Sustentou-se, em artigo publicado no Boletim nº 197 do IBCCRIM, a ilegitimidade do Ministério Público para mover ação penal em crimes sexuais em que a ofendida é pobre (segundo a articulista, a advogada Carla Rahal Benedetti, a legitimação processual, na hipótese positivada no artigo 225, § 1º, I, do CPB, seria da Defensoria Pública). Por outros motivos, persiste boa parte da doutrina em validar a exclusividade da iniciativa, para mover a actio penalis, da vítima com recursos financeiros suficientes para custear a demanda, quando não resulta, do estupro ou atentado violento ao pudor, lesões graves ou morte (artigo 225, caput, do CPB).
Não pretendo rebater argumentos históricos utilizados para justificar opções de política criminal que, na sociedade do Século XXI, precisariam ser revistos, e muito menos confrontar posições institucionais que podem assumir um indesejado viés corporativista. Interessa-me afirmar que, por três bons motivos, não mais se sustenta, sob a ordem constitucional vigente e no âmbito de uma sociedade que se queira reger, em suas relações punitivas, por códigos normativos modernos, a regra que ainda permite, a depender da interpretação que se queira dar — fruto de uma eleição prática a respeito de hipóteses interpretativas alternativas, como diria Ferrajoli —, que a persecução penal e a punição de autores de crimes tão graves seja uma escolha da vítima (por razões de conveniência, como reconhecido no aludido texto) e não do Estado. Senão vejamos:
1. A punição do autor da infração não pode depender da condição financeira da vítima.
Com efeito, a punição de crimes tão graves como os que se praticam contra a liberdade sexual não pode ser decidida por aspectos meramente econômicos.
A tendência do processo penal moderno é caminhar para a delegação ao Ministério Público da tarefa de exercer a ação penal condenatória, transigindo-se apenas com a possibilidade de, em casos excepcionais, conferir-se ao particular o poder de provocar a persecução penal, por meio de algo similar à nossa representação.
Nessa direção, o mestre lusitano Figueiredo Dias(1) assinala que, “considerando-se o direito penal como direito de ‘proteção’ dos bens fundamentais da comunidade e o processo penal como um ‘assunto da comunidade jurídica’, em nome e no interesse da qual se tem de esclarecer o crime e perseguir e punir o criminoso, torna-se de imediato compreensível que a generalidade das legislações actuais, e entre elas a nossa, vote no sentido de reputar a promoção processual das infrações tarefa estadual, a realizar oficiosamente, portanto, em completa independência da vontade e da actuação de quaisquer particulares.”
Em abono a esse pensamento, Velez Mariconde, após acentuar que a participação dos cidadãos no exercício da ação penal decorre do fato de que todos são afetados pelo fato criminoso, pondera que, em uma sociedade organizada sob um Estado republicano, “el delito reclama la intervención directa e inmediata del Estado, o sea, de la sociedad como entidad jurídica, no sólo para su juzgamiento sino también para preparar, promover y demandar el ejercicio de la jurisdicción de la ley”(2).
A opção legislativa de dar ao particular a opção de punir ou não autores de condutas criminosas — por razões de política criminal, centradas, basicamente, na menor gravidade de certas infrações penais, ou mesmo no interesse de proteção da intimidade de quem é mais diretamente atingido pelo delito — tem merecido consistentes críticas por considerável segmento doutrinário.
Assim, Afrânio Jardim(3) assevera que a manutenção da ação penal de iniciativa privada “é fruto de uma visão privatística do Direito e Processo Penal”, no que é acompanhado por Tourinho Filho(4), que propõe seja a ação penal privada reservada a “umas pouquíssimas infrações, como ocorre no Direito argentino ou no Direito alemão...”
Quase todas as hipóteses em que se previu, em nosso sistema punitivo, a ação penal de iniciativa do particular ofendido são referentes a crimes de menor gravidade, geralmente punidos com pena não superior a dois anos de detenção. Não é o caso dos crimes graves de que estamos a falar.
De outro ângulo, dispensa comprovação afirmar que os quase 70 (setenta) anos a nos separar da sociedade de 1940 impõem uma releitura das normas do Código Penal, elaborado tendo como pano de fundo uma série de valores, posturas e costumes sociais compatíveis com aqueles tempos, mas totalmente desajustados com as práticas sociais do Século XXI.
Parece insustentável que, sob a égide de um Estado Democrático de Direito, estruturado de forma republicana, a ação penal, que sempre é essencialmente pública, exercida com exclusividade pelo Ministério Público (art. 129, inciso I, da CF), a quem toca a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput) seja transferida, sob a roupagem de ação penal privada, ao particular ofendido pelo crime, como condição sine qua non para o exercício da jurisdição penal e punição do culpado, mediante o devido processo legal.
Saliente-se que a Constituição Federal deixou clara a opção pela persecução penal pública, prevendo unicamente a ação penal privada em caráter subsidiário daquela, o que denota bem cuidar-se de verdadeira garantia ao jurisdicionado — tanto que prevista no capítulo dos direitos, no art. 5º, inciso LIX, da CF — nas hipóteses de omissão ou desídia do Ministério Público. É bom que se diga que a ação penal privada, propriamente dita, não foi contemplada na Constituição Federal, embora continue a ser exercitada tendo como lastro normas legais, a maioria constante do Código Penal.
