A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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31 de dezembro de 2007

Que 2008 seja um ano de muita Justiça!


Este Blog deseja a todos os leitores que tenham um ótimo 2008, com muita saúde, paz e justiça.

Por sua excelência, colamos a seguir o articulado do professor Gabriel Chalita acerca da Justiça. Ainda que longo, vale a pena lê-lo por completo. Que nos sirva de reflexão para o ano vindouro!


A evolução do conceito de justiça

por Gabriel Chalita (*)

A justiça, o conceito de justiça, o anseio por jus­tiça, é um dos mais antigos e presentes temas a percorrer as instâncias do pensamento humano. Podemos encontrar esse clamor nos grandes épicos, fundadores da literatura ocidental, alguns dos primeiros registros e mapas da alma e dos desejos humanos. É por considerar-se injustiçado que Aquiles se retira da luta em que os pegos se opõem aos troianos. Também é para punir a morte de Pátroclo e, no seu ponto de vista, restaurar a justiça que Aquiles resolve voltar à luta e enfrentar Heitor. É com ânsia justiceira que Ulisses desafia os pretendentes à sua esposa e ao seu trono, assim que retorna a Ítaca, depois de dez anos de combate contra os peri­gos no mar.

O longo caminho entre esse conceito de justiça pessoal, feita com as próprias mãos, os conceitos clássicos e as instituições jurídi­cas da sociedade contemporânea, que buscam garantir uma justiça isenta e cada vez mais abrangente, é o que gostaríamos de esboçar neste artigo. Não pretendemos oferecer novidades revolucionárias sobre o tema, tampouco criar novos conceitos, mas fazer uma sin­tética reflexão sobre as variadas formas com que o pensamento hu­mano, ao longo dos séculos, se debruçou sobre o assunto.

Gostaríamos ainda de lembrar que uma reflexão sobre justiça é, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre Direito e poesia, sobre aspira­ções cotidianas e sonhos, sobre doutrina, jurisprudência e utopia. A justiça é uma espécie de caminho permanente para a utopia, que não poderá nunca ser descartada do horizonte dos objetivos huma­nos. O que seria da humanidade se abrisse mão de seus objetivos utópicos?

Já que justiça e Direito são áreas contíguas, associadas, come­cemos pelo Direito as nossas reflexões. O profissional do Direito ganhou um destaque e uma valorização excepcionais nestes nos­sos tempos. Muitos pais aconselham a seus filhos o ingresso nessa área de estudo, pois a partir da formação como advogado abrem-se variadas possibilidades de carreira: juízes, promotores, delegados, diplomatas, procuradores, professores em áreas diversas. Muitos dos representantes legislativos, em suas diversas instâncias, fize­ram da formação em Direito sua base intelectual. É a prática da globalização e da universalidade - Direito civil, penal, trabalhista, previdenciário, constitucional, comercial, tributário, empresarial, ambiental, do consumidor, da informática, da bioética, da criança e do adolescente, da mulher e do homem do século XXI - em uma única profissão. E isso não é o ponto de chegada. O Direito não é uma ciência estática, evolui como evolui a pessoa humana.

Também é preciso mencionar, para que não fique uma impressão de demasiado otimismo, as polêmicas e controvérsias que percor­rem a área. Se há profissionais que se destacam por sua atuação veemente em defesa da justiça, da defesa da dignidade da pessoa humana e do exercício da ética, há outros, maus profissionais, que se corrompem, que usam o diploma, a carteira da OAB, o ingres­so numa carreira pública para cometer atos desprovidos de moral, banalizando seus valores, se distanciando da prática da ética e da justiça. Talvez seja essa espécie de profissionais que levou tantos escritores, de Gil Vicente a Tomás Antonio Gonzaga, de Camilo Castelo Branco a Monteiro Lobato, à sátira e à crítica mordaz da prática judiciária. É o comportamento dual da espécie, para quem acredita em bem e mal, em justo e injusto, em digno e indigno. Ou o comportamento e o anticomportamento para quem acredita que tal postura é mais resultado da ignorância que da escolha conscien­te. Aristóteles, Tomás de Aquino, Rousseau, Jacques Maritain se defrontaram com esses caminhos e conflitos da consciência para deixar aos que viessem depois deles a teoria do bem comum. O ser humano é essencialmente bom, mas às vezes deixa essa essência cair no esquecimento. Perde, por momentos, a consciência de sua bondade essencial e, com isso, parece abandonar suas origens, per­der a humanidade, transformar-se em coisa.

