A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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29 de outubro de 2008

Falou e disse...


A subversão dos princípios constitucionais e a impunidade crônica

“Nunca antes neste país” foi tão necessária uma integral revolução na maneira de se fazer o Direito. Digo isto, não somente como professor de Direito, como estudioso, como teórico da ciência jurídica, mas, principalmente, como cidadão.

Como teórico e estudioso da ciência jurídica concluo pela necessidade de reformulação imediata de alguns postulados jurídicos, por constatar a cada dia, o total descompasso entre algumas teorias e postulados que aprendi, ainda nas cadeiras da Faculdade Nacional de Direito do Largo do CACO, e a necessidade premente da sociedade moderna da efetiva concretização de um valor que parece esquecido nos tempos recentes: A Justiça! Como Professor de Direito, chego à mesma conclusão, simplesmente, por não ser mais capaz de explicar satisfatoriamente aos meus alunos, as razões jurídicas que permeiam flagrantes antijuridicidades, cotidianamente noticiadas e, muitas delas, vividas por eles, sem ter que recorrer ao famoso adágio: “O Direito não trata do que é, e sim do que deve ser...”.

Mas é principalmente como cidadão, nascido antes, mas educado após o Golpe de 1964, e formado em Direito após a edição da Carta de 1988, que me espanto ao ver estampado em todos, repita-se, todos os meios de comunicação atuais, verdadeiras atrocidades “jurídicas”.

O que há de errado com o Direito? Por quê me sinto tão descontente e, às vezes, envergonhado com a maneira pela qual se vem aplicando as normas jurídicas? Estará o Direito em crise? Já não nos bastam a crise econômica, a crise ética, a crise política, a crise social e tantas outras pelas quais passa a sociedade brasileira?

Será mesmo que o Direito estará em crise, ou a crise se restringe apenas na maneira pela qual vimos aplicando as normas jurídicas?

A constante mutabilidade e dinâmica social torna absolutamente necessária uma incessante e intensa compatibilidade entre o Direito e a Sociedade. O instrumento por definição do Direito – a Lei - deve espelhar o momento vivido pela sociedade, os fatos sociais e realidades palpáveis sob os quais se erige e se sedimentam as realidades sociais, sob pena de vivenciarmos o dito por Ripert “Quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o direito”.

Orlando Gomes nos falou da denominada “revolta dos fatos contra os códigos” que seria uma das causas da crise do direito. Nas palavras do saudoso mestre, “o direito conserva-se ausente para milhões de seres, enquanto abarrota de preceitos que interessam raras vezes, as meias dúzias de afortunados. Os exemplos pululam. Todos os autênticos juristas os conhecem. É a vida que foge dos Códigos”.

Vários fatos recentes levaram-me às dúvidas e anseios acima descritos. De todos, no entanto, dois me afetaram profundamente: Um foi a infeliz decisão do Tribunal Superior Eleitoral que reconheceu o “direito” de cidadãos notoriamente desprovidos de idoneidade moral de candidatarem-se nas próximas eleições; o outro foi a decisão da Presidência do Supremo Tribunal Federal, que em questão de horas, colocou em liberdade indivíduos que há anos freqüentam assiduamente os noticiários econômico-político-policiais.

O que ambos esses fatos têm em comum? Ambos demonstram, pelo menos sob meu ponto de vista, a subversão de vários princípios constitucionais e normas legais.

O que ambos podem provocar? Podem continuar alimentando essa mesma subversão, num processo desastroso que pode contribuir para acentuar a crise do Direito no Brasil. No entanto, o que me acalentou ao esboçar as primeiras linhas deste artigo, foi a percepção de que, na verdade, não estejamos diante de uma verdadeira crise do direito, mas apenas, diante de uma crise nas técnicas de interpretação dos princípios e normas jurídicas. Digo isto, porque ainda quero continuar a acreditar, na competência, lisura, independência e boa-fé dos operadores do Direito.

