A natureza objetiva da qualificadora do feminicídio e sua quesitação no
Tribunal do Júri
Amom Albernaz Pires[1]
Com a recente aprovação do Projeto
de Lei nº 8.305/2014, da Câmara dos Deputados, foi sancionada a Lei nº 13.104, de 09 de março de
2015, que alterou o art.121 do Código Penal para
prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio.
Assim, cumpre verificar como se dará a elaboração e a votação do questionário (CPP, art. 482 e
seguintes) a ser respondido pelos jurados no Tribunal do Júri, órgão
jurisdicional competente para o julgamento do feminicídio.
A redação do art. 121 do CP passou a vigorar
com as seguintes inovações a partir do dia 10 de março de 2015, in
verbis:
Homicídio simples
Art. 121...
Homicídio qualificado
§ 2º...
Feminicídio
VI – contra a mulher por razões
da condição de sexo feminino:
...
§ 2º-A Considera-se que há
razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:
I – violência doméstica e
familiar;
II – menosprezo ou discriminação
à condição de mulher.
...
Aumento de pena
...
§ 7º A pena do feminicídio é
aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado:
I – durante a gestação ou nos 3
(três) meses posteriores ao parto;
II – contra pessoa menor de 14
(catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência;
III – na presença de descendente
ou de ascendente da vítima.
Primeiramente, observa-se que a
redação originária do Senado Federal (PLS nº 292/2013) trazia no novel inciso VI do
§ 2º do art. 121 do CP a expressão
“por razões de gênero”, a qual foi substituída na Câmara dos Deputados pela
expressão equivalente “por razões da condição de sexo feminino”, o que em nada
muda a exegese do dispositivo, na medida em que ele faz referência ao homicídio
praticado contra a mulher (pessoa do sexo feminino) em decorrência de
construções socioculturais plasmadas no inconsciente coletivo, as quais
espelham relações desiguais e assimétricas de valor e poder atribuídas às
pessoas segundo o sexo.[2]
Com efeito, o feminicídio constitui
modalidade de violência de gênero ou, conforme preceitua o art. 5º, caput,
da Lei Maria da Penha e o
art. 1º da Convenção de Belém do Pará, violência “baseada no gênero”. Nessa
perspectiva, vale destacar as seguintes definições contidas no art. 3º, alíneas
c e d, da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à
Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica – Convenção de Istambul, in
verbis:
c) «Género» refere-se aos
papéis, aos comportamentos, às atividades e aos atributos socialmente
construídos que uma determinada sociedade considera serem adequados para
mulheres e homens;
d) «Violência de género
exercida contra as mulheres» abrange toda a violência dirigida contra a
mulher por ser mulher ou que afeta desproporcionalmente as mulheres;
Dentre as circunstâncias
qualificadoras do crime de homicídio, há as de caráter subjetivo ou pessoal
(incisos I, II e V), vinculadas à motivação e à pessoa do agente e não ao fato
por ele praticado, bem como as de caráter objetivo ou real (incisos III, IV e
VI), associadas à infração penal em si, tais como o meio, o modo de execução do
crime e o tipo de violência empregado.
A nova qualificadora do feminicídio
não constitui o móvel imediato da conduta, isto é, o agente pode ter agido por
causa de uma discussão banal com a vítima (motivo fútil) ou por causa da sua
possessividade e ciúme excessivo em relação à vítima ou em razão de seu
inconformismo com o término do relacionamento afetivo (motivo torpe), para
ficar só nesses dois exemplos corriqueiros na lida do Tribunal do Júri, dentre
muitos outros. Durante o interrogatório de um réu que tenha praticado um
feminicídio, jamais lhe será perguntado se ele cometeu o crime “por razões de
gênero” (ou “por razões da condição de sexo feminino”), mas qual o acontecimento,
atitude ou episódio do contexto fático-probatório do caso que fez eclodir ou o
levou ao ato de violência macabro, ocorrência essa que geralmente constitui
algum motivo fútil ou torpe na maioria das vezes, conforme exemplificado.
