A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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7 de abril de 2011

"SÃO SEUS OLHOS"



(Prefácio para “A Cor da Pele”, de Almiro Sena)

Por Edilson Mougenot Bonfim

A justiça, como Deus, ouvi certa feita, cabe mais na sensação, que na idéia. A injustiça também. Por isso, jamais faltarão nos debates dos grandes questionamentos, argumentos afirmativos e refutadores, lado a lado, na balança idealmente equânime da filosofia, para provar ou infirmar algo, deixando ao menos uns quantos, em dúvida ou certos da incerteza. Assim se dá com os temas fortes, questões que envolvam vida e morte, ideologias políticas e religião, fé e ciência. É bifronte e bicéfala, a senhora dos argumentos. Também assim a questão do racismo, para uns quantos, se o debate ficar apenas no plano das idéias. Prova-se, ou pensa-se provar, invariavelmente, ao sabor da retórica que se abrace, que ele existe, em menor ou maior grau, ou que não existe, em grau nenhum. Questão de observação, constatação, julgamento e validade de nosso juízo. Como prova e verdade não são sinônimos, podemos ter algo verídico, mas não provado, como uma mentira verossímil, com aparência e casca de verdade, mas, mentira, quand même. Falsa em sua medula. Pode-se, a rigor, provar até o que não houve, eis que a prova, de “per si”, nada nos diz objetivamente, até que nos convença, daí passe a valer subjetivamente. Eis por que a verdade está no fato e a certeza na cabeça do juiz. Podemos, pois, estar certos –mediante prova, ou, por pura intuição- de algo incorreto, afirmando verdadeiro, o falso, da mesma forma que a ausência de prova, por si só, não desconstitui uma ocorrência. Com os paradoxos que tão bem manejava Oscar Wilde, e a fina ironia que lhe era peculiar, diga-se, “quanto a acreditar nas coisas, posso acreditar em qualquer uma delas, com a condição que se trate de algo inacreditável”. Cedamos-lhe, ainda, o verbo: “o homem pode acreditar no impossível, mas não pode acreditar no improvável”.

Assim o racismo e a tinta de sangue rubro-negro com que se escreveu a história. Abrem-se compêndios de gente de escol, e ali se vê provar, quantas vezes, com argumentos falsamente sofisticados, a quadratura do círculo ou o estado gasoso da água líquida, até um ponto que, empolgados pelo argumento de autoridade, ou até pela lógica da argumentação dali advinda –por que não?!- ficamos convencidos que é o mar que corre para o rio e que o sol é que gira em torno da terra.

Sabemos que o crime não se opera necessariamente pela lógica, por isso, em criminalística a exceção tem tanto valor quanto a regra. Já na física, Einsten, provou –ou convenceu!- que não necessariamente o caminho mais curto entre dois pontos seja uma linha reta. É possível que esteja certo. Faltando-me formação e conhecimento para tanto, creio, embora não esteja certo, assim duvido. Se nas ciências exatas, portanto, já existem curvas no caminho, restam ainda menos exatas as ciências, ditas sociais, porque pertencentes ao mundo cultural, dos valores, dependentes da observação do historiador ou do sociólogo. Questão de visão e da posição do observador, sobretudo.

* * *

A questão do racismo é assim. Por vezes, se escuta uma argumentação tão rica buscando negá-lo no Brasil, que o espírito desavisado, replica como aquele réu suíço, que tendo matado a mulher, depois de ouvir tão bela defesa de seu advogado, vira-se para ele e diz: “Doutor, parabéns! Até ouvir o senhor falar eu tinha certeza que era o culpado. Agora, até eu estou em dúvida!”. Ou nesta outra imagem, evocada por Enrico Ferri, a respeito de um jovem, que pretendendo livrar-se do serviço militar sob a escusa de deficiência visual, solta esta pérola: “Senhor capitão, o senhor está vendo aquela mosca na parede?”, para concluir, “Eu não estou!” .

