Por Fábio Medina Osório*
A improbidade administrativa, definida originalmente no art. n°. 37, par. 4º, da Constituição Federal (), e na Lei n°. 8.429/92 (), pode traduzir-se através de ações ou omissões gravemente desonestas ou ineficientes, sujeitando os infratores às conseqüências previstas na lei, quais sejam, perda do cargo público, interdição de direitos, suspensão de direitos políticos, multa civil, ressarcimento ao erário, perda dos bens havidos ilicitamente.
Não há dúvida de que resulta necessário fortalecer o sistema punitivo contra os atos de improbidade administrativa, porque tais transgressões representam verdadeiros atentados contra direitos fundamentais espalhados por toda a coletividade organizada, que se refletem nas políticas públicas afetadas pela má gestão pública como um todo. Todavia, o fortalecimento do sistema punitivo não pode ocorrer ao arrepio de um sólido esquema protetor dos direitos fundamentais relacionados à defesa dos acusados em geral, tanto no plano formal quanto material.
O fortalecimento dos direitos de defesa não conduz à impunidade. Ao contrário, conduz à legitimidade do sistema punitivo. Essa legitimidade depende, pois, do império dos direitos fundamentais dos acusados em geral. Sem essa compreensão elementar, corremos o risco de enfrentar os dissabores da impunidade ou, o que seria até pior, a erosão dos pilares de um Estado de Direito construído sob a fundamentação do devido processo legal, processo histórico comprometido com os direitos humanos e que deles não pode apartar-se por razões meramente pragmáticas.
No caso da Lei n°. 8.429/92, suas origens remontam ao Governo Collor de Mello, como uma tentativa de resposta contundente aos fenômenos de má gestão pública, mas na verdade tratava-se de mera reprodução acrítica da Lei Bilac-Pinto, que era uma legislação tímida, que se limitava a trazer como "sanções" medidas de cunho reparatório, tais como a perda dos bens havidos ilicitamente. Sem embargo, a Lei de Improbidade teve influências de lideranças importantes e notáveis do Ministério Público brasileiro e acabou representando uma das grandes novidades no cenário jurídico nacional, diante do alcance de seus tentáculos e do enigma de sua natureza jurídica, ganhando o reforço de numerosas sanções, tais como aquelas descritas ao início deste trabalho, promovendo uma autêntica revolução no sistema punitivo pátrio.
Sustentei, já em 1999 (Corrupción y Mala Gestión de la Res Publica: el problema de la improbidad administrativa y su tratamiento en el Derecho Administrativo Sancionador Brasileño, in Revista de Administración Pública 149, p.487-522, mayo-ago, 1999), que se tratava, como de fato se trata, a Lei n°. 8.429/92, de um Código Geral de Conduta de todos os agentes públicos brasileiros, cujo regime jurídico seria o do Direito Administrativo Sancionador, vale dizer, suas sanções seriam autênticas sanções administrativas, sanções de Direito Administrativo. Ali sustentei, modestamente, um novo conceito de sanção administrativa no Direito Administrativo Brasileiro, posteriormente objeto de adesão de Diogo de Figueiredo Moreira Neto (Curso de Direito Administrativo, Forense, RJ, 14ª ed., 2005, sobretudo no prefácio ao meu Direito Administrativo Sancionador, ed. RT, SP, 2ª ed., 2005). Com essas considerações, arrastei ao campo da Lei n°. 8.429/92 todo o regime jurídico do Direito Administrativo Sancionador, o que implicaria um conjunto significativo de garantias e direitos fundamentais, bem a aplicação simétrica dos princípios e regras de natureza penal.