Por outro lado, assim como a
elementar objetiva do emprego de violência diferencia um crime de roubo de um
crime de furto, a qualificadora do feminicídio descreve hipótese fática
objetiva da presença (existência ou emprego) de violência praticada contra a
mulher por razões da condição de sexo feminino (isto é, por razões de gênero)
em duas hipóteses específicas elencadas no § 2º-A do art. 121 do CP: violência
doméstica e familiar contra a mulher (inciso I) e menosprezo ou discriminação à
condição de mulher (inciso II). Ou seja, caberá aos juízes naturais da causa
(os jurados, no caso do Tribunal do Júri) apenas verificar a situação objetiva
da presença ou não dessas duas hipóteses dos incisos I e IIdo § 2º-A do art. 121 do CP, como já ocorre
hoje com a verificação, pelo juiz togado, por ocasião da fixação da pena, da
incidência da circunstância agravante do art. 61, II, f, parte final, do CP, a qual prevê
exasperação da pena quando o agente tiver cometido o crime “com violência
contra a mulher na forma da lei específica”, ou melhor, na forma da Lei11.340/06, que nos seus
artigos 5º e 7º enumera
as hipóteses e formas de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Doravante, quando a qualificadora
do feminicídio incidir, restará prejudicada a incidência da agravante genérica
do art. 61, II, f, parte final, do CP, sob pena de bis
in idem vedado pelo art. 61, caput,
do CP. De outra parte,
a expressão “violência doméstica e familiar” contida no inciso I do § 2º-A deve
ser interpretada sistematicamente tal qual está positivada na Lei Maria da Penha, não só
pela necessidade de coerência, unidade e concordância prática do ordenamento
jurídico protetivo da mulher, como também porque o próprio Código Penal, no
art. 61, II, f, fez remissão à “lei específica” quando quis se referir à
violência praticada contra a mulher.
Portanto, se, de um lado, a
verificação da presença ou ausência das qualificadoras subjetivas do motivo
fútil ou torpe (ou ainda da qualificadora do inciso V) demandará dos jurados
avaliação valorativa acerca dos motivos inerentes ao contexto fático-probatório
que levaram o autor a agir como agiu, por outro lado, a nova qualificadora do
feminicídio tem natureza objetiva, pois descreve um tipo de violência
específico contra a mulher (em razão da condição de sexo feminino) e demandará
dos jurados mera avaliação objetiva da presença de uma das hipóteses legais de
violência doméstica e familiar (art. 121, §
2º-A, I, do CP, c/c art. 5º, I, II e III,
da Lei 11.340/06) ou ainda a
presença de menosprezo ou discriminação à condição de mulher (art. 121, §
2º-A, II, do CP).
Nesse sentido, note-se que a
hipótese do inciso II do § 2º-A ficou reservada aos casos em que autor e vítima
são pessoas desconhecidas e sem qualquer relação interpessoal, diferentemente da
hipótese do inciso I do § 2º-A, que cuida dos casos em que autor e vítima têm
ou mantiveram alguma relação de proximidade, conforme hipóteses do art. 5º, I, II e III,
da Lei 11.340/06, in verbis:
Art. 5º Para os efeitos desta
Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou
omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual
ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade
doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou
sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família,
compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram
aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima
de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida,
independentemente de coabitação.
Por conseguinte, é objetiva a
análise da presença do modelo de violência baseada no gênero (ou em razão da
condição do sexo feminino), positivada na Lei Maria da Penha e na
Convenção de Belém do Pará e agora incorporada pela Lei nº 13.104/2015 com a
expressão “violência doméstica e familiar”, já que a Lei Maria da Penha já
reputa como hipóteses desse tipo de violência aquelas transcritas acima (art.
5º, incisos I, II e III).
No que diz respeito à redação dos
quesitos a serem votados na sala especial pelos jurados nos casos de
feminicídio, não se pode olvidar que o parágrafo
único do art. 482 do CPP determina
que os quesitos sejam redigidos em proposições afirmativas, simples e
distintas, de modo que cada um deles possa ser respondido com suficiente
clareza e necessária precisão. Desse modo, o quesito da qualificadora do
feminicídio, assim como os das causas de aumento trazidas pelo novel §
7º do art. 121 do CP deverão ser
votados por último, após os quesitos da materialidade, autoria, absolvição e
eventual quesito de causa de diminuição de pena alegada pela defesa (CPP, art. 483).
Outrossim, a redação dos quesitos
deve ser simplificada ao máximo, de modo a ser compreendida facilmente por um
espectro amplo de jurados, de maneira que não há necessidade de se repetir a
expressão contida no VI do art. 121 (“contra a mulher por razões da condição de
sexo feminino”), já que o § 2º-A faz interpretação autêntica de referida
expressão na forma dos seus respetivos incisos I e II, por isso basta que o
conteúdo descritivo de desses incisos esteja contido na quesitação.
