A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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3 de fevereiro de 2011

Atrás das grades


Prisões do país, comparadas a "masmorras medievais" pelo CNJ, são exemplo de barbárie instituída a exigir medidas do poder público Há sempre quem se espante, ao ler sobre os costumes do passado, que escravos fossem açoitados em praça pública, que sentenças de tortura fossem motivo para entretenimento público, ou que, num ambiente de indiferença moral e brutalização cotidiana, doentes mentais fossem abandonados à própria sorte, minorias étnicas fossem trucidadas, e seres humanos tratados como gado a caminho do matadouro.

Como era possível, pergunta-se a consciência ilustrada de nossos dias, conviver com desumanidades desse tipo, como se consistissem na coisa mais normal do mundo? Não se ignorava, por certo, a presença constante da barbárie; nem todos, pode-se supor, aprovavam-na; a situação não se alterava, todavia.

Talvez se venha a ter, no futuro, atitude semelhante de estranheza a respeito dos brasileiros de 2011 -que estão mais do que cientes, há décadas, do que se passa nas prisões de seu país. Filmes, fotos, livros, reportagens, relatórios oficiais, depoimentos registram sem dar margem a dúvidas aquilo que, desta vez, é apontado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão de controle do Judiciário.

Presos são guardados em contêineres em Mato Grosso; há denúncias de que são algemados nus em suas celas, no Espírito Santo; no Distrito Federal, uma mulher absolvida pelo Tribunal de Justiça continuou presa por mais dois anos.

Superlotação, tortura, doença configuram, segundo o relatório da CNJ a que a Folha teve acesso, um quadro comparável ao de "masmorras medievais", para citar literalmente o texto das autoridades. As inspeções, realizadas entre 2008 e 2010, cobrem a maioria dos Estados brasileiros; São Paulo, Rio Grande do Sul e Rondônia ainda esperam avaliação.

Não se trata de permitir privilégios ou luxos a delinquentes perigosos, por vezes tratados até com excessiva brandura pela legislação e pela prática -tão pródiga em indultos e reduções de pena quanto o é, em horrores e violências, a vida prisional.

Denunciar o desrespeito aos direitos humanos nas cadeias não se confunde com tolerância diante do crime. Ao contrário, o quadro de miséria, animalidade e brutalização que se vê nos cárceres brasileiros só vem prefigurar, na verdade, que tipo de pessoas será devolvido à sociedade, quando findar-se o período da pena.

Ao lado de superlotação, insalubridade e maus-tratos nos presídios, também se manifesta, como reverso da mesma moeda, um estado de coisas em que alguns detentos dominam, das próprias celas, as redes do tráfico de drogas, do assassinato de seus pares e da corrupção policial.

Cadeias que, tanto quanto masmorras, são também centros de operação do crime organizado, nada mais refletem do que um único fenômeno: o predomínio da ilegalidade e o caos, no âmago da instituição que deveria representar o último e extremo reduto do poder de coerção do Estado numa sociedade civilizada.
 
Fonte: Editorial do jornal "A Folha de S. Paulo" de 29/01/2011.

Um comentário:

Vellker disse...

Bonito editorial, mas na escuridão da situação apontam o farolete para o lado do cidadão enquanto que deveriam apontar para o lado dos responsáveis, o governo e o próprio judiciário. Diz o texto que talvez no futuro venham a ver com estranheza o papel do cidadão em 2011. E o cidadão vai fazer o quê?

Sim ele sabe de tudo isso, que as prisões brasileiras são comparáveis a campos de concentração do nazismo e que culpa ele tem? Pior ainda, o que ele pode fazer? Ir para a frente dos presídios e dizer que não aceita isso? Ou os agentes prisionais riem dele ou o prendem de imediato. Entrar com uma ação contra o Estado para vê-la naufragar miseravelmente por obra do próprio Estado?

O próprio e auto-elogiado Estado "democrático e de direito" criou essas prisões que não existiam nem mesmo na época do regime militar. As prisões não tem juízes e promotores que fazem inspeções e veem isso de perto, de frente e quando quiserem? E porquê não fazem nada?

Porquê ao mesmo tempo em que não se tem dinheiro para comprar remédios para os presos, a presidente eleita faz um belo discurso conclamando todos a um pacto contra a miséria enquanto deixa o fraudado e falido Banco Pan-Americano ser socorrido com 10 bilhões de reais de dinheiro público com os fraudadores impunes?

Porquê membros do governo dentro absurda Comissão da Verdade querem apurar supostas torturas ocorridas há mais de 30 anos e ao mesmo tempo são incapazes de apurarem torturas ocorridas não só há menos de 30 dias como as que ocorrem diariamente nessas prisões?

E porquê o mesmo Conselho Nacional de Justiça que apura tudo isso, que vê casos de pessoas presas por anos, até mesmo sem denúncia ou julgamento, ao invés de criar o que poderíamos chamar de Juizados Especiais Prisionais, permite que sejam montados com todo conforto Juizados Especiais em aeroportos para apreciar reclamações de passageiros, que parece que carregam mais dinheiro no bolso do que os torturados em presídios?

Assim o atento leitor da História, ao ler livros no futuro saberá que a atitude do cidadão brasileiro de 2011 era a de vítima impotente desse sistema de governo, que sob a leniência do judiciário permitia que tudo isso fosse feito.

O cidadão do futuro, certamente sob um governo e judiciário melhores, vai se perguntar então, com a consciência ilustrada que ele terá, como era possível conviver com desumanidades desse tipo, ao ler um arquivo de jornal.

E vai concluir que a barbárie não estava propriamente do lado do cidadão, mas sim governando ele.

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O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)