Friedrich Wilhelm Nietzche nos dá notícia de que "não há fatos eternos, como não há verdades absolutas". Talvez seja hora, de atualizarmos a maneira de interpretarmos determinados princípios constitucionais, adequando-os à realidade atual e inflando-os de vida, retirando-os do embalsamento histórico que os circundam e trazendo-os para os dias de hoje.

Não quero dizer com isso, que devamos simplesmente “revogar” determinados princípios que foram esculpidos após anos de luta, de revoltas, de guerras, de conquistas heróicas da civilização ocidental. O que proponho é que se perceba, que muitos dos pressupostos históricos que fundamentaram o aparecimento de diversos princípios agasalhados pela nossa Constituição, não se encontram mais presentes. E, em que pese tais princípios sejam, por definição, elementares e universais, sua historicidade nos obriga a adequá-los à realidade deste século.

Não podemos esquecer que se não fizermos a releitura de tais princípios, logo haverão vozes que os questionarão, e o anseio popular por justiça pode escapar aos contornos do Estado de Direito, pois o atual Estado de Direito se mostra, da maneira em que está, absolutamente incapaz de corresponder às expectativas da sociedade, e todos nós sabemos qual será o final dessa estória já vivida tantas vezes neste planeta...

Poderíamos começar defendendo a tese de que toda a interpretação que resulte numa subversão ao conteúdo axiológico do Direito, aos primados mais valiosos da Constituição e à realidade social atual deve ser imediatamente rechaçada.

Toda a interpretação que transforme o Direito em escudo à impunidade, afastando através de artimanhas a aplicação da sanção jurídica deve ser imediatamente rechaçada. Afinal se a sanção é a característica elementar da norma jurídica, se usamos a norma para nos esquivar da aplicação dessa sanção, estaremos subvertendo a própria razão de ser da norma. Mesmo os sabidamente culpados têm direito de defesa, mas o direito de defesa constitucionalmente assegurado não os pode transformar em inocentes, desde que sabidamente culpados.

O princípio constitucional mais importante, o núcleo de todo o arcabouço constitucional é a dignidade da pessoa humana. No entanto, para que a pessoa humana tenha sua dignidade respeitada, é imperioso que ela esteja viva! É imperioso que aqueles que atentam contra a vida das pessoas sejam imediata e instantaneamente afastados de seus instrumentos de subversão. Utilizo o vocábulo “vida” não somente em sua acepção de existência biológica, mas sim em toda sua inteireza e com a maior amplitude possível. Nos dois casos que citei acima, percebo nitidamente, a necessidade de se afastar os personagens neles envolvidos, imediatamente, dos instrumentos de subversão que eles utilizam, como a prerrogativa de foro e o duplo grau de jurisdição como certeza da impunidade; o poder econômico como forma de corromper e corroer as estruturas jurídico-políticas do Estado; o devido processo legal, como forma de eximir-se da sanção jurídica etc.

O Princípio da Presunção de Inocência, arduamente conquistado pelos que se insurgiram contra a tirania, contra o arbítrio e contra a prepotência absolutista, é manifestação do núcleo constitucional da dignidade da pessoa humana. Protege o indivíduo em face do poder estatal, dando-lhe meios de se insurgir contra falsas e tênues acusações, exigindo, via de conseqüência, o trânsito em julgado de uma decisão judicial proferida por juiz imparcial e pré-existente, num processo idôneo e formal para que possa, então, ter sua liberdade cerceada, a mesma liberdade que se revela uma outra manifestação do mesmo principio da dignidade.

Todavia, trata-se de um direito individual que não pode ser utilizado para subverter a dignidade da pessoa humana. Mas dignidade de quais pessoas? Ora, todas as outras integrantes da sociedade. O princípio da presunção de inocência deveria incutir no indivíduo a certeza de que não será condenado sem provas, e que cabe ao Estado prover este arcabouço probatório, no entanto, o que vemos, em alguns estratos da sociedade brasileira, é que o princípio serve-se de escudo contra a própria má-fé de meliantes privilegiados, que correm para declararem-se perseguidos e levianamente acusados, e que não se lhes garantiu a presunção de inocência, e que foram expostos à execração pública, no entanto, delinqüem reiterada vezes e atentam contra os mais caros valores da Constituição, esquecendo-se que a mesma constituição que lhes brinda com a proteção da inocência presumida e do devido processo legal, também lhes ordena serem honestos, probos e retos.