Portanto, deixa-se iludir, quem tem espírito propenso à ilusão ou amante do ilusionismo, queira ser iludido; deixa-se enganar, o apoucado de inteligência ou que tenha gosto pelo engodo, negando-se o que não pode ser negado, aduzindo não ver a mosca que vê ou o pássaro que voa. Não senti-lo, testemunhando o racismo, é ausentar-se desse mundo chamado Brasil ou daqui evadir-se, fisicamente, ou, exilar-se, sensorialmente. A idéia, portanto, neste prefácio, admita-se, não se questiona, por uma razão: porque é fato, e de tal fato, a obra dele, superiormente se ocupará, sem que o prefaciante tenha que validar juízos, apor comentários ou pretender aclamações. A premissa -esta nota introdutória que se faz como ante-sala e com a permissão da razão- pois, é a sensação. E esta, a sensação do racismo, quem haverá de negar?

* * *

Os serviços de metereologia, aliás, costumam, mensurar dois tipos de temperatura. A que chamam de real, e que não sei exatamente o que venha a ser (talvez por interessar às máquinas, aparelhos, coisas, objetos, em vez de pessoas), e a sensação térmica, ou seja, a que experimento, própria dos humanos, a que digo sentir como temperatura identificada pelo termômetro natural de meu corpo. Frio de cinco graus positivos, sensação térmica de cinco negativos. Não há discurso capaz de convencer a um homem que sente frio, da temperatura positiva, ou em escala ascendente. O que sinto são os “cinco negativos” que digo sentir. Máquinas não sentem. Homens sentem. Eis aí uma boa distinção. Protege-se, o homem, pois, pelo que sente –e o que sente, existe, “sinto, logo existo!”, atualizando Descartes- e não pelo que se diz maquinalmente haver, mostrando por vezes de forma minorada, “racional”, desdizendo a experimentação sensorial. Daí se concluir que também existe uma base fática para essa sensação (física), a habitar um entre-mundo real/sensorial, como categoria filosófica distinta das tradicionais, que não sendo exatamente o que tocamos, pode ser o que sentimos e não sendo surreal, virtual, ficcional ou irreal, não é, tampouco um sexto sentido. Apenas, um sentido, nada mais. Ainda inominado, talvez captado pela epiderme. Assim, não é possível debitar-se a um mito criador, a sensação de racismo que se experimenta, aliás, de forma bem mais eloqüente do que possa dizer a régua termo-política ou vernacular, parametrizada pelo falar acadêmico. Explique, assim, um schoolar, com quinze quilos de livros e seus vinte títulos acadêmicos - evidentemente, com enorme quociente de “inteligência”- para um garotinho-standard- negro-nacional, que não existe racismo no Brasil. Diga a ele e a sua gente, recitando refrão nacional, que no Brasil não existe preconceito de cor, “somente financeiro” –como se os preconceitos fossem excludentes, e não cumulativos-, em manobra diversionista, já que dinheiro se pode ganhar, mas a pele não se pode trocar. Se o sábio de salão argumentar bem, é certo, pode até convencer a criança, mas não será o que esta sente.

Se o medo é uma ficção do espírito ou uma fabulação da alma, o racismo definitivamente não o é, encontrando bases fáticas, alicerçadas em séculos de preconceito, se não detectáveis pelas luzes da razão, ao menos sensíveis pelo palato do espírito.

 * * *

E se falo de espírito, tenho obrigatoriamente que falar de Vieira, o maior orador sacro que andou por estas terras. É que não passou despercebido ao autor desta bela e bem escrita obra, sublinhar o “paradoxo do Padre Vieira”, onde ao lermos alguns de seus sermões, tanto o reconhecemos, como o desconhecemos. Como pode, um tão profícuo orador, cujo talento, só ao Divino se atribui, ao mesmo tempo ser tão chão, na exaltação da miséria humana dos escravos, como se a escravidão fosse uma benção dos céus e a condição de escravo uma vocação bendita para o excelso?