Refletir sobre a evolução do conceito de justiça é de fundamen­tal importância para a compreensão das circunstâncias do mundo contemporâneo, e também para a compreensão dos desafios lança­dos aos que se propõem a construir uma civilização norteada pelos valores de dignidade da pessoa humana, da ética, da responsabili­dade partilhada.

O ser humano é complexo e a História corrobora essa afirmativa na medida em que demonstra as muitas e perceptíveis alterações ocorridas nos desejos, nas disposições e nas expectativas humanas ao longo dos tempos.

Aristóteles sintetizava a temática humana de forma ímpar: o ser humano, assim como os animais, possui desejos; diferencia-se des­tes pela escolha, que já é uma instância superior, pois necessita da reflexão para ser exerci da; além disso, possui expectativa, o que é ainda mais nobre - a expectativa, a aspiração, é o divino no huma­no, o sonho, a utopia, o projeto que faz com que a potencialidade de vida se converta em ação transformadora.

E é a respeito dessa expectativa que se deve falar. É sobre ela que se deve caminhar. Quais são as expectativas do ser humano contemporâneo? Quais são seus sonhos? Seus projetos? Suas dis­posições? Que relação tem a justiça com tudo isso?

A expectativa por justiça talvez seja um elemento natural da espécie humana. Diante da evidência de desmandos, falcatruas, crimes e outras condutas afins, é do senso comum o desejo de res­tabelecer o que foi fraudado, punir o culpado, prender o que aten­tou contra a ordem estabelecida. A justiça, como já vimos, é urna constante aspiração da humanidade. É comum depararmo-nos com o discurso inflamado, veemente, de pessoas que exigem o ressar­cimento moral de uma situação. Moral! Aí está o senso moral cla­mando por justiça!

Apesar de toda essa inflamada veemência, pode-se observar um comportamento paradoxal desse mesmo senso comum: clama contra toda forma de injustiça, mas admite, em sua prática, muitas vezes, atos de flagrante injustiça. Cobra uma postura ética dos que estão no poder, e se deixa corromper quando esses mesmos ofere­cem alguma espécie menos justa de benefícios. O "é dando que se recebe" - muito longe do sentido inicial que lhe deu São Fran­cisco de Assis - parece se alastrar contagiando toda a população. É um grave erro aceitar insensivelmente a contradição entre o que se diz e o que se faz. Condena-se o político corrupto, mas pede-se a este mesmo político um emprego público (passando por cima dos concursos determinados pela lei), pede-se a interferência para anu­lar uma legítima multa de trânsito, anistia para uma obra irregular, ajuda para internação no hospital do servidor ainda que não se faça parte da categoria, um empréstimo em condições privilegiadas etc. Diante disso como ficam os discursos sobre a necessidade de acabar com a corrupção, com os privilégios, com as benesses infames que tiram de uns para ceder a outros? E a falta de consciência que leva a essa imoral busca de levar vantagem em tudo? Até em furar fila de padaria, ou "pegar", nas feiras livres, uma ou duas frutas a mais, dizendo a si mesmo que isso não tem nenhuma importância?

Como fica a justiça diante desses "insignificantes" comporta­mentos?

Esse é um dos temas presentes na civilização humana desde seus primórdios. Os estudos da História mostram a passagem de algumas eras nas relações econômicas e nas relações de trabalho. Dos primeiros agrupamentos, depois do período da coleta e do no­madismo da caça, ao surgimento da agricultura, o ser humano foi alterando seus relacionamentos e complicando suas necessidades e problemas. A formação do grupo facilita a caça, a pesca, a seguran­ça, o cultivo. Também propicia a disputa pelo poder, por espaço, pela posse da terra. O conforto da convivência interpessoal traz sua contrapartida. É a passagem do bom selvagem para a civiliza­ção, no entender de Rousseau. O homem, que sempre havia sido livre, absoluto em sua relação com a natureza e consigo mesmo, começa a estabelecer comparações que levam à competição. De­seja possuir mais que o necessário, quer crescer e, para isso, vê no outro um obstáculo, e como obstáculo precisa ser eliminado, tirado do caminho.