Não se trata aqui de relativismos, mas sim de se perceber que em determinados momentos, infere-se claramente que o princípio está sendo utilizado em flagrante contraste com os valores que o fundamentam.

No primeiro caso citado, a decisão do TSE, o princípio foi utilizado fora de sua seara natural, pois ali não se tratava de persecução penal, e sim, do exercício dos direitos políticos passivos. Ora, tais direitos, em que pese serem tratados no Título Constitucional relativo aos Direitos Fundamentais, não se confundem com os direitos individuais, já que estes se referem ao indivíduo enquanto tal, sem qualquer vinculação ou qualquer outro adjetivo, ou qualquer outra circunstância, enquanto aqueles se referem ao indivíduo enquanto ser político, enquanto servidor da polis, e, portanto, refere-se a um adjetivo, uma qualificação, e esta qualificação é a idoneidade para ocupar o cargo público. Não se nega a ninguém e em nenhuma circunstância o exercício dos direitos individuais com os contornos que lhes dá a Constituição, mas pode se negar o pleno exercício dos direitos políticos àqueles que se mostram desprovidos de condições morais de assumir o papel de legislador na polis. Não é por outra razão que a própria Constituição em dispositivo de clareza solar, exige, no que se refere à perda ou suspensão dos direitos políticos a condenação transitada em julgado, quando se tratar da prática de crime, mas não faz tal exigência ao referir-se a improbidade administrativa.

E qual a razão de ser dessa diferenciação senão a gradação valorativa que a Carta concedeu, em sede de direitos políticos, ao Princípio da Moralidade e da Probidade.

Portanto, ao se interpretar norma da Carta valorando um de seus princípios em flagrante detrimento do outro que lhe está associado, incorreu-se em um erro de exegese.

Também não me convence o argumento de que a lei complementar 64/90 não faz alusão à idoneidade pregressa dos candidatos, pois não se interpreta a Constituição à luz da lei, e sim o contrário, e se a lei discrepa da Constituição, estará eivada do vício de inconstitucionalidade. Como também não me seduz o argumento da falta de parâmetros objetivos para o indeferimento do registro da candidatura, pois para mim, tal parâmetro já consta do próprio texto do art. 15, qual seja, a improbidade administrativa, e, via de conseqüência, como a carta não exige neste caso o trânsito em julgado, basta para que se negue tal registro a condenação judicial ou pelos Tribunais de Contas do possível candidato, ainda que não definitiva. O sacrifício do direito individual de postular o cargo público, ainda que decidido em primeiro grau de jurisdição, justifica-se diante da possibilidade de investir-se um meliante com a Toga de Legislador.

Portanto, o que se percebe na decisão majoritária do TSE é justamente a subversão do princípio constitucional da presunção de inocência, na exata medida em que este é utilizado em descompasso com os demais valores constantes da Carta, favorecendo o direito de postulação ao cargo, em detrimento do interesse público primário de lisura e probidade relativo aos membros do Poder Legislativo.

Já no segundo caso citado, a libertação em tempo recorde de indivíduos acusados de um sem número de delitos demonstra também o mal que a exacerbação exegética de determinados princípios podem causar ao sistema jurídico, ao funcionamento do próprio Poder Judiciário e a toda a estrutura do próprio Estado de Direito.

O mesmo Estado de Direito que se caracteriza por possuir um arcabouço capaz de impedir a arbitrariedade dos governantes sobre os governados deve também tem que possuir instrumentos capazes de autoproteger-se, diante de flagrantes tentativas de subversão e espoliação do interesse público.