O incomparável pregador contra a escravidão dos índios, aquele que teve contra si o Tribunal da Inquisição por postular tolerância religiosa e racial para os cristãos novos, não somente não protestou contra a escravidão dos negros, como deu-se a justificar, com um futuro e incerto prêmio nos céus, a purificação do corpo pelo sofrimento na terra? Sim, melhor vê-lo como o artesão máximo da palavra, gênio estilístico do verbo e da verve, do que seguidor ou proponente de alguma ideologia. Valho-me, do que a ele endereçou, George Le Gentil, o francês estudioso da pátria lusa, ao considerá-lo “mais interessante do que original”.

Daí se compreender, por vezes, outro gênio, o mulato sergipano Tobias Barreto, poucos séculos depois, a porfiar com o homo religiosus, inconformado em sua dor pelas iniqüidades que via no mundo, fazendo-o em forma de versos, como em seu poema “Escravidão” (in Dias e Noites):

Se Deus é quem deixa o mundo

Sob o peso que o oprime.

Se ele consente esse crime.

Que se chama escravidão

Para fazer homens livres,

Para arrancá-los do abismo

Existe um patriotismo

Maior que a religião.


* * *

O racismo, a discriminação racial, o preconceito de cor, está para os tempos modernos na temática de afronta aos direitos fundamentais, na proporção do que o cativeiro esteve para a sociedade escravocrata em sua época. Cada era tem seu elogio e sua mancha distintiva. Cada centúria o seu opróbrio. Cada tempo tem seu crime, como cada coração o seu amor. Mas, se “todas as épocas são iguais perante Deus”, como sentenciou Leopold Von Ranke, quem erra mais, de quem é maior o “pecado”? Do homem do medievo ou dos primórdios da modernidade, que compunha a sociedade de então, e que não tinha ainda conhecido ou internalizado as luzes da razão, dando-se a cruel escravagismo, ou do homem moderno, do atual racismo, depois de séculos passados da razão iluminista, diversas constituições e solenes proclamações dos direitos do homem e do cidadão?

* * *

Que belo diálogo, retrata Saramago (O Evangelho segundo Jesus Cristo), de Jesus com sua amada Maria Madalena: “Dias passados, Jesus foi juntar-se aos discípulos, e Maria de Magdala foi com ele, Olharei a tua sombra se não quiseres que olhe a ti, disse-lhe, e ele respondeu, Quero estar onde a minha sombra estiver, se lá é que estiverem os teus olhos” (p. 431).

Sim, a criatura espelhada no Criador, já sabe: o exercício do crescimento humano passará obrigatoriamente pelo sentimento do amor. Não há espaço ao progresso sem obediência a tolerância, sem respeito, vértices singelos do amor, colunas da dignidade. O desafio é através de um espaço argumentativo denunciar o passado, advertir o presente e preparar o futuro, de modo que esclareça nossa história, usos e costumes, melhorando o porvir e restabelecendo a verdade. O ponto ótimo a se encontrar, a um só tempo, é conquanto se digam as verdades, honrando o homem com esclarecimentos, não se incite mais desamor, sobre aquele já havido, gerando sentimento vindicativo e contraproducente, em perpétuo acerto de contas. Nisto o autor também dá mostras de grandeza. Na balança da história, jamais, ao menos respeitado os sujeitos desta, se fará inteira justiça a alguém, seja pela impossibilidade semântico-filosófica de aprisionamento e revelação do termo –que é exatamente justiça?- seja porque, a balança de ourives, com que se sopesaria o ouro e a pedra grosseira, jamais encontraria o devedor a pagar, ou o credor, para cobrá-lo, eis que a história, com seu espelho retroativo, não julga jamais o presente, mas o que se foi e os que se foram. E a estes, já nesta terra não haverá julgamento “justo”, por a ela já não pertencerem. No tribunal dos tempos, contudo, dúvida não há, que nações e raças escravizaram, política, social e racialmente, que houveram deserdados da sorte e abandonados do destino, como houveram conformistas e manipulados, senão em exata proporção, ao menos naquela medida em que, postos todos na balança, o produto é um amálgama, a quem, com justeza, já não se pode individualmente julgar.

