Não se tem sido observada a circunstância de que o delito mais grave, na maioria dos casos, constitui a última fase de um "iter criminis" que se inicia com o rompimento de um relacionamento amoroso seguido de um comportamento mundialmente conhecido: a perseguição da vítima. Em homicídios noticiados pela mídia, alguns de grande repercussão, nada se fala sobre o "stalking". Ora, é preciso que se estude no Brasil esse fenômeno humano, pois, alertando-se o sujeito passivo dos perigos desse tipo de repercussão, muitas vidas podem ser salvas. Esse alerta inclui a informação do que o sujeito passivo deve fazer na esfera civil e criminal.
Por isso, repetindo o artigo, atualizei o estudo, na esperança de que a sociedade tome consciência da gravidade do fato, ao qual não se tem dado a devida importância.
Conceito
Não é raro que alguém, por amor, desamor, vingança, inveja ou outro motivo, passe a perseguir socialmente uma pessoa com habitualidade incansável. Repetidas cartas apaixonadas, e.mails, telegramas, bilhetes, mensagens fonadas na secretária eletrônica, recados por interposta pessoa ou via rádio ou jornal etc. etc. tornam um inferno a vida da vítima, causando-lhe, no mínimo, perturbação emocional. A esse fenômeno dá-se o nome de "stalking" (perseguição). É mais comum do que se imagina.
Sujeitos
Geralmente, o sujeito ativo é homem e a mulher, o passivo. Há casos, entretanto, em que aparecem nos pólos dois homens ou duas mulheres. Configura exceção a perseguição de homem por mulher.
Motivos
São variados: amor, desamor, vingança, ódio, brincadeira, inveja ou qualquer outra causa subjetiva ou pessoal. Na maior parte das vezes, trata-se de um amor incontido, em que o "stalker", geralmente do sexo masculino, repete diuturnamente sua manifestação de amor à pessoa destinatária da sua paixão.
Geralmente, o fato ocorre nos casos em que a mulher, por alguma razão, deseja encerrar o relacionamento com o namorado, esposo ou companheiro (embriaguez habitual, adultério, vadiagem, maus costumes pessoais, maus tratos, prática de infração penal, etc.).
Características
A infração penal apresenta determinadas características:
1ª.) invasão da esfera de intimidade e privacidade da vítima;
2ª.) repetição de atos;
3ª.) dano à integridade psicológica e emocional do sujeito passivo;
4ª.) lesão à sua reputação;
5ª.) alteração do seu modo de vida; e
6ª.) causação de restrição à sua liberdade de locomoção.
Conduta delituosa
O "stalking é uma forma de violência onde o sujeito ativo invade a esfera de privacidade do sujeito passivo, repetindo incessantemente a mesma ação por maneiras e atos variados, empregando meios e táticas diversas: telefonemas em seu aparelho celular, residencial ou de ocupação, mensagens amorosas, telegramas, ramalhetes de flores, presentes não solicitados, assinaturas de revistas indesejáveis, mensagens em faixas amarradas, pregadas ou fixadas nas proximidades da residência da vítima, permanência na saída da sua escola ou trabalho, espera da sua passagem em determinado lugar, freqüência constante no mesmo local de laser, supermercados, lojas etc.
Na "espera pela passagem da vítima", o autor, geralmente, como se fosse um espectro, permanece de pé nas esquinas. Não se manifesta. De ver-se, porém, que a sua simples visão pela vítima, dias e horas seguidos, perturbam-na. Conheço um caso em que o patrão da perseguida, todos os dias, de veículo, a transportava ao trabalho. Em face da perseguição (espera de sua passagem), teve que mudar de etinerário. Sentia-se perturbado e ameaçado. Soube que o infrator assim agia na esperança de que o patrão, incomodado com o fato, a despedisse.
Às vezes, o "stalker" espalha boatos sobre a conduta profissional ou moral da vítima, divulga que é portadora de um mal grave, que foi demitida do emprego, que fugiu, que está vendendo sua residência, que perdeu dinheiro no jogo, que está sendo procurada pela polícia etc. Com isso, vai ganhando poder psicológico sobre o perseguido, como se fosse o controlador geral dos seus movimentos.
Não raro, o autor da perseguição:
2. tenta visitá-la;
3. pede a terceiros que a convençam a reatar o relacionamento, solicitação a intervenção de amigos de ambos ou seus parentes; sacerdotes e pastores (invocando o amor ao próximo).
Há uma fase em que o perseguidor finge ser vítima da situação: perante a perseguida, chora de joelhos, pede perdão e promete não mais dar motivos para a separação. Não muito raro, emagrece de propósito para comovê-la. Aos amigos dele e dela, procura convencê-los de que a perseguida é a culpada de tudo. Forma-se, no meio social em que vivem, a consideração de que ela é a pessoa ruim, que poderia, com um simples "sim", fazer com que as partes retornassem a uma vida pacífica.