Esqueceram-se, alguns aplicadores e exegetas, que o Estado de Direito não é apenas ameaçado quando se “espetaculariza” determinadas detenções, mas também quando se presta a permitir a continuidade e a perpetuação da delinqüência. A banalização das detenções e os excessos devem ser coibidos, mas não se pode negar o simbolismo e o cunho pedagógico que determinadas “espetacularizações” produzem na sociedade: Recuperar a crença na Justiça estatal e fazem perceber que a Isonomia não é só para o igualmente pobre, igualmente negro e igualmente nordestino, também se aplica aos igualmente ricos, igualmente brancos e igualmente poderosos.

Percebe-se em algumas instâncias do Judiciário um demasiado apego a pequenas questões formais, um romantismo exagerado na interpretação de alguns princípios do Direito, em detrimento de uma maior efetividade do sistema judicial. Não estamos mais diante de uma cidadão honesto, detido por um Coronel do Exército, cujo único “crime” é ter em casa um exemplar de “O Capital”, estamos muitas vezes diante de indivíduos capazes de subverter as altas esferas governamentais, nacionais e internacionais, de colocar em risco a solidez do sistema financeiro, e de afetar a vida de milhões de pessoas com seus atos de delinqüência, e de locupletação do dinheiro público.

Todavia, uma análise pormenorizada deste episódio desafia tempo, espaço e aprofundamento técnico muito mais amplo do que disponho ao rascunhar estas breves linhas, mas me salta aos olhos, neste último episódio, a subversão do princípio do juiz natural, da boa-fé e da lealdade processual, da imparcialidade do julgador e tantos outros que desfrutam de assento constitucional tão digno quanto ao da presunção de inocência.

A decisão de determinar a prisão preventiva de um acusado só é tomada por qualquer juiz após criteriosa análise das provas sob as quais ele se debruça. Não creio que o magistrado federal envolvido no caso tenha tomado tão severa medida, sem estar convencido da necessidade da mesma, pois diante do poder econômico e político de que dispõem os personagens envolvidos todo cuidado é pouco.

O perigo para a ordem pública ou para o regular trâmite do processo acham-se patentemente presentes neste caso, como prova o próprio fato de que um de seus sujeitos, utilizando-se de excelente assessoria técnica acabou por desfrutar de foro privilegiado; por ter sido vítima de um relativo exagero em sua detenção, acabou por despertar certa ira na defesa de sua dignidade e de sua imagem, sem que ninguém se lembre de mencionar os exageros das falcatruas das quais são acusados. O perigo para a ordem pública se refere à possibilidade de repetição do delito, e no caso, a repetição do delito, ou pelo menos de alguns deles, é provável, considerando-se as circunstâncias.

O que vemos então na atualidade?

A subversão do processo eleitoral, a subversão do processo penal, a subversão do processo de execução e tantas outras... Protege-se o candidato, protege-se o acusado, protege-se o devedor. No fim, acaba-se por proteger a impunidade.

Mirabolantes interpretações da lei, descompassadas por ausente sua vinculação ao conteúdo axiológico do Direito são utilizadas na defesa de interesses que maculam o próprio ordenamento, infectando todo o sistema e retirando-lhe sua eficácia; um legalismo exagerado; um processo lento, arcaico e tecnicista; uma estrutura judiciária esdrúxula e ineficaz e operadores do direito mais preocupados com a forma do que com o conteúdo, fazendo morrer de inveja o mais parnasiano dos artistas, são estes os ingredientes desta crise do direito por qual passamos, e cujo final ainda se mostra longínquo.

Por Almir Morgado, Mestre em Direito/UERJ, Coordenador do Curso de Pós-graduação em Direito Público na UNEC/MG, Professor de Direito Administrativo na Pós-graduação da UVA, Professor de Direito Administrativo na Pós-graduação da UGF, Professor de Direito Administrativo da FABEC/RJ e Diretor-Geral do CE Nilo Peçanha da SEE/RJ.

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O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)