* * *

Separemos, pois, os extremos e os conceitos. A individualização da pena, a pena proporcional a culpa, elementos que remontam como diploma de aspiração humanitária e política, de matriz internacional e conteúdo simbólico, ao menos desde o Bill of Rights, a Declaração de Independência dos EUA e a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, pode sofrer uma advertência, um ajuste ou um reparo: individualmente consideradas, há provas suficientes dos crimes de alguns, por ação; há provas suficientes da omissão de outros, mais ou menos capituláveis à luz da crimino-penologia; há ainda a figura dos “companheiros de viagem”, seja dito, que contaminavam-se com a idéia –fruto dos tempos- e não sabiam ou não podiam fazer melhor reflexão. Há, ainda, aqueles que assistiam, protestavam e lutavam contra o “status quo” de opressão fratricida, que rebelaram-se e sucumbiram, tornando-se heróis. Mas há também os que se omitiram, silenciaram e jamais colocaram um grão de areia a mais, nas trincheiras da resistência ao racismo, à discriminação racial. Este amálgama de gente e de fatos, a ser justamente destrinchado, revelaria em última instância a cepa da humanidade inteira, em suas infinitas variações, a “porção divina” de ouro-amor e a porção funesta do açoite-e- ódio, com que se produziram humanos.

* * *

O Tribunal da História, se não tem juízes a um só tempo –com circunstâncias de modo e lugar respeitados- capazes da prolação de um veredictum escorreito, não menos verdade, jamais se constituirá superiormente se não se mantiver acesa a chispa inicial de uma denúncia, buscando advertir, desvelando o substrato íntimo da verdade objetiva, sem o que jamais haverá consciência ou vontade de mudar. E já não há dúvida. Se alguém bateu, é porque alguém apanhou, já que inexiste o crime sem o pressuposto do “outro”, de outrem, em homenagem ao princípio da transcedência ou da alteridade. Manifestação antônima do amor, mas, como este, também se perfaz necessariamente a dois, precisando de dois para sua completude.

Por isso diz o autor:

“O discurso da negação do preconceito e da discriminação racial no Brasil, conforme anteriormente destacado, contribui para reforçar sua existência, ao ignorar as pesquisas, estatísticas, dados, gráficos, trabalhos empíricos, casos observados, enfim, todos os instrumentos licitamente possíveis de aferição da realidade, que comprovam as brutais injustiças produzidas pelo racismo no país. Além disto, impossibilita sua desconstrução ideológica entre o grupo discriminador e facilita a sua reprodução no próprio grupo discriminado” (fls.)

* * *

É que o autor preferiu, ao registrar sua obra, não virá-la, como fazem alguns casacos hermenêuticos contemporâneos, deixando no título –A Cor da Pele- como que a superfície mesmo da pele exposta, para dentro do trabalho, então, desvendar seu conteúdo, revelando o “De profundis” do tema. É que a pele, o maior órgão do corpo humano, não reproduz a alma. E da alma mesmo, não sabemos sequer a cor, ou mesmo se a tem, já que apenas poetizada ao sabor dos tempos, quando se quis vê-la no matiz cultural, ou sob influxo religioso, que a deixava alva ou translúcida, para melhor parecer com a luz, seu porto e destino. A alma, como a nação, alma da pátria, até onde sabe a ciência, não tem cor, não pode ser fotografada, é sim uma idéia, ou uma energia, mas ainda é mais uma sensação.

