A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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15 de outubro de 2008

A empáfia do poder


Não há homem público. No entanto, é possível afirmar que o espaço funcional em que se instrumentaliza o exercício de uma profissão estatal é que detém uma natureza pública. Este espaço público, transitoriamente ocupado por qualquer que seja o “ente”, enfrenta, sem sombra de dúvida, o domínio da coisa e do interesse públicos, objetos inalienáveis. Neste Brasil onde predomina a ignorância periférica do nosso povo, campeia a desinformação do mais comezinho direito fundamental, beirando o absurdo de atingir os espaços públicos e seus “entes”.

É possível dizer, inequivocamente, que inexiste espaço privado para o exercício da segurança pública, função do Estado através de seus tentáculos. Em qualquer modelo democrático de direito, por mais perversa que seja sua realidade, a razão de Estado é aparelhada no complexo normativo editado pelo Direito, motivo pelo qual a omissão dos seus agentes cria ou gera obrigações. Assim também é no ramo jurídico-penal, mesmo que repressor por natureza. Portanto, a omissão estatal no campo punitivo do direito, oriunda da função pública, estabelece uma relação obrigacional, consoante dicção do artigo 13 § 2º, letra “a” do código penal brasileiro.

Mas a ignorância – ou, quiçá, a burrice – não os deixa ver; segrega-os, encastela o exercício do poder e determina o arbítrio. A concepção patrimonialista – ainda dominante – do poder público brasileiro, sustentáculo do sistema autoritário, alastra-se em todas as nossas esferas público/estatais impondo e/ou estabelecendo regras próprias que se autonomizam para elaborar um universo fechado e autofágico, numa espécie deturpada do modelo sistêmico formulado pelo sociólogo alemão Niklas Luhmann. As ações nesse universo são sintomáticas, porque meras representações da “autoridade”, símbolos que se afirmam com a perspectiva midiática do poder.

Não que sejam burros, apenas não pensam por si mesmos. Como afirma Hannah Arendt, quem não pensa por si mesmo abandona a si próprio; sendo assim, é incapaz de estabelecer modelos éticos gerais e, conseqüentemente, é incapaz de julgar. Seus julgamentos têm como norte uma legalidade desprovida de valores de referência, ou seja, uma legalidade vazia, direcionada unicamente ao poder. O indiferentismo moral é o maior adubo para os totalitarismos.

Uma frase atribuída a Rui Barbosa mostra uma reflexão acerca do domínio da burrice sobre a inteligência: “Há tantos burros mandando em homens de inteligência que às vezes fico pensando que a burrice é uma ciência”.

Um verdadeiro Estado holywoodiano, cada vez mais legitimado pelo medo, em que seus agentes se confundem com personagens inacabados de um roteiro que contém um único subtexto: demonstrar poder a qualquer custo! Bufões que vivem com seus textos decorados na ponta da língua sem em nenhum momento refletir sobre o que estão dizendo. Personagens que constroem suas máscaras a partir de discursos carcomidos de uma legalidade estrita irrefletida, de um Estado Leviatã que precisa, como um adolescente, se auto-afirmar constantemente por intermédio de seus agentes. Bufões que vivem no mundo das leis, ignorando a existência dos homens.

Portanto, temos que ver com olhos críticos as bandeiras demagógicas do “bem” – os discursos dos protetores da sociedade. Um espírito malicioso me faz recordar Shakespeare e a tragédia de Hamlet: de fato, por trás de muitos atos de bondade açucara-se o próprio demônio. Como diz Frei Betto, o poder não corrompe, apenas revela o que já está corrompido.

Urge, neste país, a formação de uma consciência democrática para construção de um pleno exercício da cidadania. O brasileiro há de pertencer ao Brasil (ideário de pertencimento, José Murilo de Carvalho). A silhueta autoritária do Estado brasileiro de outrora ainda caleja nosso povo através dos seus membros públicos. Essa ignorância chega a doer, a dar pena. Ou a empáfia não os deixa ver?

Por Raimundo Araújo Neto, doutor em Direito Penal , advogado e professor da PUC/PR - Jornal "A Gazeta do Povo" de 14/10/2008.

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