A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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27 de agosto de 2010

Uma questão de virtude!

Em recente entrevista (aqui), o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal e, atualmente, ministro do Tribunal Superior Eleitoral, mais alta corte do país em matéria eleitoral, asseverou que “temos uma Constituição Federal que está no ápice das normas jurídicas. Por ela, uma lei que altere o processo eleitoral não se aplica às eleições que ocorram dentro de um ano a partir da promulgação da lei. É o artigo 16 (da Constituição). Eu não sou um justiceiro. Eu sou juiz. Não ocupo cadeira voltada a relações públicas. Se há coincidência entre o anseio popular e o meu convencimento, eu atuo. Mas, se não há, eu continuo atuando da mesma forma. Não posso dar esperança vã à sociedade.”

Ao tomar conhecimento das palavras do ministro tive a impressão que o primeiro e mais lídimo intérprete da Constituição Federal, em reveladora manifestação, foi igualmente o primeiro a esquecer, ou ao menos desprezar, o seu inteiro teor.

Diz a Constituição Federal que todo o poder emana do povo, que o exerce através de seus representantes eleitos ou, diretamente, nos termos da constituição.

Todo, segundo o dicionário Houaiss, é pronome indefinido que significa “qualquer, seja qual for; cada”.

Segundo a mesma Constituição, o Estado Brasileiro – República Federativa do Brasil – é constituído por três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário.

Pois bem.

Segundo a lógica do pensamento, se todo o poder emana do povo, e todo significa seja qual for, sendo o Poder Judiciário um dos Poderes do Estado Brasileiro que pratica diariamente uma centena de atos, dotados de poder, forçoso afirmar que o poder dos atos estatais, seja qual for, é calcado única e exclusivamente no poder do povo, valendo essa máxima também ao Poder Judiciário.

Para utilizarmos um silogismo inquestionável: “Se todo o poder estatal emana do povo e, uma decisão judicial é um ato de poder estatal; logo, a decisão judicial é um ato de poder que emana do povo”.

Mais. O Poder manifestado pelos três entes que constituem o Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) só se justifica e se funda no povo, sendo imperioso concluir que não há ato estatal legítimo no Brasil senão aquele que encontra força e coercibilidade no povo, na vontade popular.

Assim, seja qual for o ato judicial, seja um simples despacho de um juiz de Jequitinhonha (MG) ou um voto de um ministro do Supremo Tribunal Federal, igualmente, enquanto atos estatais, inexoravelmente, encontram seu poder e seu fundamento na vontade popular, no povo, de onde emana todo o poder legítimo da República Federativa do Brasil.

Diante desse quadro, que não exige nenhum esforço interpretativo sobre-humano, fico a refletir: Quando o eminente ministro dissocia seu voto do anseio popular, ao afirmar que, não havendo coincidência entre o anseio popular e seu convencimento, prefere ser fiel ao seu convencimento, não está o ministro a trair a própria Constituição e sua verdadeira missão, que é justamente de guardar e interpretar esta Constituição?

Será que a verdadeira leitura que faz o eminente ministro do art. 2º. da Constituição da República é: “todo o poder emana do povo, exceto quando contrariar meu convencimento, pois, nesse caso, o poder emana do meu convencimento”?

Ora, diria um sábio matuto aqui de Minas Gerais, que pouco conhece sobre o sistema Judiciário: se todo o poder emana do povo, então, as decisões devem ser tomadas em favor do povo, não é isso? Logicamente teríamos que responder: sim! Mas, para alguns na República, não. Mas é isso, sim. O convencimento de qualquer autoridade de estado só é dotado de poder, legitimamente, se coincidente com a vontade popular, com o anseio popular. Quando dissociado da vontade popular, o convencimento do ministro, em essência, passa a ser apenas uma opinião pessoal, de cidadão, mas não um ato de poder estatal, pois esvaziado de poder popular.

