistência à acusação, devendo esta ser retirada dos autos.
Declaro, neste caso concreto, a inconstitucionalidade dos arts. 268 a 273 do CPP, declarando-os (inobstante vigentes) inválidos, pois não recepcionados pela Constituição Federal, em seu art. 129, inciso I, e pelos princípios da proporcionalidade e da igualdade.
Intimem-se.
Diligências legais.
Em 1º de novembro de 2002.
Jorge Anisio Teixeira Kurtz
Juiz de Direito
Notas:
[2] A Assistência ao Ministério Público e a Constituição de 1988, em Livro de Estudos Jurídicos, nº 03, IEJ
[3] TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional, 10ª ed., Malheiros, p. 43.
[4] STRECK, Lênio Luiz, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica, Livraria do Advogado, 2002, pp. 389/394.
2 comentários:
meu amigo, Dr. Jorge Anisio Teixeira Kurtz, o Advogado é figura essencial a Justiça, esteja ele do lado que estiver, na assistência da Acusação ou na Defesa do Réu...
DEsejo assinar a postagem anterior, dirigida ao colega Jorge Anisio, enquanto lhe transmito um fraterno abraço.
Leonardo Simonato
OAB/RS 59.660
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