Cada povo tratou de maneira diferente tal processo de crescimento social, criando normas de conduta e conceitos de justiça em acordo com suas crenças e valores estabelecidos. Atribuindo a deuses ou a Deus o controle da história e do destino, muitos povos dominados pelo misticismo transformaram sacerdotes, reis, faraós em porta­-vozes dessas instâncias, jamais questionando os ditames prescritos por essas autoridades. Povos que viam relâmpagos, trovões, chu­vas, tempestades como avisos ou castigos das divindades e das for­ças sobrenaturais, e ao ouvirem narrações de mitos se deixavam dominar por aqueles que diziam entender essas forças. Místicos ou míticos, esses povos davam ao poder uma dimensão que correspon­dia ao extraordinário.

A Grécia surge, para o mundo ocidental, como um espaço pri­vilegiado em que essas grandes discussões acabaram, no Ágora, to­mando o rumo da fundação da democracia. É a passagem da aristo­cracia para um novo momento em que o homem grego, em grupo, debateu, discutiu, argumentou, fez escolhas e tirou conclusões.

Por volta do sexto século antes de Cristo alguns estudiosos co­meçaram a buscar explicações racionais para fenômenos que até então eram explicados pelos mitos. De onde viemos? Para onde vamos? O que estamos fazendo aqui? Qual a razão de tanta diver­sidade nos elementos naturais? Qual é o elemento fundamental na composição do universo? Essas eram algumas das novas questões propostas e geraram a escola Jônica. Entre seus primeiros pensa­dores estavam Tales de Mileto, para quem a água era o princípio de todas as coisas, e Anaximandro de Mileto, que concluiu pela impossibilidade de elementos gerarem elementos, não podendo, portanto, terra, fogo e ar, serem derivados da água. Tudo teria vin­do do Ápeiron, o infinito, foi a conclusão a que ele chegou. Outros pré-socráticos se debruçam sobre o problema. Parmênides de Eleá e Heráclito de Éfeso discutem a questão do uno e do múltiplo, da inação e do movimento, da dóxa (opinião) e da alethéia (verdade). E outros ainda sugerem questões diversas que possam tranqüili­zar os homens quanto à origem e o fim de tudo. A diversidade de pensamentos caracterizou essa era cosmocêntrica, mas a base do pensamento antropocêntrico, em que o homem é o sentido do universo, ainda estava por vir. Como estavam por vir as grandes discussões sobre a justiça e o Direito, que só encontraram seu verdadeiro motivo ao tratar do homem como fundamento de sua existência.

A filosofia vai seguindo seu caminho e encontra em Atenas seus três maiores representantes: Sócrates, Platão e Aristóteles. Sócrates refuta o direito da força, apregoados pelos sofistas como o interesse do mais forte. No belo diálogo com Eutifron, na Re­pública, descarta a afirmação feita por ele: "a justiça é a vontade caprichosa dos deuses". Sócrates afirma que "as coisas não são justas porque os deuses querem, mas os deuses as querem porque são justas". Com isso valoriza a justiça como uma forma agradável do homem viver em sociedade, e, além disso, de agradar as outras forças que estão acima da sociedade. Platão, discípulo de Sócrates, é altamente influenciado na sua elaboração do conceito de justiça, por uma espécie de experiência fundadora da injustiça: o julga­mento e a morte de Sócrates. O justo, segundo Platão, se comporta de acordo com a lei. E os acusadores de Sócrates não se compor­taram de acordo com a lei, mesmo porque outras motivações que não as jurídicas deram cabo daquele julgamento. Somente o justo é feliz, "a vida mais justa é a mais bem-aventurada". E o justo con­trola seus instintos. No mito do cocheiro, ao tratar das partes da alma, Platão afirma que é preciso que a razão controle a paixão e a agressividade. O homem não pode se deixar levar por prazeres efêmeros. Para isso, é preciso sair da caverna, seu outro mito, e enfrentar a realidade com conhecimento. À prática da justiça é imprescindível o conhecimento e a aceitação de que o justo é fe­liz, mesmo que possam existir justos infelizes.

