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18 de janeiro de 2012

Neurociência Forense


Neurociência Forense – um novo paradigma para a Psiquiatria Forense
Dr. Daniel Martins de Barros
Médico psiquiatra do Núcleo de Psiquiatria Forense (Nufor) do Departamento e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

No livro A estrutura das revoluções científicas, o físico e filósofo da ciência Thomas Kuhn propõe um modelo de desenvolvimento das ciências ao longo da história.

A ciência, qualquer que seja ela, é uma atividade desenvolvida de acordo com certos "paradigmas", que são "aquilo que os membros de uma comunidade partilham" e, por extensão, "uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma". Os paradigmas constituem, então, o modelo teórico a embasar as pesquisas, a delimitar as fronteiras, a julgar as soluções encontradas e até mesmo a validar as perguntas feitas. Conforme o conhecimento se acumula dentro da área do saber, contudo, o paradigma tende a ser levado a seus limites explicativos, até o ponto em que começam a surgir as "anomalias": fenômenos com os quais o modelo vigente não consegue lidar, abalando sua força teórica. Ainda assim, apesar do acúmulo de anomalias, os cientistas não questionam o paradigma, pois o método científico não pode prescindir de um modelo – mesmo que este apresente falhas. Nesse momento, surgem cientistas que identificam nas muitas anomalias uma "crise" e, estando dispostos a arriscar, passam a buscar um novo paradigma para a ciência, procurando alternativas às verdades inquestionáveis estabelecidas. Surge, então, um novo paradigma que, caso se mostre viável e conquiste um número suficiente de cientistas, poderá com o tempo prevalecer diante do antigo – ocorrendo, então, uma "mudança de paradigma".

Diante disso, acredito que a Psiquiatria Forense esteja passando por um momento de crise, dentro de uma perspectiva "kuhniana".   

Surgida ao mesmo tempo que a Psiquiatria (embora para alguns a tenha precedido, já que antes de haver médicos especialistas em transtornos mentais havia a necessidade jurídica de identificar os insanos), a Psiquiatria Forense encontrou seu auge no século XIX, trabalhando com os conceitos de entendimento e vontade, segundo a psicopatologia da época, e que permanecem praticamente intocados até hoje.

No entanto, com o boom das neurociências, trazendo um inédito conhecimento sobre o funcionamento do cérebro, reacenderam-se debates sobre temas de grande relevância para a Psiquiatria Forense – na medida em que dizem respeito à interação entre o psiquismo humano e a responsabilidade legal –, como as relações entre mente e corpo, genética e ambiente, livre-arbítrio e determinismo. Tais questões vêm sendo em grande medida ignoradas, justamente por não serem abarcadas pelo atual paradigma. Por exemplo: sabendo que o córtex frontal é fundamental para o controle de impulsos, tendemos a inocentar um idoso com demência frontoparietal que agrida seu enfermeiro; mas seria também inocente um marido que bate na esposa e que demonstra, com ressonância magnética, ter menor volume cortical na região frontal? Se ele alegar que não conseguia se controlar, qual peso deve ser dado à ressonância? E o que concluir diante de uma mulher que diz ter agredido o marido em razão das bruscas flutuações de humor que sofre por ter transtorno disfórico pré-menstrual? Se a Psiquiatria Clínica propõe esse diagnóstico e leva em conta a influência dos hormônios sobre o humor e deste sobre as ações, o que a Psiquiatria Forense deve dizer? Que a culpa não é dela, mas de seus hormônios? Isso tudo para não entrarmos na psicofarmacologia, farmacogenética, tratamentos biológicos, como a estimulação cerebral profunda, neuroimagem funcional – a lista é enorme e cresce a cada dia. O atual modelo, embasado unicamente sobre critérios psicopatológicos, tende a se ver limitado diante de tais casos. Com ele, a Psiquiatria Forense está despreparada para responder às questões levantadas e ficará alijada do debate se não souber se apropriar desse conhecimento crescente.

É chegado o momento, portanto, de propor um novo paradigma para a Psiquiatria Forense, que poderíamos chamar de Neurociência Forense. Um modelo no qual as relações entre a Psiquiatria e o Direito sejam compreendidas não apenas com o instrumental da psicopatologia clássica, mas também que a ele se somem neuroimagem, neurofisiologia, neurobiologia, e sobre o conjunto se empreenda um esforço reflexivo, analisando entendimento e vontade (ou seus déficits), como resultado de um todo integrado: mente e cérebro, corpo e alma, forma e função.

Se conseguir fugir do reducionismo, evitando a medicalização da sociedade e qualquer tipo de determinismo – quer biológico, psicológico, quer social – e souber trilhar o caminho inverso, ampliando o entendimento do homem sobre si mesmo, a Neurociência Forense será capaz de resgatar seu propósito maior: ser os olhos da justiça diante de uma realidade cada vez mais complexa e, por isso mesmo, mais fascinante.

Bibliografia sugerida

Barros DM. O que é psiquiatria forense. São Paulo: Brasiliense, no prelo.         
Foucault M. A história da loucura. São Paulo: Perspectiva, 2002.
Kuhn T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2003.           
Rigonatti SP, Barros DM. Psiquiatria forense. In: Louzã Neto MR, Elkis H, editores. Psiquiatria Básica. Porto Alegre: Artmed, 2007. p. 700-704.
Fonte: Revista de Psiquiatria Clínica; volume 35, número 5, páginas 205-206. 2008

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