* * *

“Um livro autêntico”, afirma Jean Guitton, “está escrito em virtude de uma necessidade”, para completar que “uma leitura autêntica é a que se faz em estado de fome e de desejo”. Pois bem. O autor escreveu por uma necessidade inelutável de observador privilegiado, como Promotor de Justiça, idealista, valente, intimorato, com atribuição específica no combate ao racismo no Estado da Bahia, atuando em nome do Ministério Público. Seu mérito? Como Paul Cézanne, o príncipe dos pintores impressionistas, ao sabor do talento de Guitton: “lhe ensinaram apenas a utilizar o lenço, a cor e os pincéis, e imagino que foi suficiente uma hora. O mais se lhe deu ele a si mesmo frente a natureza da Provence, que foi o seu único mestre”. ALMIRO SENA SOARES FILHO cursou seu mestrado, e dali extraiu o lenço e a técnica no manejo do pincel. E as cores? A infinita aquarela de cores, colheu-a ali mesmo em sua Salvador, fazendo desta sua Provence, para reafirmar que os matizes, em qualquer um de seus tons, são belos e impressionantes quadros da natureza, quando, como ele, se tem a sensibilidade do poeta das tintas, para enxergar um mundo para além do monocromático. Aliás, pois, naquele torrão onde a pátria se inaugura, sentiu em seu trabalho, mais de um século depois, verberar o estro triste da lírica de Castro Alves.

* * *

O notável Otto Maria Carpeaux, em artigo publicado em 1967, lembra que o historiador literário de “Shadow and Act”, Ralph Ellison, é negro, e seu premiado romance “Invisible Man”, aparenta ser autobiográfico. Nele uma interessante alegoria literária, revela a questão do racismo na realidade da democracia americana. Narrando na primeira pessoa do singular, aduz que um jovem negro, com uma vida difícil, muda-se do ghetto do Sul para o ghetto do Harlem, experimentando toda a sorte de provações, brigas de rua, humilhações, sofrimento, enfim. No centro do enredo, algo fantástico acontece: repentinamente o jovem negro percebe que os outros não o vêem; ele se tornou invisível, invisible man. Escreve: “Esse milagre como de contos de fadas ou de science-fiction tem profunda significação realista: pois todos os sofrimentos do negro são efeitos do fato de que os outros vêem, de que ele é visível e exteriormente reconhecível como negro. Ficando invisível, sua realidade de negro deixou de existir. Sua pretensão agora é paradoxal: fazer ver que ele existe. Enche de luz sua pobre habitação, como se fosse a Broadway de noite. Mas não adianta. A luz fica só para ele próprio, que resolveu a questão para si próprio sem resolvê-la coletivamente. A quantidade de luz que ele acende em torno de si só serve para, em comparação, a própria Broadway parecer escura. Lá fora continuam reinando as trevas. O problema continua”. É isso. Segue ainda lembrando que o crítico literário Fiedler, não percebeu a importância da questão negra também e sobretudo para os brancos, eis que a democracia periga pela maneira de tratar os visible men negros. Vira Fiedler, somente a feição alegórica do romance de Ellison, não percebendo sua significação política. Retorna, por fim, Carpeaux, para concluir fazendo um paralelo com outro autor, Baldwin, quem, por sua vez excluíra de seus romances o branco (“Nobody knows my name”), restando somente, o indivíduo, sem cor. Assim, afirma: “Não é a raça que sofre, mas o homem. Mas onde sofre um indivíduo, sofrem todos, sejam negros ou brancos...é o ponto nevrálgico da democracia...a questão dos negros é uma questão dos brancos”.

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Se a questão shakespereana do ser ou não ser, está na raiz do ver ou não ver ou, pior, ser visto e não ser reconhecido como pessoa, Almiro Sena é nosso Ralph Ellison. Façamos, pois, como aqueles deficientes visuais, que nada enxergando e paupérrimos, dizem àqueles que lhe dão esmola: “Que Deus lhe conserve a vista”. Sobretudo por tocar com ela a retina moral da sociedade brasileira. Se não “vejamos”: “Verifica-se, desse modo, que os argumentos utilizados pelos aúlicos da invisibilização do racismo no Brasil, por mais que se adornem de uma reflexão cientificamente fundamentada acerca da realidade, não passam de sofismas empobrecidos pela carga ideológica de quem os profere. Não é mais, portanto, uma questão de convencimento racional, mas de crença imutável; não é mais teoria, porém dogma; não é mais radicalismo de idéia, contudo sectarismo de opinião; enfim, é apenas “visão de mundo” intencionalmente escolhida para negar aquilo que, se reconhecido for, possa de alguma forma trazer, para quem se sente entre os privilegiados, qualquer tipo de incômodo ou ameaça ao seu status quo” (Conclusões fls. )