O que temos visto atualmente, com grande pesar, é que parte do Poder Judiciário – diga-se de passagem, parcela ainda minoritária, posicionada em postos estratégicos da justiça brasileira, como as mais altas cortes do país – ao exarar seus atos de ofício, simplesmente desconsideram a vontade popular, atuando como se o poder de estado se fundasse neles próprios, e não no povo. Esta lógica perniciosa deve ser invertida.

O Poder Judiciário não está, por mais que alguns o queiram, acima da Constituição. Não é um poder supraconstitucional. É um Poder do Estado Brasileiro. Tecnicamente, exerce uma função do Estado brasileiro, a sagrada função de julgar e, por essa simples razão, deve atender a lógica e fim único desse mesmo Estado, que não é um fim em si mesmo. Não existe por si próprio e que, por opção constitucional, é um Estado Democrático de Direito. Cabe, neste ponto, mais um silogismo insuperável. O Estado Democrático de Direito tem por fim único satisfazer os anseios da sociedade brasileira. O Poder Judiciário é um Poder do Estado Democrático de Direito. Logo, o Poder Judiciário tem por fim único satisfazer os anseios da sociedade brasileira.

Enquanto representantes do Estado, servidores públicos ou agentes políticos, como queiram, todos – no dizer do dicionário, seja qual for – estão obrigados a atender a vontade popular, a desenvolverem seu trabalho sempre e unicamente para atender a vontade popular, que é o que legitima a função pública, é a fonte que remunera o serviço público prestado, seja de um gari, de um lixeiro, de um ministro ou do Presidente da República.

Não se quer aqui, de maneira alguma, erguer-se a bandeira que uma decisão judicial é um ato puramente político, a atender grupos de pressão ou momentos de convulsão social, em que a pressão é direcionada premeditadamente por determinados setores sociais, grupos sociais, lobistas etc.; ao contrário. Existem leis no país que devem ser seguidas e interpretadas. Porém, no sacerdócio de interpretar a lei, acima do tecnicismo puro e simples, a interpretação judicial deve, necessariamente, contemplar o componente da vontade popular, do impacto social de sua decisão, sob pena de tornar-se um ato desprovido de poder do ponto de vista constitucional, ou um ato estatal ilegítimo, e, por que não, um ato estatal inconstitucional na medida em que vem vazio de poder popular.

Ora, acima de qualquer tecnicismo de laboratório, não há alguém que, em sã consciência, diante desse mar de ilicitudes que invade o Brasil, nesse tsunami que não dá trégua, defenda que a lei do ficha limpa não vale para estas eleições. Não há alguém que, no gozo de seu juízo perfeito, entenda como absolutamente normal a liberdade do famigerado Pimenta Neves, réu confesso de um brutal crime de homicídio qualificado, amparado por interpretações equivocadas do princípio constitucional da absoluta inocência. Essas interpretações, que são apenas dois exemplos esdrúxulos dos milhares que já se repetiram nesse país, em essência, são atos que não representam em nada a vontade popular, que não atendem às expectativas sociais, ao contrário, frustram a esperança dos homens de bem e valem como um tapa na cara da sociedade honesta e ordeira.

Não precisa ser profeta para reafirmar aquilo que já disse um dia, sabiamente, o eterno Rui Barbosa: “De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra; de tanto ver crescer as injustiças, de tanto ver agigantarem-se o poder nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto”.

O Poder Judiciário, um poder secular, quase sagrado, imprescindível para a manutenção da ordem, definitivamente, não tem se desincumbido de seu mister. Basta colher no meio social em que o leitor vive, se seu nicho social confia plenamente no Judiciário. Basta perguntar a si mesmo: se tiver uma dívida a receber, um direito seu violado, se o barulho de seu vizinho for ensurdecedor causando-lhe perturbações intensas, se você ou sua família for vítima de um crime bárbaro, você acredita na resposta pronta, eficaz e justa de tutela jurisdicional de seu direito ameaçado ou violado? Se você respondeu negativamente, está em xeque o pacto social, a credibilidade social do Poder Judiciário, e corre sério risco nossa sagrada Justiça.