Não se mostra sustentável pelo Direito, ou mesmo pelas regras da boa razão, impor ao particular exercer uma ação penal — que demanda, além dos seus naturais custos financeiros, o custo moral de movimentar, provavelmente durante anos, a máquina judiciária — apenas porque se trata de pessoa com recursos financeiros, como se o Estado fosse obrigado a prestar jurisdição penal somente para os pobres. É como se o Estado dissesse ao jurisdicionado: “Se você é rico, deve arcar com os ônus financeiros e morais de um processo criminal contra o autor do estupro, mas, se for juridicamente pobre, o Estado o desobriga de tal ônus.”
2. Se o crime é considerado pela Constituição da República como hediondo, não pode depender de ação da vítima.
Deveras, mostra-se paradoxal a previsão de ação penal privada para processar e julgar pessoa acusada de crime considerado hediondo.
A Constituição Federal deixou clara a sua opção por conferir um rigor muito maior para o tratamento jurídico-penal dos crimes hediondos, prevendo, inclusive, a inafiançabilidade dessas infrações. A seu turno, a Lei nº 8.072/90 robusteceu esse rigor penal e processual penal, estabelecendo regras que tornam inequívoca a ideia de que esses crimes devem merecer atenção prioritária do Poder Público para a sua repressão.
Ora, sendo certo que um dos crimes elencados na referida lei é precisamente o de estupro, como entender que a punição de delito considerado hediondo dependerá não apenas da vontade e capacidade financeira da própria vítima ou de seu representante legal, mas, também, de sua capacidade técnica e profissional de levar a cabo, com todos os seus ônus, uma ação penal contra o acusado?
3. Uma criança vitimada por crime de natureza sexual merece proteção incondicionada do Estado.
A incongruência de prever-se o condicionamento, ou a transferência ao particular, da ação penal por crime de estupro ou de atentado violento ao pudor é ainda mais palpitante quando a vítima dessa nefasta conduta humana é criança, incapaz, portanto, de defender-se não somente contra as investidas criminosas de que foi alvo, mas, também, de decidir, por si mesma, se deve ou não levar a julgamento o responsável por tais atos criminosos.
Além do aspecto financeiro já analisado, a condição da pessoa vitimada pelo crime não pode ser descurada ou, o que é pior, ensejar interpretação que, em última análise, transfere ao pai ou à mãe o encargo de prolongar e alargar o sofrimento familiar, propondo, por meio de advogado, uma custosa e demorada ação penal, quando existe um órgão estatal adrede criado para tal finalidade.
Releva observar que a criança, rica ou pobre, tem merecido especial proteção do Estado brasileiro, máxime a partir da nova ordem constitucional. Não é sem motivo que o art. 227, da Constituição Federal, estabelece como dever não só da família e da sociedade, mas do Estado, “assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-la a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, por sua vez, a par de reforçar a mencionada norma constitucional, previu, em seu art. 98, várias medidas de proteção à criança e ao adolescente, aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos a elas forem ameaçados ou violados.
Se a proteção da criança e a preservação de sua dignidade são metas prioritárias do Estado brasileiro, inclusive diante da eventual negligência da família (a quem cabe, em primeiro lugar, o dever de proteção), não se mostra ajustada ao novo paradigma constitucional qualquer norma que dificulte ou mesmo impeça essa proteção.
Na acurada lição de Ingo Sarlet(5), “não restam dúvidas de que toda a atividade estatal e todos os órgãos públicos se encontram vinculados pelo princípio da dignidade da pessoa humana, impondo-lhes, neste sentido, um dever de respeito e proteção, que se exprime tanto na obrigação por parte do Estado de abster-se de ingerências na esfera individual que sejam contrárias à dignidade pessoal, quanto no dever de protegê-la contra agressões por parte de terceiros, seja qual for sua procedência”.
Em suma, a ação penal para verificar a existência de um gravíssimo crime cometido — sobretudo se a vítima for uma criança — e eventualmente punir o seu autor, deve tocar ao Estado, estruturado e capacitado para, com o concurso do órgão adrede concebido para exercer tal Ministério Público, não permitir que opções familiares, ou questões patrimoniais ou econômicas, decidam a sorte de quem infringe a lei penal e viola a integridade física e psíquica e a liberdade sexual de outrem.
Notas
(1) JORGE DE FIGUEIREDO DIAS. Direito Processual Penal. Coimbra: 1984, p. 116.
(2) A.VELEZ MARICONDE. Derecho Procesal Penal. Tomo I. Buenos Aires: Lerner, 1968, p. 284.
(3) AFRÂNIO SILVA JARDIM. Direito Processual Penal. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 128.
(4) FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO. Processo Penal, v. 1.13ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 373.
(5) INGO WOLFGANG SARLET. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 112.
Fonte: Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 17, n. 198, p. 4-5, maio 2009.
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