A verdade é que os preceitos da Lei n°. 8.429/92, e essa é uma crítica corrente que se lhe faz, são demasiado genéricos, donde produzem perplexidades e gigantesca insegurança jurídica e enorme espaço de arbítrio aos intérpretes, nomeadamente aos membros do Ministério Público e aos integrantes da Magistratura que têm atuado no manejo dessas normas punitivas. Proponho uma dogmática no sentido de que tais preceitos sofram, necessariamente, complementações normativas para fins de garantir segurança jurídica aos destinatários, o que significa observar o princípio da tipicidade em sua plenitude, como corolário da legalidade e do devido processo legal. É inadmissível, assim, como já tive ocasião de sustentar (Teoria da Improbidade Administrativa, ed. RT. SP, 2006), que haja uma proibição - cuja sanção afeta direitos fundamentais – baseada tão-somente em principialismo jurídico e, em decorrência, em normas vagas e etéreas ou, noutras palavras, em proibições puramente morais dos intérpretes. É necessária a fundamentação do ato proibitivo numa regra concreta não-retroativa. No caso, a regra não está na Lei n°. 8.429/92, mas na normativa subjacente, que pode ser legal ou infralegal.
Cabe anotar que as condutas proibidas devem ser minimamente previsíveis, de antemão, pelos potenciais infratores, não podendo resultar de criações caprichosas dos intérpretes, porque, se isso fosse possível, teríamos ferido de morte o princípio da segurança jurídica e a legalidade que fundamenta o Estado de Direito. É por essa mesma razão que as imputações, formuladas no bojo de uma inicial acusatória, devem guardar correlação com descrições detalhadas e pormenorizadas, que garantam os direitos de defesa, porque a tipicidade abstrata ganha vida no corpo de uma petição deduzida em juízo. A jurisprudência dos Tribunais Superiores, tanto STJ quanto STF, têm agasalhado esse entendimento na seara penal.
Também é de ser observado o princípio da culpabilidade em matéria de tutela da improbidade administrativa. Não há falar-se em responsabilidade objetiva, nem presumida, nesse terreno. Aliás, lembre-se que até mesmo para o mero ressarcimento ao erário a Constituição Federal (art. n°. 37, par. 6º) fala em dolo ou culpa para que haja o direito de ação de regresso; nesse contexto, o que se dirá do exercício de uma pretensão punitiva baseada na Lei n°. 8.429/92? É óbvio que o princípio da culpabilidade impõe encargos ao acusador e ao próprio órgão julgador, inclusive no plano probatório, à luz, também, do princípio da não-culpabilidade ou da presunção de inocência. É dizer: aquele que é presumidamente inocente, até prova em contrário, não pode ser forçado a romper essa barreira contra seus próprios e legítimos interesses; não pode ser obrigado e produzir provas contra si mesmo, nem a adotar comportamentos processuais contra seus interesses. Certas aparências de culpabilidade podem ser tomadas em consideração, evidentemente, para decretação de medidas cautelares contra os interesses individuais dos acusados, mas a priori o indivíduo tem a seu favor as presunções pro libertate e apenas excepcionalmente pode ter contra si medidas gravosas decretadas em caráter provisório e fundamentado, sempre lastreadas na legalidade estrita.
As regras e princípios de natureza penal são aplicáveis, por simetria e analogia, com matizes, ao Direito Administrativo Sancionador, considerado o regime jurídico incidente na matéria. A equação de responsabilidades penal e de improbidade, em se tratando de ilícitos contra a Administração Pública, pode ter um desfecho unitário, dependendo da relação que houver entre os ilícitos e os tipos em jogo. Cada vez mais, há uma tendência em se aquilatar a chamada unicidade do ilícito, o que suscita a importância de conhecimentos interdisciplinares nos campos do Direito Penal e do Direito Administrativo Sancionador, porque tais áreas transitam por fronteiras crescentemente contíguas e não raro mescladas. Onde começa um ilícito e termina o outro? Essa indagação, sem dúvida, há de ser acompanhada desde o nascedouro. Importa ressaltar, de qualquer sorte, que o sistema punitivo apenas se fortalece e legitima na medida em que respeita e prestigia os direitos fundamentais dos acusados em geral, aproximando-se dos paradigmas universais do devido processo legal e dos direitos humanos.
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*Doutor em Direito Administrativo pela Universidade Complutense de Madrid. Ex-promotor de justiça - MPRS. Advogado do escritório Medina Osório Advogados.
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