A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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9 de janeiro de 2009

Homicida Passional


Raios não caiem duas vezes no mesmo lugar. Às vezes. Na minha casa caíram, e assim convivi com dois homicídios, no período de minha infância, o de meu pai e de minha tia sua irmã, que, por ironia, também matou o parceiro. Tenho, portanto, intimidade com o assunto. Mais do que isso, conheço-o profundamente, já que tive de compreendê-lo para sobreviver. Nada alivia tanto quanto o entendimento minucioso dos fatos que levaram a uma dor – como em tudo, só o conhecimento traz a cura. Cheguei ao requinte de compreender melhor os crimes a minha volta do que fizeram as pessoas que os praticaram. O assassino passional não sabe por que matou, e é um erro recorrente nos tribunais querer arrancar motivos de seus réus. Eles não os têm. Destroem o núcleo de suas vidas, o grande amor e a razão de tudo, e depois choram em cima de seus cadáveres por pena de si e pela falta do objeto amado. É um processo irracional. É também autodestrutivo. Tanto assim que, via de regra, esse homicida não foge do local de seu crime, mas fica ali, não tendo mais a perder, para ser preso em flagrante. A criatura que mata por amor é alguém cuja necessidade de paixão chegou a níveis obsessivos. Ali, há um apaixonado, ávido de afeto e incapaz de renúncia. A pessoa pensa sem parar numa única coisa, na impossibilidade de ter o outro como ele precisa que o outro seja, na traição, ou em sua eventualidade. Fantasias obscuras lhe entorpem a cabeça, e não há ser sobre a terra que consiga viver com uma só idéia a lhe atazanar dia e noite, na rua, no trabalho, por toda parte, a toda hora. A tormenta chega a um ponto de ruptura, que, dali, um mínimo detalhe leva a matar.

Além do mais, há pessoas que só sabem amar na tensão, vivem às turras e assim se realizam. O sentimento tranqüilo e pacífico, que para tantos é a forma ideal, para eles nada significa – o amor tem faces múltiplas, e há aspectos que vêm com a violência embutida. Nesses casos os homens tendem a ser mais agressivos. Eles batem, espancam e se portam de forma primária. A mulher, mais sutil, observa, e, intuitiva, aprende por onde atacar. Ela finge que trai, provoca, pede dinheiro que ele não tem para dar, fere-lhe o orgulho e vai levando o parceiro à exasperação. Aí ele bate, machuca e por aí vão anos de amor e dor. Até que um dia…

Qual o ser vivo, por mais bondoso, que já não pensou na morte de uns vinte? As crianças pensam. Todos nós pensamos. No trânsito, no trabalho, nas discussões com o parceiro. O homicida ocasional não é um homem ruim, mas alguém que viveu um tumulto interior gigantesco e por ali desviou de si. Ele pode ser bom sujeito, honesto, trabalhador, pai carinhoso. Não voltará a matar, e representa muito pouco perigo para a sociedade. Deve ser punido porque em seu desvario amputou a vida de alguém e espalhou sofrimento a sua volta, mas deve também, e pode, ser compreendido. É estranhíssimo, e dificulta a compreensão saber que essa criatura não sente remorsos. A idéia de que o assassino vive numa tortura interna que lhe devora o espírito é equivocada. Em seu mundo subjetivo ele (ou ela) tinha razões para fazer o que fez. Você, com sua ética, não consegue perdoá-lo, mas o homicida não vive sequer a questão do perdão. A coisa está feita, e os limites que rompeu ao praticá-la estavam amarrados na mesma praia onde ele hoje reencontra as justificativas que lhe permitem seguir vivendo. O que outrora serviu de motivação emocional para matar, hoje é um raciocínio lógico de seu universo íntimo. Então, se essa pessoa não assassinou por motivo fútil, ela merece ser vista à clareza das imparcialidades. Por ter refletido sobre isso a vida inteira, aprendi que para se julgar um gesto apaixonado é preciso muito desapego. E que há de se ter compaixão, pois com ela não só esse crime mas qualquer transgressão humana pode ser compreendida. Não há nada mais primário e mesquinho do que enxergar os atos alheios pelo ângulo exclusivo da acusação. Não se deve pensar, aquele fez mal à minha filha. Pense antes, minha filha fez mal a alguém.

Por Maitê Proença - PROENÇA, Maitê. Uma vida inventada. Rio de Janeiro: Agir, pp. 63/65.

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Paradigma

O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)