Assim, a título de ilustração,
teríamos os seguintes quesitos num questionário típico de caso de feminicídio
consumado:
1º Quesito (materialidade).
No dia tal, endereço tal, hora tal, nesta cidade, a vítima fulana sofreu
ferimentos de instrumento perfuro-cortante, conforme laudo de exame cadavérico
tal?
2º Quesito (autoria).
O acusado fulano foi o autor dos ferimentos descritos no quesito anterior?
3º Quesito (absolutório).
O jurado absolve o acusado?
4º Quesito (na
eventualidade de ser alegada causa de diminuição pela defesa nos debates). O
acusado cometeu o crime sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a
injusta provocação da vítima (descrever no que consistiu a provocação da
vítima)?
5º Quesito (na
eventualidade de ter sido admitida qualificadora subjetiva na pronúncia). O
acusado cometeu o crime mediante motivo torpe, consistente em sentimento de
posse e ciúme paranoico, ao não aceitar a vítima usar roupas curtas?
6º Quesito (na
eventualidade de ter sido admitida qualificadora objetiva na pronúncia). O
acusado cometeu o crime com meio cruel, pois desferiu muitas facadas na vítima,
infligindo a ela desnecessário e excessivo sofrimento?
7º Quesito (qualificadora
do feminicídio). Há quatro possiblidades de quesitação, a depender de qual das
hipóteses do § 2º-A incidirá no caso concreto:
7º.1. O crime
envolveu violência doméstica e familiar contra a mulher, pois o acusado
convivia com a vítima na mesma unidade doméstica (hipótese do art. 5º,I, da Lei 11.340/06)?
7º.2. O crime
envolveu violência doméstica e familiar contra a mulher, pois o acusado
pertencia à família da vítima, já que era irmão dela (especificar parentesco
natural ou por afinidade – hipótese do art. 5º, II, da Lei 11.340/06)?
7º.3. O crime
envolveu violência doméstica e familiar contra a mulher, pois o acusado já
tinha mantido relação íntima de afeto com a vítima (hipótese do art. 5º,III, da Lei 11.340/06
– especificar se namoro, união estável, casamento, noivado etc.)?
7º.4. O crime
envolveu menosprezo ou discriminação à condição de mulher, consistente em...
(especificar no que consistiu o menosprezo ou a discriminação)?
8º Quesito (causas
de aumento do feminicídio). Há sete possibilidades de quesitação, a depender de
qual das hipóteses do § 7º incide no caso concreto:
8º.1. O crime foi cometido
durante a gestação?
8º.2. O crime foi cometido nos
três meses posteriores ao parto?
8º.3. A vítima era menor de 14
anos?
8º.4. A vítima era maior de 60
anos?
8º.5. A vítima tinha
deficiência?
8º.6. O crime foi cometido na
presença de descendente da vítima (especificar qual)?
8º.7. O crime foi cometido na
presença de ascendente da vítima (especificar qual)?
Por fim, vale ressaltar que, na
hipótese de o homicídio privilegiado (CP, art. 121, §
1º) ser acolhido pelos jurados (4º quesito), restará prejudicada a votação
do quesito da qualificadora subjetiva eventualmente imputada na pronúncia
(motivo fútil ou torpe), porém a votação seguirá quanto às qualificadoras
objetivas (incisos III, IV e VI do § 2º do art. 121 do CP), inclusive
quanto à qualificadora do feminicídio, pois, conforme explicado linhas atrás,
tal qualificadora é perfeitamente compatível com a incidência do privilégio,
quando teríamos um homicídio privilegiado-qualificado. Entendimento diverso (ou
seja, entender que o acolhimento do privilégio é incompatível com a
qualificadora do feminicídio, ao fundamento de que esta teria natureza
subjetiva) conduziria ao disparate de se estar diante de um caso típico de
violência de gênero (ou, noutras palavras, caso típico de feminicídio) e de o
quesito do feminicídio sequer chegar a ser votado pelos jurados uma vez acatado
o privilégio, em total afronta ao escopo da Lei nº 13.104/2015.
[1] Promotor de Justiça no
MPDFT com atuação no Tribunal do Júri de Ceilândia/DF. Pós-graduado em Ciências
Penais pela FESMPDFT.
[2] Nessa linha era, mutatis
mutandis, a redação originária do art. 5º, caput, do
PL 4.559/2004, que resultou na edição da Lei Maria da Penha –
Lei 11.340/06, dispositivo que
conceituava relações de gênero.
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