Aristóteles, discípulo de Platão, na Ética a Nicômaco trata exaustivamente da temática da justiça. A justiça é a excelência mo­ral perfeita que advém do hábito de fazer o bem. O homem, quando virtuoso, quando justo, é o mais excelente dos animais; em con­trapartida, separado da lei, separado da justiça, é o pior de todos. Não nos parece que o Estagirita separe justiça de lei, até porque a lei é o resultado a que chega uma comunidade que busca a justiça; sem esta, aquela não teria sentido. Os legisladores são uma espécie de guardiães do bom senso, da construção sistêmica do exercício concreto de valores abstratos. É quase que uma maiêutica socrática, isto é, o que se constrói é resultado do que se é. É a exteriorização do intrínseco. O homem sempre construirá valores de justiça se for capaz de uma reflexão interior, voltada para sua essência. A con­duta tida por má só ocorre por ignorância, por distanciamento do próprio ser. Ninguém opta pelo mal. O mal é o resultado do não conhecimento do bem.

Aristóteles supervaloriza a amizade como excelência moral, afirmando que a amizade é ainda melhor que a justiça, pois mesmo havendo justiça ainda é precisa a amizade, e diante da amizade a justiça se faz desnecessária porque já foi alcançada... os amigos verdadeiros jamais serão injustos!

Durante a Idade Média, período em que dominou o pensamen­to teocêntrico, encontramos filósofos como Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino. É a volta do platonismo e do aristotelismo. Para Agostinho, principal expoente da patrística, existe uma lei natural, fundada no Autor, no Artífice da natureza. Essa lei é a lei do amor e da bondade, é universal e imutável e todo ser humano deveria conhecê-la e observá-la. O respeito a essa lei constitui a virtude da justiça. Agostinho nega a existência do mal metafísico. Afirma que o homem pode fazer o bem ou deixar de fazê-la. A essa omis­são, convencionou-se chamar de mal; entretanto, em essência, não existe. Com isso quer ratificar o conceito dos gregos de que a não observância da justiça é mais ignorância do que opção. Os homens se distanciam por não conhecerem a verdade e o bem. Realizam práticas nefandas porque não sabem que em essência são imagem e semelhança do Criador e por isso são bons.

Tomás de Aquino vê na lei o caminho para o bem comum e para isso distingue três espécies de lei: a eterna, a natural, a positiva.

A lei eterna é divina. É imutável. É universal. De Aristóteles retoma o conceito de motor imóvel que move os motores móveis. Todo o universo se movimenta graças a esse motor primeiro.

A lei natural é conhecida pela razão humana que participa como centelha da razão divina. É esse conceito de bem e de justiça que não é ensinado; é conhecido racionalmente.

A lei positiva é obra do legislador. É legítima desde que respeite a lei eterna e a lei natural. Quanto à justiça, sua essência, em To­más, consiste em dar a outrem o que lhe é devido, segundo uma igualdade, objetivando sempre o bem comum, que é a justiça social ou geral.

A Idade Moderna encontrou eco em pensadores como Tomás Morus, Francis Bacon, Etienne de Ia Boétie para a continuidade da trajetória e da experiência filosófica do homem. Pensadores utópi­cos - um deles é o próprio criador dessa palavra - que edificaram obras marcadas por um inconformismo com a situação das coisas vigentes em seus estados.

A utopia, escrita por Morus, descrição de uma ilha em que tudo funcionava de maneira absolutamente determinada, parece ser a primeira obra filosófica eminentemente comunista. Tudo era co­mum a todos. Ninguém era detentor de coisa alguma. As pessoas moravam ora na cidade e ora no campo. A cada dez anos muda­vam de casa para que não se apegassem a bens materiais. Todos tinham tudo o que era necessário à sobrevivência e ninguém es­tava excluído. Em relação aos advogados, Morus dispara todo tipo de crítica. A mentira, os desmandos, as tramas eram imperdoáveis. Em A utopia, sociedade perfeita, advogados eram dispensáveis. Era melhor que se falasse diretamente ao juiz, era melhor que se expusesse a questão sem as tortuosas voltas percorridas pelos ad­vogados, que levavam ao engodo. Este era seu conceito de justiça.

Francis Bacon, na Nova Atlântida, faz um esboço de sua socie­dade ideal, constituída a partir do conceito do saber. No centro da ilha ficava a Casa de Salomão, local em que todas as informações necessárias, de todas as partes do mundo, se faziam presentes. E to­das as pessoas tinham acesso a essas informações, condição funda­mental para que o detentor do saber não escravizasse o excluído do saber. Saber é poder, vaticinava Bacon, e para construir uma socie­dade ideal era preciso permitir a todos o acesso ao saber. O medo, a escravidão, a alienação, a apatia, a ingenuidade, tudo decorre do desconhecimento. A edificação da justiça depende da distribuição igualitária do conhecimento.

