A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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19 de novembro de 2009

O Parlamento, o Ministério Público e o Povo


Tem curso, na presente quadra histórica brasileira, a sedimentação de instituições e valores postos na Constituição de 1988.

Neste brevíssimo ensaio pretende-se analisar ponto específico desse processo de amadurecimento, qual seja a relação entre o papel do Ministério Público e suas atribuições, o papel e as atribuições da Parlamento e o controle dessas instituições, decorrentes da identificação constitucional da titularidade do poder em mãos do povo.

A relação imbrica-se no ponto em que ambos possuem atribuições de fiscalização do funcionamento do Estado, como consagrado, respectivamente, e como exemplo, nos artigos 129 e 49 do Texto Constitucional.

Entender as diferenças e as aproximações entre as instituições e, mais ainda, fixar a necessidade de prestação de contas ao titular do poder, como corolário do regime democrático, são temas que se impõem, em obediência aos primados constitucionais republicanos.

De um lado, o Ministério Público é instituição permanente da República, e a ele cabe a defesa de toda a ordem jurídica, da própria democracia e de todos os interesses e direitos coletivos de importância social, como a saúde, a educação, o meio-ambiente, a criança e o adolescente, o idoso, o consumidor, os direitos humanos em geral e a constitucionalidade das leis, dentre outros tantos.

Por outro lado, cabe ao Parlamento a função, ímpar na República, de implantar e renovar constantemente, toda a ordem jurídica nacional, incluindo aí a própria Constituição Federal. Além disso, como se ressaltou linhas acima, é ele o fiscal político-constitucional de todos os poderes e atribuições do Estado.

Só por essa rápida noção, parece muito claro que ambas as instituições não podem existir de forma ilhada, sem qualquer interferência recíproca. Exemplos dessa relação, de um lado, é a determinação contida no artigo 58, § 3° da Constituição, no sentido de que as conclusões das Comissões Parlamentares de Inquérito sejam encaminhadas ao "Parquet", para que este promova a responsabilidade civil, criminal - e eventualmente administrativa, acrescente-se - dos infratores e, de outro lado, a obediência, pelo Ministério Público, dos limites de despesas estabelecidos pelo Parlamento, em lei complementar, nos termos do artigo 169 do mesmo Texto Magno.

A repartição constitucional das funções estatais, a que se tem denominado, de modo impróprio, de separação de poderes, paira sobre uma tênue linha de equilíbrio. Assim, em tempos de crise há uma tendência de fortalecimento do Poder Executivo e o consequente enfraquecimento dos Parlamentos em geral. Isso é assim porque a unipessoalidade do Executivo leva à rápida tomada de decisão, enquanto o funcionamento parlamentar, com discussões em comissões, votações e a eventual remessa a uma casa revisora faz com que tudo ali seja naturalmente mais lento. Figure-se, para reforçar essa busca de celeridade, os institutos da medida provisória e da lei delegada, normas gerais de natureza legal, atribuídas de modo atípico ao Chefe do Poder Executivo.

Além disso, as constantes situações de desgaste envolvendo membros dos parlamentos, prestam-se ao surgimento de idéias absolutamente equivocadas, no ponto em que se pretende passar a noção da desnecessidade ou mesmo, de ser perniciosa ou quando menos, dispensável, a existência dessas Casas de Leis.

Exemplo do que se afirma reside nas recentes e repetidas crises envolvendo a Presidência do Senado da República, fazendo com que se ergam vozes, algumas surpreendentemente não-leigas, a advogar a restrição de suas atribuições, quando não a extinção dessa Casa de vocação revisora, olvidando que o Senado compõe-se, nos termos do artigo 46 da Constituição Federal, de representantes dos Estados e do Distrito Federal e, por conseguinte, instrumento inarredável do equilíbrio da Federação, cuja imutabilidade se tem assegurada pelo artigo 60 § 4°, I, do mesmo Texto Constitucional.

Também, equivocada e inconstitucional qualquer diminuição da importância do Parlamento porque não há democracia, na moderna acepção do termo, sem um parlamento fortalecido, reconhecido, em pleno funcionamento e com liberdade de ação.

De fato, nenhuma instituição da República tem tamanha representatividade, nenhuma tem tanta possibilidade de retratar a multiplicidade das forças populares, nenhuma tem a mesma capacidade de ser porta-voz dos anseios da sociedade.

É que a unipessoalidade do executivo, já referida, com freqüência não lhe permite ser canal direto dos vários e às vezes até contraditórios interesses sociais; só o parlamento tem essa prerrogativa, pois em sua diversidade ele é a sociedade em amostragem, em miniatura. Assim,quando virmos os debates acesos que ali se travam, passemos a enxergar nisso uma virtude: estamos, afinal, representados em nossas diferenças.

É evidente que tamanha atribuição traz consigo outro tanto de responsabilidade: a democracia em sua configuração atual não se contenta com uma prestação de contas periódica, política, quando do escrutínio nas urnas, é preciso que a legitimidade da representação, além de ser estabelecida sem o nefasto abuso do poder econômico quando das eleições, o que em si já é uma tarefa hercúlea, perdure, ainda, durante todo o mandato, com um sistema ininterrupto de prestação de contas.

A democracia moderna não é simplesmente representativa, ela é, acima de tudo, participativa. Além de se contar com os fiscais constitucionais, a própria sociedade há de ser partícipe ativa em Conselhos e Associações, exercendo diuturnamente o controle do exercício do poder de seus representados políticos. Por outro lado, a ação popular e as ações civis públicas são exemplos de instrumentos, agora de feição jurisdicional, cuja efetividade ainda se ressente de maior incremento.

Exatamente neste ponto é preciso voltar-se ao Ministério Público: por não ser menos democrático do que o parlamento e, também, por não ser menos republicano, deve seguir-se a conclusão de que também o "Parquet" deve contas aos titulares do poder. O fato de seus membros tomarem suas atribuições e garantias diretamente do Texto Constitucional, por meio de habilitação em concurso público, não implica a detenção de Poder Estatal de outra natureza ou origem, visto que todo o poder emana do povo, como sabiamente o diz nossa Constituição, logo em seu começo.

As formas como a prestação de contas deve se dar, neste caso, é um processo em construção. O Ministério Público dispõe, além de órgãos de controle interno, do Conselho Nacional do Ministério Público, o CNMP, órgão constitucional formado por membros de diversas procedências, inclusive de fora da Instituição, que tem a prerrogativa de controlar administrativamente os atos praticados nos diversos ramos da Instituição. O fortalecimento desse mecanismo de controle, inclusive com aparelhamento administrativo e destinação orçamentária condizentes com sua missão, é medida de rigor, infelizmente ainda pendente de implemento.

De todo o modo é tempo de se fixar a necessidade do controle ininterrupto do exercício do poder atribuído às instituições, inclusive com a fixação de parâmetros objetivos de avaliação de desempenho e de instrumentos de transparência, pois como adverte Montesquieu, na abertura de seu "O Espírito das Leis", "trata-se de verdade eterna, aquela segundo a qual, todo aquele que detém poder tende a dele abusar, até que encontre um limite".

Por Ercias Rodrigues de Sousa, Procurador da República e mestre em Direito do Estado pela PUC/SP.

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