* * *

Assim, o autor não escreveu um romance. Decodificou uma história. Descompactou uma crença. Analisou um preconceito. Desvelou um sentimento malsão. Não partiu de juízos apriorísticos, ou de sentenças, para depois buscar provas e argumentar. Partiu de sua coleta de dados da observação diária, desde a infância em sua Bahia, terra de muitas belezas e de todos os paradoxos, onde pode ver o itinerário de uma raça “tisnada do ébano nagô”, visible men and visible women, que embora vivendo sob a proteção de uma “Constituição cidadã”, conheceram antes uma “constituição epitelial” e o quanto isso pode alterar ou influir no curso de suas vidas. Não é registro de dor, nem almeja revanche. Propõe diagnósticos, incita o debate, oferece soluções, ao menos nas lindes do possível. Depois, pesquisou, estudou, deparou-se com estatísticas e casos. É sim, nosso Ralph Ellison, mas com vigor novo, atualizado e mais que literário, pois atua e trabalha com o direito, este que tenta culturalmente esclarecer distâncias que a visão curta pretendeu naturais: denuncia a problemática da visibilidade humana, mas quer aos irmãos, todos, não serem apagados da narrativa da história. Os quer visíveis, existentes, mas, também sujeitos de direitos, não só de obrigações, aliás, como propõe o princípio da dignidade humana e a Constituição Federal. Como propõe, ademais, qualquer estatuto humano com uma mínima pauta ética de decência. O problema, não é de negro ou branco, a questão é sim de indivíduo, melhor, de cidadão, e é para este que, negando-se sua essência, esvazia-se a democracia. Esta mesma, que centrada na dignidade, promete uns punhados de igualdades, uns quantos direitos e uma porção de obrigações. A todos e por todos, sem que se falte nenhum.

* * *

Em síntese, propõe o autor a quebra da “espiral de silêncio” dos que não podem se omitir, visando somarmos, e não dividirmos, para um crescimento comum. Como a recitar com Jean Pouillon, que “A descoberta da alteridade é a descoberta de uma relação, não a de uma barreira. Pode confundir as perspectivas, mas alarga os horizontes” (in Raça e História, de Claude Lévy-Strauss, Trad. Inácia Canelas, Editorial Presença, 9ª. ed., Lisboa, 2008, p. 71). Já não se cuida, pois, da ausência de pecado, mas de diagnóstico e busca de correção. Não é sem tempo a emenda do homem, já que o substantivo da cidadania deve ser um adjetivo válido para todos os cidadãos. Enfim, na categoria dos exemplos, é preferível um Santo Agostinho que reconheça a fraqueza e o vício, para buscar e obter a libertação, que um Marquês de Sade, a entregar-se as perversões, vendo-as como naturais, fazendo-se prisioneiro de si mesmo. Não basta, como no mito de Narciso, contemplar-se o rosto nas ondas de nosso Atlântico. Narciso é o mito da soberba ineficaz, e essa é paralisante. E nosso Narciso está feio, atendendo pelo nome de Racismo. Reclama estética reparadora.

* * *

A terra, essa deusa de tranças verdes, como Coleridge a chamou, para se fazer mais bela adornou-se de todos os matizes, tingiu-se de todos os pigmentos, como se Deus a quisesse com todas as cores. A cultura, esse humano trabalho de desenvolvimento dos povos, reclama o respeito à alteridade, o reconhecimento do “outro”, o respeito aos direitos fundamentais. A cultura, sim, ela mesma. Essa deusa de tranças mágicas e de cores invisíveis.


Edilson Mougenot Bonfim

Procurador de Justiça em São Paulo. Doutor em Direito pela Universidade Complutense de Madri. Professor convidado da Universidade de Aix-Marselle, França. Professor colaborador do mestrado (Direitos Fundamentais) da Universidade Federal de Alagoas. Professor Honoris Causa da Universidade da Região da Campanha-RS

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Paradigma

O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)