Ou as decisões judiciais passam a ser atos estatais que correspondam à vontade popular ou esse secular Poder vai se lançar num longo e desgastante caminho do descrédito, da anacronia, tornando-se um Poder atemporal, fora de seu tempo, desconectado da realidade.

Ou o Poder Judiciário promove uma profunda autorreflexão, sai de seus gabinetes, e passa a escutar a voz rouca das ruas, a considerar a voz que emana das vielas, que há muito tempo não é mais só voz, é coro, é hino, infelizmente com picos de gritos de horror dos aniquilados pelo crime, pela corrupção, pela improbidade, pelo clientelismo, pelas relações espúrias de poder, ou a sociedade simplesmente vai começar a concluir pela imprestabilidade desse Poder, pelo valor meramente decorativo dessa valiosa Instituição, pois a relação entre sociedade e Estado, historicamente, é marcada pela confiança gerada pela resposta à expectativa social inicialmente depositada. A perda de confiança, de prestígio social é preocupante, pois temo o dia em que a sociedade chegará à conclusão de que esse poder não mais justifica sua existência, pois situado no Olimpo, na estratosfera jurídica, absolutamente desconectado da realidade social, dando marcha à ré na evolução social, retornando a sociedade a reger-se pela Lei de Talião: “olho por olho dente por dente”. Na ruptura do pacto social firmado em 1988, pois o monopólio da jurisdição, que um dia delegamos ao Estado, com nossas mais legítimas e puras esperanças de uma sociedade melhor, já não atende mais a nossa expectativa social e, talvez, a defesa individual de nossos direitos seja mais efetiva do que esperar pela defesa estatal, que tarda e nunca vem.

As posições técnicas atualmente adotadas, os raciocínios de laboratórios, jurídico-matemáticos, invariavelmente, devem ser sopesados sob a luz da vontade popular. Para além do tecnicismo, da subsunção fria do fato, a norma jurídica, geral abstrata e impessoal, para além do juízo puramente lógico, espera a sociedade do julgador uma grande virtude: sensibilidade social. Ou uma decisão é técnica atende à sociedade e, por isso, é revestida de poder, ou é técnica, mas não atende aos anseios sociais, sendo despida de poder, servindo como experimento de laboratório, mas não como emanação legítima de poder estatal.

E, para saber qual o anseio social, não é necessário fazer mestrado, doutorado, cursos no exterior, terapia, plebiscito ou referendo popular para toda e qualquer decisão judicial. Basta ouvirmos, em silêncio, a voz de nossa consciência. Basta aplicarmos o antigo, surrado, mas sempre atual conselho dos mais antigos: “fazer aos outros a justiça que desejamos para nós mesmos”. Definitivamente, é uma questão de valores. Uma questão de virtude!

Por Fábio Galindo Silvestre, Promotor de Justiça (MP/MG).

2 comentários:

Anônimo disse...