La Boétie, jovem pensador francês, escreveu sua obra intitula­da O discurso da servidão voluntária para denunciar o estado de injustiça que grassava em seu país. Não é possível, proclamava o filósofo, que um rei imponha tanto medo, tanta tirania contra uma multidão de seres humanos. Seres humanos que nasceram para a liberdade e que se acostumam à servidão ou que até optam pela servidão ou participam dela. Qualquer que seja a razão, costume, medo ou participação na tirania, o homem nega sua essência ao deixar de ser livre, e isso não é justo, e isso não é humano. Negar a liberdade é negar a justiça, é negar a humanidade.

Navegando em outros mares, nesse mesmo período histórico, o florentino Nicolau Maquiavel, em seu O príncipe, traça o perfil do homem no poder e analisa minuciosamente o seu exercício. Des­mitifica e desmistifica o conceito de poder. Tira-o do domínio do divino e o traz para a esfera humana. Trata-o não como coisa, mas como processo e enquanto processo é um toma-lá-dá-cá constante. Ninguém assegura que chegar ao poder significa sua mantença. Para isso é preciso fortuna (sorte) e virtú (mais do que virtude). E para isso é preciso também conhecimento. O florentino, ao tratar de estados com príncipes hereditários, de estados eclesiásticos, de guerras oriundas de decisões equivocadas, de exemplos de governantes que erraram ou que acertaram, mostrou-se um grande observador da ciência política. Sua obra é um marco do conhecimento hu­mano e das relações de poder. Muitos o criticaram achando que seu único objetivo era chegar ao poder e nele se manter. Rousseau resgata Maquiavel, afirmando que o filósofo não escreveu para o príncipe, porque este já dominava os ensinamentos apregoados por Maquiavel. Escreveu para o povo, para que o povo, ao conhe­cer os mecanismos de poder, conseguisse se libertar da escravi­dão e da tirania. Entretanto, como não poderia, naquela época, oferecer a obra ao povo, preferiu oferecê-Ia a Lourenço de Médici. Há outras razões não tão humanistas que levaram Maquiavel a oferecer-lhe a obra. Ele desejava retomar espaço e influência na nova fase política de Florença. Entretanto, o que nos importa aqui observar é a necessidade vital de conhecimento, seja na reflexão utópica, seja no realismo político. Conhecimento é imprescindí­vel para se atingir o poder, para mudar a realidade, para chegar ao Direito, para a justiça.

Montesquieu, já no século XVII, parte do conceito de que "antes que houvesse leis, existiam relações de justiça possíveis"; e conti­nuava: "Dizer que não há nada justo ou injusto, a não ser o que é ordenado ou proibido pelas leis positivas, é o mesmo que afirmar que, antes de traçarmos um círculo, os raios não eram todos iguais".

Com isso, o pensador quer valorizar essa tendência humana de de­senvolver o que é justo. É a crença de que há uma lei natural que governa os governantes e que governa os povos da terra. Não pode­ríamos, portanto, como já vimos em Tomás de Aquino, afastarmo­-nos desse princípio primeiro que é também o princípio primeiro de justiça, que se faz presente na razão humana.

Em razão da premência de espaço, vamos dar um salto na Histó­ria e tomar algumas considerações feitas por Hans Kelsen logo após o prefácio de sua obra O que é a Justiça:

Quando Jesus de Nazaré, no julgamento perante o pretor romano, ad­mitiu ser rei, disse ele: 'Nasci e vim a este mundo para dar testemunho da verdade! Ao que Pilatos perguntou: 'O que é a verdade?' Cético, o romano obviamente não esperava resposta a essa pergunta, e o Santo também não a deu. Dar testemunho da verdade não era o essencial em sua missão corno rei messiânico. Ele nascera para dar testemunho da justiça, aquela justiça que Ele desejava concretizar no reino de Deus. E, por essa justiça, morreu na cruz.

Dessa forma, emerge da pergunta de Pilatos - o que é a verdade? -, através do sangue do crucificado, urna outra questão, bem mais veemen­te, a eterna questão da humanidade: o que é a justiça?

Nenhuma outra questão foi tão passionalmente discutida; por ne­nhuma outra foram derramadas tantas lágrimas amargas, tanto sangue precioso; sobre nenhuma outra, ainda, as mentes mais ilustres - de Platão a Kant - meditaram tão profundamente. E, no entanto, ela con­tinua até hoje sem resposta. Talvez por se tratar de uma dessas questões para as quais vale o resignado saber de que o homem nunca encontrará uma resposta definitiva; deverá apenas tentar perguntar melhor.

