A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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1 de março de 2012

Por um segundo grau agente


“Eu devia estar contente porque eu tenho um emprego, sou um dito cidadão respeitável e ganho quatro mil cruzeiros por mês (...) Eu que não me sento no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes, esperando a morte chegar....” Raul Seixas

A Constituição da República alçou o Ministério Público à condição similar a um quarto poder, conferindo-lhe a defesa da ordem jurídica e do regime democrático, o que implica fiscalizar os três poderes estatais e impulsioná-los a executar suas próprias funções, a fim de evitar o abuso de poder ou a inércia governamental. Considerando-o guardião da coletividade, determinou-lhe uma postura mais atuante, ao usar, como núcleo dos quatro primeiros incisos do art. 129, o verbo promover, postura que deve estar presente nas ações adotadas por todos os membros dessa instituição, aos quais foram atribuídos, entre outros instrumentos, o inquérito civil e a ação civil pública, que os transformaram em verdadeiros agentes políticos em defesa dos direitos sociais.

Por questões administrativas, os membros do Ministério Público se dividem em duas categorias: os Promotores de Justiça, que atuam junto aos juízes singulares, no primeiro grau, e os Procuradores de Justiça, que laboram nos processos julgados pelos Tribunais de Justiça. Estes, portanto, possuem as mesmas características daqueles, cabendo-lhes também a postura de agentes em defesa da coletividade. Isso, contudo, não tem acontecido. Embora os Procuradores de Justiça sejam, em tese, os mais preparados membros da instituição, permanecem, devido à legislação infraconstitucional, que não lhes ofereceu função executiva, atuando apenas como intervenientes em processos judiciais, fiscais da lei junto aos Tribunais, ou ingressando com ações somente por esporádica designação do Procurador-Geral de Justiça. Com isso, não se percebe, em suas funções, ainda que a contragosto deles próprios, sua principal característica delineada na Carta Magna: o agente promotor de ações.

A função de parecerista imposta aos mais cultos e experientes membros da Instituição, certamente, não atende mais aos interesses de uma sociedade cada vez mais politizada e consciente de seus direitos. Procuradores de Justiça deveriam estar comprometidos com a defesa de teses e políticas institucionais, com presença efetiva nos julgamentos das Câmaras ou Turmas, para apresentação de defesas orais, e interposição de recursos, notadamente para os Tribunais Superiores. Deveriam acompanhar e, inclusive, propor ações em casos de abrangência regional ou nacional, bem como assumir o controle de constitucionalidade de leis municipais e estaduais em face da Constituição Estadual. Merecem, ainda, estar coordenando Centros de Apoio e Núcleos, envolvidos no processo de regionalização de promotorias, atuando com mais intensidade nas questões coletivas, até mesmo na fase pré-processual, inclusive quanto aos crimes praticados por aqueles que detêm foros privilegiados. Por fim, deveriam atuar como articuladores junto às autoridades estaduais para resolução extraprocessual de questões de interesse coletivo. Isso tudo precisa ocorrer não apenas em homenagem a sua antiguidade, mas em atenção ao próprio perfil constitucional do Ministério Público e à valorização dos recursos públicos gastos com o segundo grau.

Importante rever a forma de atuação da segunda instância: dada a pouca relevância dos pareceres, deve ser editado ato pela Procuradoria-Geral de Justiça autorizando a mera reiteração do posicionamento de primeiro grau, quando o Procurador entendê-la suficiente, o que não trará prejuízo para a sociedade. Com isso, a experiência e o tempo dos Procuradores de Justiça seriam destinados às funções de execução pertencentes ao Chefe da Instituição, que as delegaria, passando este apenas a exercer as atividades administrativas, que, por si sós, superam a capacidade de uma única pessoa.

Urge melhorar a interlocução entre primeiro e segundo graus, especialmente nos processos de iniciativa ministerial, pois os tribunais superiores já vem reconhecendo a dispensabilidade de parecer pelos Procuradores de Justiça nestes casos por conta de a instituição ser a autora da ação. A exemplo, veja-se o acórdão RECURSO ESPECIAL Nº 554.906 - DF (2003⁄0120752-7), Relatora Ministra Eliana Calmon. Nessas situações, deveriam os Procuradores apresentar sustentação oral reforçando o quanto já exposto pelo Promotor de Justiça. As divergências de posicionamentos se resolveriam pela redistribuição do processo, nos casos particulares, para outro membro da Procuradoria com posição similar à do primeiro grau e, não havendo quem assim entendesse, pela defesa da tese divergente, vencedora no segundo, em último caso. Assim, já funciona em algumas Câmaras de Revisão do Ministério Público Federal.

Se o Ministério Público é autor no primeiro grau, continua sendo-o no segundo. Por isso, os Procuradores de Justiça não devem simplesmente elaborar "pareceres" (salvo se o MP figura também como interveniente no 1º grau), mas sim contra-razões de agravo de instrumento, aditar apelações para inserir um prequestionamento, fazer sustentação oral como parte. Há, em verdade, de buscar-se uma conciliação entre os princípios da unidade e da independência funcional, por meio de constante interlocução entre ambas as categorias para evitar o duelo de posições entre membros do Ministério Público atuantes em graus distintos, o que não só enfraquece a resposta institucional, por conta da contradição que municia a parte adversa, como desperdiça forças e energias relevantes.

Não se entenda que aqui está desprezando-se o valor dos membros em segunda instância; ao contrário, exatamente pela experiência e importância deles, busca-se modificar suas atribuições, para engrandecimento do Ministério Público e fortalecimento da resposta à sociedade. Tal mudança de mentalidade, aos poucos, já vem firmando-se entre alguns Procuradores de Justiça que anseiam por assumir o perfil marcadamente agente que a Constituição atribuiu a toda a instituição.

A instituição, como um todo, precisa assumir postura pró-ativa, permitindo atuação integrada e complementar entre membros de primeiro e segundo grau, com especial ênfase nas ações promovidas pelo Ministério Público. Metas e prioridades institucionais devem ser construídas de forma democrática, envolvendo servidores e membros de ambos os graus, de modo a mobilizar e engajar o comprometimento da classe na sua implementação. Acima de tudo, devem os membros do segundo grau estar mais articulados com os de primeiro grau e vice-versa, estabelecendo-se mecanismo que fortaleça a comunicação entre ambas as categorias para defesa das teses institucionais, em busca de uma melhor prestação do serviço ministerial à sociedade. O processo em que o Ministério Público é autor, não pertence ao Promotor nem ao Procurador, mas à instituição, que se constitui por membros que atuam em momentos distintos com um só objetivo: a defesa do interesse social.

Por Millen Castro, Promotor de Justiça na Bahia.

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