A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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11 de março de 2008

Os profissionais de saúde e de educação e a violência contra a criança e o adolescente

Para melhor compreensão do tema proposto, inicialmente é preciso que tracemos um paralelo entre o Código de Menores, revogado em 1990, e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), tido por muitos como uma das mais avançadas legislações do mundo nesta área. O primeiro, é bom que se lembre, tratava apenas da assistência, proteção e vigilância aos que ainda não tinham atingido a idade de 18 anos. Aplicava-se, portanto, exclusivamente, àquele menor que se encontrasse em situação irregular, assim considerado quando fosse abandonado por seus pais ou responsável, mesmo que eventualmente, proveniente de família carente, vítima de crime, em desvio de conduta ou, por fim, quando autor de infração penal.

Encontrado em alguma destas condições, estaria o juiz de menores legitimado a aplicar-lhe quaisquer das chamadas "medidas de assistência ou proteção" (desde advertência até a internação) que entendesse mais conveniente e adequada ao caso, sem a necessidade do devido processo legal, pois estas buscavam, "fundamentalmente, sua integração sócio-familiar". Pela simples leitura dos artigos 2º e 94 do Código de Menores, fica claro que vigorava naquela época o controle social e a criminalização da pobreza, inconcebíveis nos tempos atuais1.

E a opção do legislador, obviamente, não se deu por má-fé, mas em razão de que, àquela época, os menores de 18 anos ainda eram vistos apenas e tão somente como simples objetos de intervenção do mundo adulto e não como sujeitos de direitos frente à família, à sociedade e ao Estado fato que, com o passar dos tempos, levou-os a sentirem-se cada vez menos responsáveis pela garantia e defesa dos direitos mais elementares de nossos jovens (vida, saúde, educação etc.). O resultado é conhecido por todos.

Regulamentando o artigo 227 da Constituição Federal, o Estatuto substitui o malfadado princípio da situação irregular pela moderna doutrina da proteção integral, que assegura à todas as crianças e adolescentes, indistintamente, os direitos fundamentais do ser humano, o exercício pleno da cidadania2.

Já com quase 18 anos de vigência, o ECA continua sendo alvo constante de duros ataques vindos dos que, ainda, não entenderam que o legislador viu nele oportunidade única de criação de um conjunto de regras de proteção capaz de colocar nossa infância e juventude a salvo de toda e qualquer forma de negligência, violência e exploração ou, o que é pior, por parte daqueles desprovidos de sensibilidade, que insistem em não enxergar que os nossos jovens não têm assegurados os direitos básicos da pessoa humana, levando-os a viver à margem de quaisquer benefícios sociais, realidade tantas vezes denunciada em nosso País.

Para eles, as suas regras seriam aqui inaplicáveis e melhor destinadas aos ditos países desenvolvidos, prova inequívoca que assim o dizem por ignorância de seu conteúdo. Como ensina Antônio Carlos Gomes da Costa3, estes não perceberam que o Estatuto "superou o binômio compaixão-repressão, passando a considerar a criança e o adolescente como sujeitos de direitos exigíveis contemplados na lei."

Em que pese todos esses avanços legislativos, recentemente pesquisas indicaram o Brasil como um dos três países com maior índice de violência contra seus jovens, conquistando o nada honroso posto de vice-campeão mundial de mortes por causas externas de pessoas entre 15 e 24 anos de idade.

E a explicação para que isso ocorra, aí sim, parece-me simples. Vejamos. Mesmo elevados à condição de cidadãos, historicamente, relegamos a segundo plano os mais elementares direitos sociais da nossa população infanto-juvenil, ainda que a Constituição Federal considere o seu atendimento como de prioridade absoluta.

A destinação privilegiada de recursos públicos para as áreas relacionadas à proteção da infância e juventude, prevista no Estatuto como forma de diminuir o quadro de exclusão e miséria, é apenas uma ficção e não contamos sequer com o mínimo necessário em nosso País, com honrosas exceções. Sinal claro do pouco que se investe na área e dos inúmeros erros cometidos na defesa desses direitos. Milhares sofrem maus-tratos, negligência, são abusados sexualmente ou mortos; poucos são os punidos.