Kelsen prossegue na obra tentando objetivar o conceito de jus­tiça. Trata-se de uma norma jurídica, não de uma norma moral ou religiosa. Não fosse norma jurídica não seria possível mensurá-Ia, exigi-Ia. O ser humano é absolutamente subjetivo e se conceitos de tal importância ficarem apenas no campo das discussões abs­tratas, nada de concreto poderá ser feito para a edificação da jus­tiça. A tese de Kelsen encontra respaldo na própria complexidade e diversidade de explicação a respeito de justiça. Em uma linha liberal, a justiça poderia ser definida como o dar a cada um segun­do seus méritos. Já o socialista, dar a todos de igual ordem o que necessitem, sem exclusão. Então, o mais objetivo é o dar a cada um conforme os seus direitos legais, pensa Kelsen. O que está posto. O que está escrito. Entretanto, a questão não é tão simples assim.

Como vimos, historicamente a questão do acesso ao conhecimento é de fundamental importância para se chegar a um conceito de jus­tiça. Os excluídos, os que não têm consciência do próprio direito, os que não sabem ler ou que não sabem entender o que lêem, os que não têm acesso aos mecanismos que trazem a informação estão também alijados da justiça. Os que têm medo pela própria falta de conhecimento talvez se sintam diminuídos ao buscar uma delega­cia de polícia, um fórum ou um organismo que cuide de seus di­reitos. No caso da Justiça do Trabalho, quantos empregados dizem com orgulho que lá (nesse organismo judiciário) ele é tratado de igual para igual com seu patrão. Imaginem se o juiz utilizar uma linguagem inacessível. Basta isso para fazê-Io sentir-se diminuído. E o espaço democrático acaba se tornando amedrontador. Aliás, não se pode pensar o Direito sem a democracia. E democracia de fato. Ou o povo tem acesso e consciência, ou a assertiva de que to­dos são iguais perante a lei será ineficaz.

O mundo contemporâneo está cheio de tentativas de explicação para esse complexo e abstrato valor. Tão complexo quando a so­ciedade. O direito que se estabeleceu em bases sólidas, segundo o positivismo, começa a repensar sua atuação. Há tantos fenômenos marcando a evolução do ser humano que o Direito não pode ficar à margem. A bioética traz questões fulcrais: a venda de órgãos huma­nos, a venda de óvulos de modelos de beleza para obter a geração de "crianças superiores". Esse nefando conceito de raça superior, infelizmente, costuma reaparecer, mesmo depois de banido.

As relações de trabalho - o ser humano virando uma empresa, perdendo direitos conquistados a um alto custo em nome do di­reito à sobrevivência. O mundo cibernético, a Internet como livre rede de informações, mas também de crimes, de consultas sérias, mas de exibição de corpos infantis em situação vergonhosa. O Di­reito internacional e suas propostas pluralistas em oposição a uma proposta imperialista, sua defesa da soberania aliada à integração. O Direito público e os intricados mecanismos de burlar a ordem legal para se chegar ao poder e nele, sem prazo, continuar. As ques­tões pertinentes à teoria da pena. O senso comum exigindo, muitas vezes, a volta da vingança privada ou pública como uma forma de resgate da justiça. O direito à informação, mas também o direito à privacidade. O direito de receber, mas o direito de ser deixado em paz quando preferir não receber. As questões ambientais e o direito à vida ameaçado pela insólita falta de água no planeta da água. O direito ao exercício da própria cultura conflitando com o direito ambiental (no caso dos animais) - a Constituição brasileira garante que um animal não deva ser submetido a crueldade, mas a cultura preserva a farra do boi em Santa Catarina.

