A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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7 de dezembro de 2011

Embriaguez ao Volante


Embriaguez ao volante - o falacioso direito de não produzir prova contra si mesmo

Após dar causa a acidente automobilístico, o condutor culposo desce de seu veículo cambaleante. Instado a se submeter ao etilômetro, recusa-se. Na delegacia, perante a autoridade policial, sequer se cogita de lhe colher amostra de sangue para o exame de embriaguez. O direito de não produzir prova contra si ganhou ares de universalidade. Até um bêbado leigo se lembra de invocá-lo quando lhe convém. E a vida das vítimas? Os valores estão invertidos.

O direito de não produzir prova contra si mesmo é uma extrapolação da tradução da expressão nemo tenetur se detegere que, literalmente significa que ninguém é obrigado a se descobrir, cuja origem é impossível de se identificar, historicamente associado ao interrogatório do acusado.

Em nenhum lugar no texto da Constituição Federal está escrito que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. O que a Magna Carta prescreve é que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (artigo 5º, inciso II) e que o preso tem o direito de permanecer calado (artigo 5º, inciso LXIII).

O artigo 277, caput, do CTB sujeita o condutor suspeito de embriaguez a se submeter a testes de alcoolemia. O artigo 339 do Código de Processo Civil dispõe que ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade. Se existisse um direito constitucional de não produzir prova contra si, o artigo 2º-A, parágrafo único, da Lei nº 8.560/92, seria inconstitucional, pois ninguém poderia ser prejudicado em sua defesa no legítimo exercício de um direito constitucional.

Não se está a obrigar alguém forçadamente a se submeter a exame contra a sua vontade. Nada obsta, porém, a que a lei preveja consequências para a recusa. Obviamente que, no processo penal, não se pode presumir a culpa. Mas se impõe convir que a pena prevista para o crime de desobediência torna vantajosa a recusa, e, por outra volta, insistir no "6 decigramas" como elementares do crime definido no artigo 306 do CTB significa persistir em leda impunidade enquanto vitorioso nos tribunais o falacioso direito.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1948, não mencionou expressamente o princípio nemo tenetur se detegere, que, por outro lado, foi reconhecido na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, aprovada na Conferência de São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, nos seguintes termos: "Art. 8º. Garantias judiciais (.) g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada".

A extensão do nemo tenetur se detegere na jurisprudência norte-americana é limitada ao privilégio de não depor contra si; não abarca qualquer direito de não fornecer a fonte de prova para a realização da perícia.

O leading case sobre a aplicabilidade do privilégio contra a auto-incriminação no campo da prova científica nos Estados Unidos é o caso Schmerber v. California. Enquanto estava internado num hospital em tratamento dos ferimentos sofridos num acidente automobilístico, Schmerber foi preso por dirigir embriagado. Por determinação da autoridade policial que presidia o inquérito policial, um perito obteve uma amostra de sangue de Schmerber.Embora a defesa tivesse objetado tal procedimento, o sangue foi extraído e submetido a exame de dosagem alcoólica. Perante a Suprema Corte, Schmerber alegou que a extração de seu sangue havia violado o privilégio contra a autoincriminação. Ao rejeitar este argumento, a Corte sustentou que o privilégio se aplicava somente ao interrogatório, e não à perícia ou prova real.

Subsequentes julgados da Suprema Corte reafirmaram a distinção, reconhecida em Schmerber, entre o privilégio contra a auto-incriminação no interrogatório (prova oral) e na prova real.

Na esteira da jurisprudência que se formou a partir de Schmerber, a prova física ou real obtida por meio da maioria das técnicas forenses escapa a discussão sobre a sua ilicitude (por ofensa à V Emenda), salvo quando se trata do interrogatório do acusado. O entendimento esposado no caso Schmerber estendeu-se à coleta de material para as perícias grafotécnica, de identificação dactiloscópica, de comparação de voz, urina, de embriaguez, residuográfica, cabelo, entre outras. Casos mais recentes excluem a aplicação do princípio na obtenção de amostras para exame de DNA.

A problemática da admissibilidade de intervenções corporais no acusado foi disciplinada pelo § 81 da lei processual penal alemã, que prevê que as extrações de sangue e outras ingerências corporais são admitidas para a constatação de fatos importantes para o processo, mesmo sem o consentimento do acusado, embora prescreva que as mesmas serão sempre precedidas por médico, desde que não exista nenhum perito à saúde.

Praticamente idêntica é a redação do Código de Processo Penal Tipo para Ibero América (art. 38).

Frondizi e Daudet, discorrendo sobre a prova pericial, concluíram que el derecho del individuo a no ser forzado a declarar ni a producir prueba en su contra [...] ampara a una persona como sujeto de la prueba, esto es, como quien, con su relato, incorpora al proceso un conocimiento, cierto o probable, sobre un objeto de prueba. No la ampara, en cambio, cuando es objeto investigado, como cuando, por ejemplo, se extrae uma mustra de sangre, o de piel, o se lo somete a un reconocimiento por outra persona, actos para los cuales no es necesario su consentimiento.

A doutrina espanhola adota a mesma posição: "La persona de la cual se obtiene una muestra para su posterior analisis no está llevando a cabo una declaración contraria a la presunción de inocencia, pues no está autoincriminándose, ya que en ningúm momento se le obliga a que reconozca determinados hechos. Además, el resultado de la prueba tanto puede conducir a la condena como a la absolución del sujeto destinatário de tal actuación, siendo por ello, por esa ´naturaleza neutra`, una simples perícia de resultado incerto. Por consiguiente, parece estar claro que el principio constitucional ´nemo tenetur se detegere` no queda vulnerado con la práctica de estas pruebas de ADN, a través de las cuales se intenta esclarecer lo sucedido así como identificar el autor de los hechos."

Em suma, o espectro de tutela do direito à prova no campo pericial adquire amplitude maior, pois não apenas legitima a faculdade que assiste à parte e ao juiz de produzir a prova, mas também de exigir da parte contrária que forneça a fonte de prova necessária à sua realização, sob pena de ofensa à administração da justiça, sem que se possa invocar, em defesa, um suposto direito constitucional de não produzir prova contra si mesmo.

Por Luís Fernando de Moares Manzano, Promotor de Justiça (MP/SP) e Mestre em Direito Penal pela USP.

Fonte: Carta Forense

Um comentário:

Vellker disse...

Enquanto a vítima agoniza na frente do motorista alcóolatra, este em seu estado de embriaguez com risos e deboches se recusa a fazer o exame que comprovaria sua culpa. Argumenta que ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo e pouco depois, refeito e treinado por um advogado mais cúmplice do crime do que defensor, escapa de qualquer punição com alegações variadas e mentiras bem arquitetadas.

No entanto se tiver engravidado uma prostituta na boate onde bebeu e de lá saiu dirigindo até matar uma pessoa, a mesma estrutura judiciária que reconhece seu direito de fugir da responsabilidade do atropelamento, não reconhece sua negativa ao ser confrontado com o pedido de pensão da mulher que engravidou. Aliás, se ele se recusar a fazer o exame de DNA, com o mesmo argumento de que não é obrigado a produzir prova contra ele mesmo, terá a paternidade imputada contra ele porque a justiça presume que ele é o pai exatamente por se recusar a fazer esse exame.

Agora quando atropela e mata um cidadão e recusa-se a fazer o teste de embriaguez, aí então essa mesma estrutura judiciária aceita passivamente esse crime. Essa é a coerência do estado de "garantias democráticas" que temos aqui.

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