A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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6 de setembro de 2011

PEC 75: Um atentado à independência do Ministério Público


A pretexto de viabilizar a punição mais ágil e desburocratizada dos membros do Ministério Público (MP) que incorrem na prática de infrações penais e disciplinares, excessos e abusos de autoridade no exercício de suas funções, começa a tramitar pelo Senado a Proposta de Emenda à Constituição nº 75/2011, de autoria do senador Humberto Costa (PT/PE), que prevê, entre outras penalidades, a aplicação da pena de demissão dos promotores de Justiça por decisão administrativa direta do Conselho Nacional do MP (CNMP), órgão de controle externo criado pela Emenda Constitucional nº 45/2004 e composto por cidadãos indicados pelo Senado, pela Câmara dos Deputados, advogados indicados pela OAB, juízes indicados pelo STF e pelo STJ, além de membros do MP da União e dos estados.

Atualmente, a decretação da perda do cargo de membro do MP só pode ocorrer após sentença judicial transitada em julgado, a denominada garantia constitucional da vitaliciedade (art. 128, § 5º, I, "a" - CF), igualmente assegurada aos juízes (art. 95, I - CF). Historicamente, a garantia da vitaliciedade teve por objetivo proteger a independência do MP e do Poder Judiciário no exercício de suas funções constitucionais em defesa dos direitos da sociedade, evitando-se que o promotor ou o juiz de direito, responsáveis pela preservação da supremacia da Constituição e das Leis, venham a ser alvo de retaliações políticas arbitrárias que possam resultar em suas demissões sumárias do serviço público.

A PEC 75/2011 é apresentada aos olhos da sociedade, dessa forma, com aparente intuito "moralizador" e "anticorporativista", despertando a impressão inicial de por fim a um suposto privilégio odioso assegurado aos promotores. O falacioso fundamento moralizador da proposta não resiste, entretanto, a uma análise mais criteriosa acerca dos seus verdadeiros objetivos.

De fato, coincidentemente ou não, a PEC 75 foi publicada no Diário do Senado do dia 11/8/2011, poucos dias após a deflagração da Operação Voucher, que resultou na prisão de 37 pessoas no interior do Ministério do Turismo, acusadas de desvio de dinheiro público da ordem de R$ 3 milhões. Na ocasião, foram presos integrantes do alto escalão do governo federal. Em rede nacional, o líder do PT na Câmara dos Deputados, deputado Cândido Vacarezza, tratou logo de afirmar perante os jornalistas que as prisões decorriam de abuso de autoridade da Polícia Federal e do Ministério Público. Afinal, mais apropriado que comentar a dimensão do estrago gerado ao país pelos atos de corrupção, era justificar, como já se tornou corriqueiro em situações análogas, que havia abuso na ação daqueles órgãos de fiscalização e controle.

Não é preciso muito esforço intelectual para se perceber, a partir do exemplo acima e de tantos outros que poderiam ser lembrados, que a PEC 75, apresentada sob o rótulo da "moralização" por desburocratizar o processo de demissão dos promotores de Justiça acusados de desvios de conduta, finda por ocultar finalidades não explicitamente declaradas, em especial a de propiciar, com o passar dos anos, a demissão administrativa sumária de membros do Ministério Público que vierem a se dedicar, com responsabilidade e afinco, às investigações e denúncias dos grandes desmandos de corrupção que assolam o país, de forma a expor a imagem de personagens influentes da República perante a opinião pública.

E é justamente nesse contexto não abertamente declarado, posto que politicamente incorreto, que resulta claro o propósito principal da PEC 75: o de mais uma vez intimidar o MP, levando a sociedade a perder um dos seus mais importantes mecanismos de controle da corrupção, representado pela independência na atuação dos promotores, que passarão, diante do risco iminente de demissão de seus cargos por decisão direta de um órgão administrativo de composição mista, não necessariamente técnica (CNMP), a denunciar apenas ladrões de galinha, assaltantes à mão armada, estupradores e homicidas, e não mais os assaltantes e estupradores dos cofres públicos. Eis aí o grande perigo oculto na PEC 75: ela seguramente definhará o espírito combativo do membro do MP para dar lugar ao surgimento de promotores covardes e receosos de suas ações, em manifesto prejuízo ao interesse da sociedade por um órgão de investigação e denúncia verdadeiramente independente.