O poder da mídia que gera opiniões contraditórias, que conduz a massa de um lado a outro, que impõe o domínio da política nefan­da sobre o domínio da técnica, que usa, muitas vezes, um discurso enganador para ludibriar algo ou alguém e se atingir determinado fim. E onde fica a justiça? No plano da abstração ou do concre­to? Nas discussões fechadas ou no cotidiano das ruas? Talvez, nos dois lugares. Não se pode perder de vista que o empobrecimen­to dos valores conceituais construirá uma sociedade ainda mais ignorante e mais distante dos valores universais. De outro lado, não se pode desprezar o emaranhado de coisas acontecendo no dia-a-dia e provando que não há justiça nenhuma neste país ou neste mundo. As filas intermináveis para o atendimento médico, enquanto se prevê o direito universal à saúde; a luta incessante para se conseguir um espaço em alguma escola pública, enquanto a Constituição preceitua o livre acesso de todos à educação. Os mo­tins, as chacinas em locais públicos como a Febem e as penitenci­árias enquanto se trata do dever do Estado dar proteção às pessoas que se encontram sob sua tutela. Sem falar da atuação vergonhosa de vereadores, deputados e outros representantes do povo em suas diversas instâncias. O que estão fazendo? Comprometidos e envol­vidos num mar de corrupção e ainda de falta de identidade. Quan­tos sabem qual o papel de um legislador? E a justiça?

Como podemos invocar esses milênios de conhecimento a res­peito da justiça enquanto, na prática, o povo assiste a um distan­ciamento desses princípios, de tal ordem que seus valores se vão banalizando? É o que Tércio Sampaio Ferraz mostra ao levantar o problema da destruição da justiça enquanto sentido unificador do universo moral do homem. Destruir a justiça é destruir o Direito. A justiça confere ao Direito um significado, uma razão de existir.

E Miguel Reale pontifica, em sua Teoria tridimensional do Direito, que "Direito é a concretização da idéia de justiça na pluridiver­sidade de seu dever-ser histórico, tendo a pessoa como fonte de todos os valores". E a pluridiversidade é um conceito fundamental. Trabalhar com diversidade religiosa, cultural, ideológica, de raça, de etnia, de gênero, de classe social é trabalhar e conviver em um mundo plural. Respeitando e construindo o conceito de respeito.

O problema da justiça não é exclusividade do Brasil. O mundo todo tem problemas na ordem política, econômica, na violência, na corrupção, na educação e outros. A imagem que internalizamos, de que somos inferiores, não nos eleva a patamar algum. É preciso recuperar a auto-estima cidadã, isto é, o papel que podemos exercer na transformação dessa sociedade em que estamos inseridos. Para­fraseando e recriando Chaplin, precisamos de mais que leis, preci­samos de humanidade. As leis não resolvem todos os problemas e não constroem, somente elas, a justiça. É o hábito da virtude, que defendia Aristóteles, hábito que depende da educação, educação que depende da vontade política dos governantes. Mas, como não podemos viver de lamúrias, é preciso fazer alguma coisa e não ficar apenas esperando soluções que venham de outros lugares. É possí­vel e é preciso lutar pela justiça.

E lutar pela justiça é obrigação de todo ser humano, mas é ainda maior para aquele que optou pela área do Direito. É a prática como juiz, como promotor, como advogado que nos permite restabelecer o que deve ser restabelecido. Apenas com o uso da linguagem o juiz pode fazer com que o cidadão à procura da justiça se sinta valorizado ou inferiorizado. Em seu julgamento, pode restabele­cer a justiça ou negligenciá-Ia. Cada julgamento é uma história. É uma história de vida. E as partes, como dizia o saudoso mestre André Franco Montoro, não são números, fichas, coisas, são seres humanos. O juiz pode pensar que, dependendo de sua decisão, ao conceder ou não a guarda, ao determinar que se reintegre ou não a posse, ao exigir que o patrão pague mais ou menos ao empregado, ao prender ou ao soltar, constrói ou destrói humanidade. Na práti­ca da advocacia, o advogado pode-se mostrar zeloso, preocupado com cada causa ou negligente, distante, despreocupado se o cliente passa na prisão mais tempo do que devia, afinal é apenas mais um.

É na atuação de defensor da sociedade que o promotor encontra espaço para ser minucioso, competente, justo em sua função; e o delegado de polícia que busca a verdade sem se valer de meios ilícitos, sem cometer crime, sem espancar, sem colocar em situação humilhante o preso, também está na luta pela justiça.

O Direito não pode estar à margem das transformações sociais. Não pode viver ensimesmado, sem olhar para o mundo, apenas es­perando que o legislador crie nova lei e que o interessado se dirija às cortes para reclamar seu direito. A democratização do acesso à justiça já é garantia constitucional. A linguagem tem de ser adequa­da ao auditório, que precisa entender os termos técnicos que regem essa área, senão os cidadãos não terão seus direitos garantidos, não terão atendidos os pressupostos mínimos da democracia. Thdo isso está nas nossas mãos. É preciso acreditar, e se acreditarmos as coi­sas começarão a mudar. Senão, o que estaríamos fazendo aqui? Por que escolher essa profissão?

