A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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4 de julho de 2008

Controle Externo da Atividade Policial


Carta de Brasília

Os membros do Ministério Público presentes ao Simpósio Sociedade Civil e Fiscalização da Violência Policial, ocorrido de 18 a 20 de junho de 2008, no auditório do MPDFT, em Brasília/DF, aprovam, após amplo debate ao final do referido simpósio, os seguintes enunciados que sintetizam diretrizes de recomendável implementação por parte dos Ministérios Públicos, instituições policiais e sociedade civil.

1) A atividade policial é essencial à promoção da segurança pública e, portanto, à efetivação dos direitos fundamentais previstos na Constituição. Para tanto, deve haver uma atuação profissional, pautada na eficiência e no respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos.

2) É necessária a valorização da carreira policial, com remuneração digna e condições de trabalho adequadas, em especial treinamento periódico, equipamentos, recursos humanos suficientes, carga horária adequada e proteção ao risco inerente à atividade.

3) A atividade policial é potencialmente violenta, por fazer uso da força em nome do Estado, devendo existir mecanismos estritos de controle externo e interno desta atividade, com Corregedorias de Polícia independentes, visando evitar a ocorrência de desvios de conduta dos policiais, eventuais casos de impunidade ou de interferências indesejáveis na atividade correcional.

4) As instituições policiais devem atuar com transparência e prestar contas de seus atos à sociedade. Isso significa que todo cidadão possui o direito de, após a realização de qualquer diligência, questionar aos órgãos de controle competentes a legalidade e legitimidade da conduta policial, bem como possui o direito de receber uma resposta clara sobre sua reclamação, mesmo que a conduta policial seja legal. Em caso de conduta policial ilegal, o cidadão possui o direito de ser informado acerca das providências adotadas para a apuração dos fatos e da eventual punição ou das conseqüências para o policial que infringiu a norma.

5) É recomendável que as instituições policiais criem mecanismos estritos de controle do uso da força, estabelecendo em atos normativos internos, da forma mais minuciosa possível, sem prejuízo de cláusulas genéricas ao final, as hipóteses que autorizam o emprego de força, como, por exemplo, situações que justificam revistas pessoais, procedimentos para abordagens, regras para uso de força após resistência, regras para uso de armas de fogo e algemas. Estas normas devem ser objeto de treinamento periódico e deverão ser levadas em consideração para aferir a legalidade da conduta.

6) Os crimes cometidos contra policiais devem ter pronta apuração e acompanhamento prioritário por parte do Ministério Público.

7) É recomendável que os Ministérios Públicos organizem a atuação de seus Membros, em Promotorias Especializadas, Núcleos ou Coordenações, fornecendo-lhes recursos materiais e humanos e condições para o exercício do controle externo da atividade policial, articulando-se estreitamente com os demais órgãos de execução do Ministério Público em matéria criminal e do exame da probidade dos atos administrativos de policiais.

8) Os órgãos ministeriais especializados no controle externo da atividade policial devem ter estrutura para pronta recepção das reclamações dos cidadãos sobre condutas policiais, criando um procedimento interno para esclarecer os fatos e fornecer uma resposta ao cidadão.

9) É recomendável que estes órgãos ministeriais elaborem relatório anual de suas atividades, com estatísticas das reclamações recebidas, quantidade de processos solucionados, quantidade de processos arquivados, quantidade de propostas de acordos processuais penais, quantidades de condenações, quantidades de absolvições, todas especificando as espécies de crimes ou desvios a que se referem. É recomendável que haja publicidade deste relatório, preferencialmente disponibilizando-o em sítio eletrônico do órgão ministerial, para acompanhamento pela sociedade civil das atividades desempenhadas. Se possível, este relatório deve contar os dados das vítimas.

10) Os órgãos ministeriais especializados no controle externo da atividade policial deverão realizar inspeções periódicas nas instituições policiais, de forma a reconhecer práticas tendentes ao cometimento de atos de desvio policial, e recomendar as medidas cabíveis para correção destes procedimentos.

11) É recomendável que os órgãos ministeriais especializados no controle externo da atividade policial promovam reuniões periódicas com as instituições policiais e com organizações ligadas à defesa de direitos humanos, destinadas a discutir estratégias para implementar as alterações necessárias ao aperfeiçoamento constante da atividade policial. Quando necessário, o Ministério Público deve expedir recomendações e promover a ação civil pública por ato de improbidade administrativa, bem como ações civis públicas para a defesa dos interesses difusos e coletivos ou individuais homogêneos vinculados à Segurança Pública.

12) É recomendável que as diligências policiais que envolvam lesão à integridade física ou disparo de arma de fogo sejam sempre objeto de registro, consignando-se todas as testemunhas envolvidas, com imediata comunicação ao Ministério Público.

13) É recomendável que os órgãos de controle interno criem mecanismos para revisão periódica do padrão de conduta dos policiais, como quantidade total de diligências, quantidade de envolvimentos em diligências com lesão à integridade física, com emprego de arma de fogo ou com vítima fatal e quantidade de reclamações de atuação, identificando preventivamente possíveis desvios e tomando as medidas cabíveis para evitar eventual reiteração.

14) Conforme recomendação da ONU (Relatório de Philip Alston de Novembro de 2007, item 21.f), é recomendável que o Ministério Público tenha uma postura ativa durante os procedimentos de investigação de mortes praticadas no exercício da atividade policial. Quando necessário, o Ministério Público deve instaurar procedimentos independentes de investigação.

15) É recomendável que os órgãos de controle interno e externo criem mecanismos para apurar de forma satisfatória infrações funcionais como tratamento com palavras agressivas, discriminação durante a atuação, humilhação em público, vias de fato desnecessárias, assédio moral ou sexual, retaliação contra reclamações da atividade ou recusa de identificação do policial ao cidadão após a diligência.