Portanto, a reversão desse quadro exige mudança de paradigmas e aprofundamento do debate sobre as reais causas da violência aqui praticada contra crianças e adolescentes, que diariamente vitima centenas, com números crescentes ano após ano. Tornou-se imperativa, por conseguinte, a ação integrada dos atores envolvidos na prevenção e no atendimento às vítimas (conselho tutelar, profissionais da educação e da saúde, Ministério Público, Judiciário etc.), com a formação de uma rede de proteção da população infanto-juvenil, definindo-se obrigações e responsabilidades de cada um dos envolvidos.

Diante disso, a discussão colocada neste momento ganha maior relevância.

O Estatuto inova ao considerar a violência contra crianças e adolescentes como problema de saúde pública, e como tal deve ser encarada, na medida em que a insere no Título II – Dos Direitos Fundamentais, Capítulo I "Do Direito à vida e à saúde", 4 bem como quando torna obrigatória a comunicação de tais ocorrências (suspeita ou confirmação de maus-tratos) à autoridade competente.

Embora com o advento desta lei, prevenir a ameaça ou violação dos direitos infanto-juvenis passou a ser dever de cada um e da sociedade de modo geral5, a privilegiada posição ocupada por algumas categorias profissionais (da educação e da saúde, notadamente), em razão da sua proximidade com esta população, é elemento facilitador na identificação das diversas modalidades de atos violentos praticados contra eles, o que levou o legislador a prever expressamente condutas obrigatórias em situações específicas, com repercussão na vida da vítima, de sua família e no sistema de justiça.

A opção de transformar em Infração Administrativa a ação ou omissão de médicos e responsáveis por estabelecimento de atenção à saúde, por falta de comunicação dos casos de suspeitas ou confirmação de maus-tratos contra crianças e adolescentes, sujeitando-os a pagamento de multas, mostrou-se acertada e, ao contrário do que parece, acabou por socorrer esses mesmos profissionais, por dirimir suas principais dúvidas e explicitar as circunstâncias em que se exige a sua pronta atuação.

Como alerta Haim Grunspun6 com estas novas regras "o problema não se torna, assim, de imediato, um fato policial, como acontece na maioria dos países com legislação a respeito, e não surgem conseqüências irreversíveis pela rigidez das leis que cuidam do assunto."

Para tornar claro o papel dos profissionais de atenção à saúde nesse contexto, mas sem a pretensão de esgotarmos o assunto, é preciso nos reportar a outros dispositivos legais a ele relacionados. O artigo 154 do Código Penal (CP)7, em vigência desde a década de 40, dispõe sobre a violação do segredo profissional e prevê pena de 3 meses a 1 ano de detenção, ou multa, para aquele que, sem justa causa, revelar segredo de que tem ciência em razão de sua função ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem.

Não fosse suficiente, a Lei de Contravenções Penais (LCP), de outubro de 1941, em seu artigo 668, quando trata da omissão de comunicação de crime, prevê pena de multa para aquele que deixar de comunicar à autoridade competente delito de ação pública, de que teve conhecimento no exercício de função pública, desde que a ação penal não dependa de representação.

Abordando a hipótese de revelação do segredo, o Código de Ética Médica, aprovado pela Lei nº. 3.268, de 30.09.57, em seu artigo 38, letra "c" a autoriza "quando se tratar de fato delituoso previsto em lei e a gravidade de suas conseqüências sobre terceiros crie para o médico o imperativo de consciência de denunciá-lo à autoridade competente". A lei outorga, portanto, ao médico, e a todos os seus auxiliares, uma faculdade (não lhe impõe um dever jurídico) de revelar o segredo sempre que: a) se trate de fato delituoso; b) com conseqüências graves para terceiros.

A leitura isolada das disposições legais acima mencionadas, aliada ao desconhecimento dos objetivos perseguidos pelo legislador ao criar as novas regras dos artigos 13 e 245 do Estatuto da Criança e do Adolescente, comumente, tem levado à interpretações equivocadas sobre as conseqüências, em caso de ação ou omissão, para os profissionais da área de saúde, o que acaba por torná-los inseguros quanto à sua atuação, principal motivador da pouca efetividade destas comunicações até os dias de hoje.