Não obtendo sucesso com as condutas anteriores, muitas vezes o "stalker" finge estar doente e procura atendimento médico, chegando até a internar-se em hospital. Conheci uma história real em que o perseguidor começou a faltar ao trabalho, mandando recado à vítima segundo o qual, negando-se à continuação do relacionamento, ela seria o causador de sua despedida.
O caso pode alcançar a fase da violência física. Muitos dos homicídios chamados "passionais" têm origem no "stalking".
O perseguidor é incansável, procurando vencer a vítima pelo cansaço. Quando, pela primeira vez publiquei um trabalho sobre o assunto, recebi carta de uma senhora informando que estava sendo perseguida há 16 anos.
Temor da vítima
Na maioria dos casos, o sujeito passivo silencia sobre o que está lhe ocorrendo por temor do conhecimento das pessoas e represália. Em cidades pequenas, por exemplo, a vítima tem medo de que o fato seja de ciência geral, lesando sua reputação.
Fenômeno mundial
Estima-se que nos Estados Unidos, cerca de 1 milhão de mulheres e 400.000 homens foram vítimas de "stalking" em 2002; na Inglaterra, a cada ano, 600.000 homens e 250.00 mulheres são perseguidos. Em Viena, desde 1996, existem informes da ocorrência de 40.000 casos; em 2004, num grupo de 1.000 mulheres entrevistadas pelo telefone, pelo menos uma em quatro foi molestada dessa forma.
No 15º Período de Sessões da Comissão de Prevenção ao Crime e Justiça Penal, realizado em Viena (Áustria), de 24 a 28 de abril de 2006 e promovido pelo Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC), questões de relevância foram debatidas, como terrorismo, tráfico de drogas e de seres humanos, corrupção, lavagem de dinheiro, justiça criminal e cooperação internacional. Um dos temas que nos chamou a atenção foi o referente ao "stalking", fenômeno existente em todos os países, incluído na agenda de projetos do UNODC na proteção da mulher contra a violência. A ONU tem recomendado aos Estados-membros a edição de normas civis e penais que impeçam e reprimam essa prática indesejada.
Na Áustria, há lei específica sobre o "stalking", disciplinando o fato nos aspectos civis e penais. No Brasil, a Lei Maria da Penha não cuida especificamente do tema, embora muitas de suas disposições sejam aplicadas a mulher perseguida.
Fracasso dos meios de coibição, interrupção e prevenção
É muito difícil prevenir e interromper a ação do "stalker". Rara é a oportunidade de repressão, uma vez que as investigações policiais quase sempre terminam em insucesso. Medidas como troca ou ocultação do número do telefone, mudança de identidade, de residência e de cidade, contratação de detetive particular etc. não têm dado bons resultados, tendo em vista que os "stalkers", muito espertos, em pouco tempo descobrem o novo número, a nova residência, identidade etc.
O "stalking" na legislação penal brasileira
O "stalking", no Brasil, configura a contravenção penal de "perturbação da tranqüilidade", com a seguinte descrição:
"Art. 65. Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranqüilidade, por acinte ou por motivo reprovável:
Pena - prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou multa," (Lei das Contravenções Penais).
A Primeira Turma Recursal dos Juizados Especiais Criminais do Distrito Federal julgou um caso em que o autor, deixando repetidos recados fonados na secretária eletrônica da vítima, contendo ameaças e impropérios, perturbando-lhe assim a tranqüilidade, causou-lhe dano ao estado emocional, cometendo a contravenção (Apel. Crim. 20000110249925, j. 3.10.2000, rel. Juiz João Timóteo de Oliveira, DJU, 21.11.2000, seção 3, p. 39).
Iniciativas da vítima em face do fato
Deve procurar a Delegacia da Mulher, havendo. Não existindo, convém acionar o Promotor de Justiça da sua cidade, narrando-lhe a ocorrência e lhe solicitando providências de ordem civil e (ou) criminal. Se ele, em face de estrutura funcional do Ministério Público, não tiver atribuição para o caso, ela será encaminhada à autoridade competente.
Sugestão
O "stalking", entre nós uma singela contravenção apenada com prisão simples ou multa, constitui fato mais grave do que muitos crimes, como a ameaça e a injúria. É certo que em muitas hipóteses esses delitos integram a ação global da perseguição, pelo que o sujeito não deixa de responder por eles em concurso (Código Penal, arts. 69 a 71). De ver-se, entretanto, que, apreciado o "stalking" como fato principal almejado pelo autor, ele é de maior seriedade do que os próprios delitos parcelares.
Não devia, pois, inserir-se em infração de comportamento genérico, como hoje acontece. Por isso, a conduta merece mais atenção e consideração do legislador brasileiro, transformando-se o fato em crime específico (infração autônoma).
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