Não é tão fácil decidir atendendo ao anseio popular, o qual invariavelmente pode ser manipulado para atender a interesses de grupos. Nesse contexto, a educação é fundamental, pois permite ao povo avaliar melhor seus representantes.
Todo poder emana do povo e é exercido por meio de representantes eleitos ou diretamente nos termos da Constituição.
Como se sabe, a opinião popular é facilmente orquestrada por meio da propaganda estatal ou de grupos ligados às comunicações. Quando um candidato tem apoio de uma emissora, suas chances de vitória aumentam significativamente. Isto aconteceu, acho que todos se lembram e ele em entrevista corroborou isto, com Fernando Collor, que recebeu o apoio de uma importante rede de televisão.
Não usando de meias palavras, a maior parte população está alheia a tudo o que acontece no ambiente político e jurisdicional. A preocupação é com a novela das oito, com a cervejinha do final de semana e etc. Ou seja, as pessoas vivem suas vidas amiúde sem saber que existe uma Constituição.
Neste cenário, os agentes públicos têm plena liberdade para decidir desta ou daquela maneira, sem exorbitar, é claro, dos parâmetros dos textos legais. Estes, por sua vez, são passíveis de mais de uma interpretação e os argumentos, como se sabe, se prestam a justificar as conveniências de cada um. Isto remonta à Grécia antiga, aos embates levados a efeito na ágora, onde os sofistas punham todo o seu potencial verborrágico a serviço de quem lhes pagasse mais.
Entendo a indignação do autor do post, pois hoje se vê, ocupando cargos públicos, pessoas que não têm compromisso com a população. No que toca à magistratura de carreira, por mais irônico que possa parecer, é a que mais atende às necessidades do cidadão, embora o ingresso aí se dê pela via do concurso público.
Nos Tribunais Superiores e mesmo nos Tribunais de Justiça a composição é heterogênea já que seus integrantes são escolhidos entre advogados, magistrados, membros do Ministério Público e Defensoria e a influência política nas nomeações são muito fortes. Quem não se lembra que Dias Tottoli, o qual foi advogado do PT, antes de nomeado ministro andava pelos gabinetes de parlamentares fazendo campanha para que sua indicação pelo Presidente Lula não fosse recusada? Não estou aqui a questionar a competência do Ministro e sim como se chega aos mais altos cargos da República.
Quanto à decisão do Ministro Marco Aurélio, entendo que não entra em rota de colisão com a Constituição, à vista do texto expresso relativamente à lei que altera o processo eleitoral e sua interpretação é razoável, sendo oportuno lembrar que a Carta Magna foi elaborada por parlamentares eleitos para tal fim e, certamente, muito do que ali consta se presta a proteger aos parlamentares, legítimos representantes do povo...
Um forte abraço.

Vellker disse...

Lúcido artigo do promotor, que ao que parece é mais um dos idealistas que tentam levantar o judiciário dos nossos dias, que caído na rua há muito tempo, por premeditação e trabalho de seus inimigos que não queriam ver um judiciário realmente ao lado da Justiça e que hoje ocupam posições e cargos elevados, triunfantes no que se propuseram exatamente em 1988.

A par das palavras que definem uma constituição, que descrevem o histórico contrato social e demais instituições que fazem a diferença entre uma tribo de selvagens do pior tipo e uma comunidade civilizada, apesar dos idealistas que ainda resistem num forte cercado, temos que ver que a tribo de selvagens tem levado a melhor no cerco sem tréguas que faz a esses idealistas.

Não muito longe fica a população, cercada e vigiada, numa triste visão de uma mistura de curral humano e celeiro de provisões. Tal é a situação do judiciário dos dias de hoje e do povo que ao invés de ser por ele atendido, é atacado.

Palavras certeiras e de alerta sobre o esgarçamento do tecido social, que a cada dia se mostra mais visível, onde apena de Talião será a consequência natural da evolução, ou melhor dizendo, da involução premeditada das instituições que hoje temos: a legislativa, que se esmera em redigir leis injustas e a judiciária, que com alegria exerce os privilégios embutidos nessas leis, enquanto que ao cidadão comum só resta lamentar a triste sorte que o abateu.

Quanto à constituição de 1988, melhor que seja sempre desmascarada como o grande golpe que foi dado contra o povo, pois mais que pensada, foi premeditada por um congresso de espertalhões, corruptos e oligarcas, fantasiados de arautos da "democracia", da "cidadania" e da "modernidade" e que levou o Brasil até mesmo ao risco de perda de partes do seu território.

Parabéns ao articulista por escrever tal artigo. Na história do judiciário desses tempos, não foram poucos os magistrados de coragem que pagaram com a vida por tais idéias.

Enquanto o Brasil contar com idealistas assim, uma mobilização nacional é sim possível, para reverter esse atual estado lamentável, que longe da propaganda ufanista dos jornais, nada tem de estado de direito.

Vellker
http://cartasdepolitica.blogspot.com

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Paradigma

O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)