Certamente, inúmeras são as dúvidas conceituais, as incertezas quanto à oportunidade e forma de agir, bem como sobre os efeitos da ação ou omissão do profissional. Poderíamos aqui apresentar várias indagações, todas pertinentes, mas fiquemos apenas com aquelas apontadas pela experiência como as mais freqüentes: como se dá a justa causa que autoriza a revelação de fato sabido em razão de seu ofício, prevista no artigo 154 do CP? O que considerar crime de ação penal pública, que independe de representação, tratado no artigo 66 da LCP? Caso não se prove o fato comunicado, há conseqüência para o seu responsável? Qual das legislações merece maior atenção? Qual a autoridade competente para o recebimento de tais comunicações?

Embora forçoso reconhecer a relevância de todos estes questionamentos, parece-me, entretanto, que o desconhecimento do direito não deve figurar como justificativa única para o insignificante registro dessas comunicações, que pouco, ou quase nada, têm contribuindo para a mudança desse grave problema social.

Primeiramente, é preciso deixar claro que o dever de guardar segredo profissional é absoluto e o que a lei proíbe é a revelação ilegal, motivada simplesmente pela leviandade, pelo desejo de vingança ou irresponsabilidade do denunciante. Há que se ter, portanto, a justa causa para a revelação.

Tratam-se, pois, de regras gerais, não prevalentes quando confrontadas com a legislação especial, p.ex. como aquelas contidas no Estatuto, anteriormente citadas, que dispõem sobre a proteção integral de Crianças e Adolescentes.

Inicialmente, é preciso registrar, essas previsões legais (artigos 13 e 245 do ECA) constituem-se na exigida justa causa a que se refere o citado artigo 154 do Código Penal brasileiro para a violação do segredo profissional9. Assim, desde que não motivado por sentimento irresponsável, de vingança, mesquinho ou assemelhado, o profissional da saúde tem na própria lei a justificativa para levar ao conhecimento das autoridades fato sabido em razão do exercício de seu ofício ou profissão.

E mais. Pela legislação especial, a simples suspeita de maus-tratos contra menor de 18 anos, e não mais a caracterização do crime propriamente dito, obriga o responsável pelo atendimento a dar ciência do ocorrido à autoridade competente que, em tais casos, é o Conselho Tutelar existente no município e, somente na sua falta, ao juiz da infância e juventude.

Como não há a necessidade de imputar a autoria da conduta delituosa a ninguém, vez que se exige apenas e tão somente a comunicação de suspeitas ou confirmações de maus-tratos à criança e adolescente, vencidos estão os receios de exploração do caso pela imprensa, de reação violenta por parte dos eventuais responsáveis pelas agressões ou mesmo de proposição de ações criminais por crimes contra a honra (calúnia e injúria), bem como cíveis, de indenização por danos morais, contra o autor da notícia, corriqueiramente presentes nesses momentos.

Mais uma vez agiu com acerto o legislador. Não raro, a confirmação do crime de maus-tratos é de difícil diagnóstico e exige exames complementares. Desta forma, diante das evidências de sua ocorrência, sejam elas representadas por agressão física, emocional, pelo abuso sexual ou mesmo por intoxicação proposital, o profissional de saúde está não apenas autorizado, mas antes, obrigado, a comunicar sua suspeita ao Conselho Tutelar, órgão esse encarregado do atendimento de crianças e adolescentes que tenham quaisquer de seus direitos ameaçados ou violados.

A atuação do Conselho Tutelar diante de tais ocorrências merece maior comentário. Dentre as atribuições desse Órgão, merece destaque o fato de ter o artigo 98 da Lei n.º 8069/90 elencado três situações de ameaça ou violação dos direitos capazes de colocar a criança e o adolescente como sujeitos aptos a receber uma das medidas de proteção previstas no art. 101, isolada ou cumulativamente, que vão desde o encaminhamento aos pais ou responsável até a colocação em família substituta10.

