A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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28 de junho de 2009

Corrupção cultural ou organizada?


Ficamos muito atentos, nos últimos anos, a um tipo de corrupção que é muito frequente em nossa sociedade: o pequeno ato, que muitos praticam, de pedir um favor, corromper um guarda ou, mesmo, violar a lei e o bem comum para obter uma vantagem pessoal. Foi e é importante prestar atenção a essa responsabilidade que temos, quase todos, pela corrupção política -por sinal, praticada por gente eleita por nós.

Esclareço que, por corrupção, não entendo sua definição legal, mas ética. Corrupção é o que existe de mais antirrepublicano, isto é, mais contrário ao bem comum e à coisa pública. Por isso, pertence à mesma família que trafegar pelo acostamento, furar a fila, passar na frente dos outros. Às vezes é proibida por lei, outras, não.

Mas, aqui, o que conta é seu lado ético, não legal. Deputados brasileiros e britânicos fizeram despesas legais, mas não éticas. É desse universo que trato. O problema é que a corrupção "cultural", pequena, disseminada -que mencionei acima- não é a única que existe. Aliás, sua existência nos poderes públicos tem sido devassada por inúmeras iniciativas da sociedade, do Ministério Público, da Controladoria Geral da União (órgão do Executivo) e do Tribunal de Contas da União (que serve ao Legislativo).

Chamei-a de "corrupção cultural" pois expressa uma cultura forte em nosso país, que é a busca do privilégio pessoal somada a uma relação com o outro permeada pelo favor. É, sim, antirrepublicana. Dissolve ou impede a criação de laços importantes. Mas não faz sistema, não faz estrutura.

Porque há outra corrupção que, essa, sim, organiza-se sob a forma de complô para pilhar os cofres públicos -e mal deixa rastros. A corrupção "cultural" é visível para qualquer um. Suas pegadas são evidentes. Bastou colocar as contas do governo na internet para saltarem aos olhos vários gastos indevidos, os quais a mídia apontou no ano passado.

Mas nem a tapioca de R$ 8 de um ministro nem o apartamento de um reitor -gastos não republicanos- montam um complô. Não fazem parte de um sistema que vise a desviar vultosas somas dos cofres públicos. Quem desvia essas grandes somas não aparece, a não ser depois de investigações demoradas, que requerem talentos bem aprimorados -da polícia, de auditores de crimes financeiros ou mesmo de jornalistas muito especializados.

O problema é que, ao darmos tanta atenção ao que é fácil de enxergar (a corrupção "cultural"), acabamos esquecendo a enorme dimensão da corrupção estrutural, estruturada ou, como eu a chamaria, organizada.

Ora, podemos ter certeza de uma coisa: um grande corrupto não usa cartão corporativo nem gasta dinheiro da Câmara com a faxineira. Para que vai se expor com migalhas? Ele ataca somas enormes. E só pode ser pego com dificuldade.

Se lembrarmos que Al Capone acabou na cadeia por ter fraudado o Imposto de Renda, crime bem menor do que as chacinas que promoveu, é de imaginar que um megacorrupto tome cuidado com suas contas, com os detalhes que possam levá-lo à cadeia -e trate de esconder bem os caminhos que levam a seus negócios.

Penso que devemos combater os dois tipos de corrupção. A corrupção enquanto cultura nos desmoraliza como povo. Ela nos torna "blasé". Faz-nos perder o empenho em cultivar valores éticos. Porque a república é o regime por excelência da ética na política: aquele que educa as pessoas para que prefiram o bem geral à vantagem individual. Daí a importância dos exemplos, altamente pedagógicos.

Valorizar o laço social exige o fim da corrupção cultural, e isso só se consegue pela educação. Temos de fazer que as novas gerações sintam pela corrupção a mesma ojeriza que uma formação ética nos faz sentir pelo crime em geral.