Não se ignora que o CNMP, instituído pela Emenda nº 45/2004, tem contribuído significativamente para o controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público, assim como para o efetivo cumprimento dos deveres funcionais de seus integrantes. Daí a se ampliar os seus já numerosos poderes para se permitir a aplicação da pena de demissão administrativa aos promotores vai uma enorme diferença. Isso porque nada impedirá, na esteira de argumentos já defendidos por alguns senadores durante a recente sabatina de recondução do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, futuras tentativas de alteração da própria composição atual do CNMP, de sorte a ampliar o número de conselheiros indicados politicamente pelo Senado e pela Câmara dos Deputados. Assim, primeiro se permite a demissão direta pelo CNMP para, em momento posterior, alterar-se a composição desse conselho, que poderá passar a ter novos integrantes indicados diretamente pelo Senado e pela Câmara dos Deputados, propiciando a futura tomada de decisões demissionárias não necessariamente técnicas, mas pautadas pelo critério político, o que nos leva, naturalmente, à seguinte reflexão: doravante, terá o promotor que "agradar" os senadores e deputados em sua atuação para não correr o risco de ser demitido?

É evidente, pois, que a alteração constitucional proposta se apresenta como uma cortina de fumaça lançada sobre os olhos da sociedade brasileira: ela possibilitará não só a demissão de promotores ímprobos, como também a demissão política sumária de membros do MP que, no exercício responsável de suas atribuições legais em defesa da sociedade, estiverem "incomodando" os governantes e políticos inescrupulosos e corruptos. Nada impedirá, nas mesmas condições, a extensão da desastrosa demissão administrativa direta para os juízes, a ser aplicada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o que certamente afetará a independência jurisdicional, um dos alicerces de qualquer democracia civilizada.

Tornar os membros do Ministério Público e, em perspectiva, os juízes, vulneráveis, suprimindo-lhes a vitaliciedade, é derrogar, indiretamente, o direito dos cidadãos e das comunidades a um julgamento justo (fair trial). Demitir sumariamente promotores e juízes por incomodarem os poderes econômico e político comprometerá a promoção da justiça e a prestação jurisdicional realmente justa e efetiva.

Resta saber se a sociedade brasileira compactuará com o enfraquecimento das garantias de independência do Ministério Público rumo à construção de um novo modelo de instituição permanentemente intimidada e ameaçada por propostas legislativas tendentes a resgatar a já superada ideia da mordaça. Em jogo, uma vez mais, a ainda frágil democracia brasileira e a capacidade de irresignação da opinião pública diante de PEC manifestamente atentatória aos ideais de transparência, moralidade e independência dos órgãos de controle da administração pública.

Por LUCIANO COELHO ÁVILA, Promotor de Justiça no Distrito Federal e professor de Direito Constitucional.
Fonte: Jornal Correio Braziliense de 05/09/2011.


Clique aqui e leia Nota Técnica expedida pela CONAMP sobre essa PEC.


2 comentários:

Alexandre Oliveira disse...

A população desconhece o que significa um promotor forte, tal como um Advogado forte. Violar as prerrogativas de um Promotor ou Advogado é violar as prerrogativas da população, mas o povo pergunta: Como assim? A verdade é que se tem que criar um orgão para o controle do congresso.

Vellker disse...

O promotor Luciano Coelho Ávila se mostra tão preocupado com a possibilidade de que os promotores venham a ter uma punição rápida no caso de serem acusados de abuso de autoridade, excessos, infrações disciplinares e pior de tudo, penais, que depois de lermos seu texto ficamos nos perguntando porque o preocupa tanto a possibilidade de uma punição rápida, praticamente imediata, de um membro do Ministério Público que venha a incorrer em todas as infrações que ele elencou, sem contar a pior de todas, a infração penal.

Como é que se pode defender que um magistrado encarregado justamente de acusar e punir quem venha a praticar infrações penais possa estar acima de acusações e punições se vier a cometer tais infrações?

Como dizia um teológo: o guarda vigia a todos, mas quem vigia o guarda? Magistrados idealistas e responsáveis se adequariam plenamente a tal idéia. Se castigam, põem-se à disposição também de serem castigados se incorrerem em erro.

E por qual motivo não deveria existir uma legislação assim? Depois de anos vendo os males causados à nação exatamente pelas leis atuais que tornam praticamente impossível a punição de um magistrado que incorra em todas essas infrações, aí sim a sociedade aceitaria de bom grado tal emenda à constituição.

Se a emenda previsse o afastamento e punição de algum magistrado pela simples decisão arbitrária de algum superior seu, realmente as preocupações do promotor fariam sentido.

Quanto a dizer que está em jogo a ainda frágil democracia brasileira, o promotor deveria acordar desse estado onírico. Não existe democracia no Brasil. Existem apenas calçadas jurídicas onde é permitido ao povo brasileiro caminhar olhando para a entrada dos grandes e luxuosos clubes políticos e jurídicos, onde se desenrola uma riquíssima festa para poucos, às custas do trabalho desse mesmo povo desvalido e excluído.

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O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)