A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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8 de abril de 2011

A encarnação do mal


Assassino do Rio injetou a realidade no faz-de-conta

O maior crime do maluco que matou 12 crianças e feriu 18 no Rio de Janeiro foi o de ter injetado realidade no faz-de-conta nacional.

O assassino inesperado conspurcou o último templo sagrado da classe média: a escola, espécie de reserva ambiental urbana (no vídeo acima, o instante em que o atirador entrou na sala de aula).

Ao disparar dois revolveres contra alunos da escola que já frequentara, o jovem sem antecedentes criminais criou a neochacina, uma tragédia inclusiva.

Vem daí, sobretudo, o frêmito de horror que eletrifica a nação. Isso era coisa de filme, era coisa de birutas norte-americanos, era coisa de Primeiro Mundo.

As chacinas brasileiras só ocorriam nos fundões da periferia. Os mortos eram estatísticas que a rotina confinou no rodapé das páginas de jornal.

O sangue que escorre na escola pública de Realengo é diferente. Poderia manchar o piso de escolas chiques de Higienópolis, de Ipanema, do Plano Piloto.

Nas velhas chacinas, o país assistia ao genocídio em conta-gotas como uma espécie de processo de auto-regulação da criminalidade e da pobreza.

A neochacina da escola violou a regra do jogo. Os cadáveres são palpáveis. Têm nome e sobrenome. São brasileiros como nós.

São crianças como nossos filho. Despejados no tapete do living pelo noticiário da TV, os corpos tocam os bicos dos nossos sapatos.

O tubo de imagem da TV, refúgio sempre tão seguro, suga o país para o centro da cena, num hediondo processo de inclusão.

Antes que o telespectador possa zapear, vira parte da cena. Percebe-se dentro daquela escola. Súbito, a tragédia somos nós.

Dilma Rousseff, avó recente, chorou. No Congresso, não se fala em outra coisa. “Temos de tomar providências”, diz uma senadora. “É preciso deter o tráfico de armas”, ecoa um deputado.

Da tribuna do Senado, Cassildo Maldaner (PMDB-SC) lembra que costuma buscar a neta na escola. E se fosse ela?

O sentimento de inclusão não é propriamente novo. Coisa semelhante já havia ocorrido em novembro de 1999.

Um jovem estudante invadiu, em São Paulo, um cinema de shopping, outro templo da classe média. Metralhou três e feriu cinco.

Exibia-se na tela o violento “Clube da Luta”. A audiência queria ver Brad Pit, estrela da fita. Deparou-se com um inesperado Freddy Krugger.

Passado o susto, o cinema do shopping paulistano trocou o filme. Pôs para rodar a comédia idiotizante “American Pie”. E a vida seguiu o seu curso.

A mortandade na escola dificulta a virada de página. Não há comédia capaz de apagar as marcas da neochacina.

Por Josias de Souza, jornalista da Folha de São Paulo.

* * *
Segundo especialista, carta de atirador mostra que ele é portador de psicose

Em entrevista à rádio CBN, nesta noite, o psiquiatra forense Guido Palomba fez a radiografia mental do assassino. Clique aqui para ouvi-la.

Um comentário:

Vellker disse...

A realidade é triste, mas nem é mais chocante. Sucederam-se tantos genocídios no Brasil sob uma névoa de complacência do Estado e da tão falada classe média que agora um jornalista escreve como que tocado pelo poder de um segundo raio, que em plena tarde ensolarada no jardim das alegrias dessa sua amada classe média inesperadamente explodiu e o feriu.

Pior ainda os noticiários, repetindo à exaustão as cenas filmadas pelas câmeras de televisão e por um cinegrafista amador, que pareceu em todos os ângulos mais preocupado em filmar tudo do que em ajudar alguém. Dá audiência enquanto que repórteres com uma expressão adequadamente comovida para o momento falam sobre o acontecido. E um partido político ainda aproveita o momento para veicular seu programa partidário. Não deveria tê-lo adiado em respeito às vítimas? Mas o tiroteio ia dar audiência, então porque não juntar o útil ao desagradável mas quem tem milhões de eleitores assistindo? Primeiro nossa mensagem, depois entram os mortos.

É do meio dessa sociedade que surgiu um desequilibrado, que a rigor nem culpa teve. Por tudo o que foi visto até agora agiu em estado de total alucinação e de completa loucura. Se sobrevivesse seria juridicamente inimputável, tendo como prisão um manicômio. O mesmo que aconteceu com o atirador do shopping de São Paulo, que levou aos noticiários uma primeira visão de que a loucura está sim, dentro da classe média e muito bem cuidada. Esse foi o primeiro raio que atingiu o mesmo jornalista nos seus comentários da época.

Loucura mesmo é a dessa sociedade que permitiu a impunidade para os menores que incendiaram o índio Galdino em 1997, quando os magistrados aceitaram a tese da defesa de que os menores, da classe média, é claro, queriam "apenas brincar" jogando álcool sobre o índio que dormia. Loucura de verdade é uma promotora desqualificar o atropelamento de um pedreiro pelo filho de um ex-ministro em 1996 alegando que a vítima já estava morta ao ser arremessada a mais de 15 metros e portanto o "réu" não era culpado por ter fugido sem prestar socorro, já que a vítima estava morta. Loucura é manter um sistema que deixa um réu confesso do assassinato com testemunhas de uma ex-namorada solto depois de condenado a 19 anos de prisão. Loucura é achar que leis que permitem aos alunos matarem e espancarem professores no Brasil inteiro está certa. Como os professores são assassinados e espancados um de cada vez ao invés de 12 de uma vez só, então a comoção nem sequer existe. Mal aparece no noticiário. Não dá audiência mesmo.

Lógico que sentimos pelas crianças mortas, pelo sofrimento das famílias e pelas cenas de horror, mas isso é apenas o brotar dos espinhos no jardim dessa mesma classe média, que ela tão laboriosamente semeou nos últimos 20 anos, aceitando um código moral tácito, consensual, de que no fim de contas "eu só pago uma cesta básica" e se for preso. Se conseguir fugir, nem isso.

Finalmente a classe média brasileira tem a sua Columbine. Estamos progredindo.

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O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)