Há uma antiga história que fala de uma comunidade de animais que viviam felizes em seu reino. Todos eram justos uns com os ou­tros e tudo funcionava perfeitamente bem. Havia um lago em que os animais se lavavam, bebiam água, nadavam e alguns até viviam nele. Certa feita apareceu um alce gigante que começou a beber e a beber toda a água do lago. E, além disso, também batia forte com os pés na margem, de modo que a terra ia cedendo e o lago ia ficando mais raso. Os animais começaram a entrar em pânico sem saber o que fazer. Os castores desesperados, os coelhos correndo para lá e para cá sem encontrar a solução. As lontras nervosíssimas, e os peixes nem se fale. Morreriam todos a qualquer momento.

Os animais tentaram de alguma forma espantar o alce. Mas tive­ram muito medo, o alce era gigante e nada podiam fazer. Até que uma mosca se ofereceu para afastar o alce para longe. Os animais, apesar do nervosismo, desataram a rir. Que poder tinha aquela mos­ca pequenina para afastar um alce gigante? A mosca nem se impor­tou com os risos. Disposta a fazer o serviço dela, foi em frente.

Pousou em uma das patas do alce e mordeu com toda força que tinha. O alce batia com a pata para se livrar da mosca. E cada vez que batia a mosca levantava vôo e ia morder outra parte do corpo, zumbindo. De novo mordia e fazia barulho. E assim foi deixando enlouquecido o alce, que se pôs a correr completamente fora de si, e como não conseguia se livrar daquela maldita mosca, fugiu para longe do lago e nunca mais voltou.

A mosca ficou muito feliz com a conquista e gritou para os ou­tros animais: "Mesmo o pequeno pode combater o forte se usar sua cabeça para pensar".

Esse é o nosso desafio. Se nos sentirmos impotentes e nadando contra a maré, nada poderemos fazer e tudo continuará do jeito que está. Se nos enchermos de força, de garra, de competência e de luta conseguiremos fazer alguma coisa por esse povo que clama e que necessita de justiça. O ideal que motivou pensadores de todos os tempos a refletir e a fazer justiça é o mesmo que nos motiva. Neste milênio que se inicia, o que faremos para dar novas respostas aos mesmos problemas? O humanismo integral de Jacques Maritain, o homem todo e todos os homens. A coragem de Rui Barbosa ao es­crever aos moços, a expectativa de Mário de Andrade: o que farão esses moços? O que farão esses juristas?, perguntamos nós. A since­ridade de Mário Quintana: "e no dia em que tratares a um dragão de Joli, ele te seguirá por toda a parte como se fosse um cachorrinho". Essa é a sonhada civilização do amor desejada por Aristóteles: onde há amizade, nem a justiça é necessária.

Os numerosos movimentos de solidariedade, as ONGs que tra­balham na recuperação de pessoas no mundo inteiro, o trabalho voluntário de uma legião que entendeu o prazer gratificante da doação voluntária, tudo isso prova que Aristóteles continua cor­reto. É preciso, pois, mudar a mulher e o homem; mudando-os, mudaremos o mundo. É uma utopia? A justiça é uma utopia? Para alguns sim, e nada há para ser feito, já que a utopia é inalcançável. Para nós, a justiça não é uma utopia - é uma realidade que pre­cisa ser construída diariamente. Não podemos cruzar os braços. Os omissos, os covardes, os acomodados deixaram de sonhar e ao deixarem de sonhar, como diria o poeta, deixaram de viver. É claro que só o sonho não resolve. É preciso fazer. É preciso ter alma de poeta e mãos de obreiro. Se não tivermos a alma do poeta, esqueceremos até o motivo que nos levou a optar pela profissão do Direito e da justiça. E se não tivermos mãos de obreiro, ficaremos em belos discursos e belas palavras e bela roupagem. E o resto? Comecemos!

(*) Gabriel Chalita, Doutor em Filosofia do Direito e Doutor em Comunicação e Semiótica, mestre em Direito e mestre em Ciências Sociais; bacharel em Direito e bacharel em Filosofia.

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O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)