Mas falar só na corrupção cultural acaba nos indignando com o pequeno criminoso e poupando o macrocorrupto. Mesmo uma sociedade como a norte-americana, em que corromper o fiscal da prefeitura é bem mais raro, teve há pouco um governo cujo vice-presidente favoreceu, antieticamente, uma empresa de suas relações na ocupação do Iraque.

A corrupção secreta e organizada não é privilégio de país pobre, "atrasado". Porém, se pensarmos que corrupção mata -porque desvia dinheiro de hospitais, de escolas, da segurança-, então a mais homicida é a corrupção estruturada. Precisamos evitar que a necessária indignação com as microcorrupções "culturais" nos leve a ignorar a grande corrupção. É mais difícil de descobrir. Mas é ela que mata mais gente.

Por RENATO JANINE RIBEIRO, professor titular de ética e filosofia política do Departamento de Filosofia da USP.

Fonte: Jornal "A Folha de S. Paulo" de 28.06.09.

Um comentário:

Cartas de Política disse...

Renato Janine Ribeiro é um acadêmico que tem esse mérito. Escreve de forma fácil e acessível para que o maior público possível alcance sua mensagem.

Como professor da Universidade de São Paulo ou a famosa USP, vive grande parte do seu tempo dentro dos muros que cercam essa universidade.

Sua denúncia contra a corrupção encontra sem dúvida muitos leitores fora desses muros, porém, é triste mas necessário dizer, o professor Renato Janine Ribeiro, em que pesem seus méritos, também está enfiado dentro dessa estrutura. Longe de dizer que ele seja corrupto, pelo texto de sua própria denuncia, ele convive ao que podemos deduzir, sem muitos problemas com os que não só contribuem com o que ele descreve em seu artigo, como também com os que a organizam de forma indireta. E como acontece isso?

É amplamente noticiado na imprensa que o consumo de drogas pelos alunos da USP já atingiu níveis alarmantes, de certa forma tornando algumas partes dessa universidade numa espécie de Cracolândia diplomada ou em vias de conseguir o diploma. Quem não conhece ou ainda não ouviu falar da Cracolândia no centro da cidade de São Paulo, em que pese a falta de diploma de seus frequentadores?

Numa pesquisa feita em 2001, 2.564 alunos de 21 cursos da USP responderam a um questionário e concluiu-se que 20% deles fumava maconha, 10% cheirava cola de sapateiro e 3% usava cocaína ou crack.

No artigo não transparece nenhuma providência do professor em, por exemplo, segregar alunos usuários de drogas. O que existe de errado nisso? É direito de uma pessoa, de um professor mais ainda, recusar-se a ter contato em seu trabalho com viciados, que em última análise, como descrito no artigo do professor, são colaboradores costumeiros de uma rede de corrupção gigantesca, que provoca mortes e destruição, tanto quanto a corrupção política.

Mas parece nada haver nesse sentido por parte do professor ou talvez ele trate disso em outro artigo. Se é para ser intolerante com a corrupção, para dar um basta nela, para chamar as forças da sociedade contra ela, para mostrar sua indignação com esse estado de coisas, está aí, dentro dos muros da USP e bem perto do professor, um dos melhores motivos para ele desfraldar essa bandeira e lutar contra a corrupção, que em suas variadas formas assumiu essa dentro da USP.

A pesquisa que foi feita é de 2001, mas pelos noticiários de hoje sobre a USP parece que nada mudou, até piorou, haja visto que em 2008 criaram até programas de enfrentamento do uso problemático de drogas na USP. Ressalto a palavra "problemático". Ficamos com a sensação de que se o usuário da USP consumir sua droga sem problemas, então tudo bem, estarão todos felizes.

Parece de forma inequívoca, que mesmo as melhores mentes políticas desse país, ver-se-ão confrontadas com a necessidade de escolhas difíceis e de atitudes duras contra o que é chamado de corrupção e acima de tudo em nome da ética, se ela realmente tiver um valor que vá além da indignação literata.

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Paradigma

O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)