Mas não é só. Em tais casos, a ele cabe, também, atender e aconselhar os pais ou responsável, aplicando-lhes uma das medidas previstas no art. 129 do Estatuto. 11

Apenas a esse órgão caberá adotar as providências cabíveis, requisitando os serviços que forem necessários (médico, psicológico, assistencial etc.) para a elucidação do caso que lhe foi apresentado, bem como o seu encaminhamento ao juiz da infância e juventude quando importar em perda ou suspensão de pátrio poder, tutela ou guarda, sem prejuízo da comunicação à autoridade policial. Também ele responde por eventual uso indevido da informação que lhe chegou.

Inegavelmente, a negligência, a agressão infantil, o abuso sexual e o abandono podem ser facilmente identificados nos consultórios médicos, odontológicos e nos ambulatórios presentes em todo o Pais. Para tanto, é imprescindível que os profissionais da saúde se capacitem cada vez mais, buscando também o desenvolvimento de ações conjuntas com outros setores. O que se exige dele é a simples comunicação, preferencialmente de forma célere, objetiva, com fundamentos mínimos de sua suspeita, a fim de possibilitar a pronta e segura atuação do Conselho Tutelar, do Ministério Público e do Judiciário, respectivamente.

Isoladas, essas medidas não serão capazes de eliminar a violência praticada contra nossos jovens, mas, por certo, representam o início do caminho para vermos a legislação ser cumprida em favor dessa parcela significativa da população, preparando-a para o exercício pleno da cidadania, para uma existência um pouco mais digna, dando vida às palavras de Dom Luciano Mendes de Almeida, para quem "a lei há de contribuir para a mudança da mentalidade da sociedade brasileira, habituada, infelizmente, a se omitir diante das injustiças de que são vítimas as crianças e adolescentes. O respeito à lei fará que a opressão e o abandono dêem lugar à justiça, à solidariedade e ao Amor".

Notas
1 O artigo 94 dispunha que "qualquer pessoa poderá e as autoridades administrativas deverão enviar para a autoridade judicial competente, o menor que se encontrar em situação irregular, nos termos dos incisos I, II, III e IV do artigo 2º desta lei." Já o artigo 2º estabelecia: " Para os efeitos deste Código se considera em situação irregular o menor: privado de condições essenciais para a sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, inclusive quando eventualmente a privação seja em razão de manifesta impossibilidade dos pais ou responsáveis para provê-las."
2 Direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
3 Infância, Lei e Democracia na América Latina, volume 1, Edifurb, 2001.
4 Artigo 13 do ECA – Os casos de suspeitas ou confirmação de maus-tratos contra criança e adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais. Artigo 245 – Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança e adolescente – pena – multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.
5 Artigo 70 do ECA – É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente.
6 In Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, Malheiros.
7 Artigo 154 do Código Penal – Revelar alguém, sem justa causa, segredo de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem: Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa. Parágrafo único – somente se procede mediante representação
8 Artigo 66, inciso I, da LCP – Deixar de comunicar à autoridade competente: I – crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício de função pública, desde que a ação penal dependa de representação.
9 Cury, Garrido e Marçura, in Estatuto da Criança e do Adolescente Anotado, Editora Revista dos Tribunais, pg. 27.
10 Artigo 98 – As medidas de proteção à criança e do adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta lei forem ameaçados ou violados: I. por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; II. Por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; III. Em razão de sua conduta.
Artigo 101 – Verificada qualquer das hipóteses prevista no artigo 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas: I. encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; II. Orientação, apoio e acompanhamento temporários; III. Matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; IV. Inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; V. Requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; VI. Inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; VII. Abrigo em entidade; VIII. Colocação em família substituta. Parágrafo único – o abrigo é medida provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para a colocação em família substituta, não implicando em privação de liberdade.
11 Encaminhamento a programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico; encaminhamento a cursos ou programas de orientação; obrigação de matricular o filho ou pupilo e acompanhar sua freqüência e aproveitamento escolar, além da obrigação de encaminhar a criança ou adolescente a tratamento especializado.

Por Saulo de Castro Bezerra, promotor de Justiça de Goiânia (GO), chefe de gabinete da Procuradoria-Geral de Justiça de Goiás, vice-presidente da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e Juventude (ABMP). http://www.jus.com.br/, acessado em 11/03/2008.

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