16) Ressalvada a responsabilidade criminal, para desvios policiais cometidos sem lesão à integridade física ou que não importem em séria violação dos deveres funcionais, é recomendável a criação de programa de mediação, por profissional capacitado, no qual as partes envolvidas no conflito possam refletir sobre suas condutas, incrementar a compreensão recíproca, tenham espaço livre para eventual retratação de seus atos, e recebam oportunidade de sanar eventuais falhas (com cursos de capacitação, reciclagem ou semelhantes), recebendo, quando necessário, auxílio psicológico.

17) É recomendável que a Polícia Judiciária envide esforços para que todos os interrogatórios sejam filmados, como forma de proteção do interrogado e da lisura do procedimento policial.

18) É recomendável maior interação entre instituições de controle interno e externo e a sociedade civil, especialmente através de um espaço de diálogo constante por meio dos veículos de mídia, das Organizações Não-Governamentais envolvidas na fiscalização da atividade policial e da comunidade organizada. O relacionamento com a mídia deve levar em consideração o princípio da presunção de inocência, a preservação da imagem do investigado e a necessidade de prestação de contas à sociedade pelas Corregedorias e Ministério Público de suas atividades de controle interno e externo.

19) É recomendável a realização de trabalhos educativos com a comunidade, para conscientização de seus direitos como cidadão e seus deveres para com as autoridades policiais e esclarecimento dos procedimentos necessários para realizar eventual reclamação de uma conduta policial. Este trabalho deve ser realizado em instituições educacionais, perante Organizações Não-Governamentais, lideranças comunitárias locais, órgãos públicos ligados à efetivação da cidadania e perante as instituições policiais.

20) Não é admissível a prisão para averiguação, ou seja, a limitação da liberdade de locomoção de uma pessoa sem ordem judicial ou fora da situação de flagrante (ao menos sem uma dúvida razoável sobre a existência de uma situação de flagrante). Não é admissível a prisão pelo simples fato de uma pessoa não estar portando documento de identificação. A conduta de algemar, ou colocar uma pessoa no interior de viatura sem o consentimento desta, nas condições acima mencionadas, configura ato de prisão (abuso de autoridade). Os órgãos de controle interno e externo devem tomar as medidas cabíveis para evitar a prática de tais atos.

21) É recomendável que o MP, no exercício da atividade de controle externo, dedique especial atenção às ocorrências policiais envolvendo requisição de laudos técnicos e apreensão de objetos, principalmente armas e entorpecentes, especialmente no que respeita à necessária instauração do procedimento investigatório apropriado e quanto ao armazenamento e destino destas.

22) Deve haver maior controle sobre a quantidade de ocorrências policiais que não geraram instauração de procedimento de investigação. A circunstância de não ser conhecida a autoria não impede a instauração de inquérito policial.

23) O Ministério Público e suas associações devem trabalhar para o aperfeiçoamento da legislação ligada à efetivação de mecanismos de controle da atividade policial. Em especial, merece revisão a Lei de Abuso de Autoridade, elevando a pena para as situações mais graves de abuso de autoridade que não cheguem a configurar crime de tortura. O tipo penal de crime de tortura merece ser alterado para que se avalie apenas a conduta e o dolo de causar sofrimento físico, sem menção à intensidade do sofrimento físico e sem análise do elemento subjetivo diverso do dolo (consistente na finalidade de ministrar castigo). A lei deve prever sanções para o retardamento das apurações e o não atendimento das recomendações e requisições do Ministério Público em sede de controle externo. Também é objeto de preocupação a norma do parágrafo sexto do artigo 209 do CPM, que estabelece que as lesões corporais levíssimas configuram apenas transgressão disciplinar.

24) As instituições envolvidas na persecução penal devem estabelecer mecanismos para a tramitação direta dos inquéritos policiais e outros procedimentos investigatórios entre Ministério Público e as instituições policiais.

25) É recomendável que as Corregedorias do Ministério Público criem regras e mecanismos para fiscalizar o efetivo exercício do controle externo da atividade policial, como, por exemplo, necessidade de encaminhamentos periódicos de relatórios de visitas às Delegacias de Polícia e Unidades da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar, apresentando relatório qualitativo de atividades de controle externo, dentre outros.

26) É recomendável que o Ministério Público acompanhe a elaboração e a execução da política local de segurança pública de modo a garantir a correta distribuição de recursos humanos e materiais, bem como a eficiência e eficácia dos serviços prestados.

27) O Ministério Público deve fiscalizar os editais de concurso público para ingresso nas carreiras policiais.

28) É recomendável que o Ministério Público zele para que toda medida cautelar de âmbito criminal, dada sua natureza instrumental, esteja vinculada a procedimento investigatório formal e previamente instaurado.

29) É recomendável que os Ministérios Públicos Federal, dos Estados e do Distrito Federal realizem gestões junto às respectivas Casas Legislativas para alteração legal visando a inclusão do Ministério Público, OAB e representantes da sociedade civil organizada, nos Conselhos Superiores das Polícias e/ou órgãos responsáveis pela imposição de sanção disciplinar por desvios de conduta de policiais, visando conferir-lhes maior transparência, credibilidade e controle social.

Os membros do Ministério Público presentes ao Simpósio se comprometem a trabalhar no sentido de efetivar estas proposições destinadas a profissionalizar sua atuação.

Brasília, 20 de junho de 2008.


Obs.: íntegra da Carta de Brasilia, elaborada ao final do Encontro sobre Polícia e Sociedade Civil, promovido pelo MPDFT.

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Paradigma

O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)