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21 de novembro de 2007

STJ decide que venda de bebida alcoólica a menor configura contravenção penal e não crime previsto no ECA


RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 19.661 - MS (2006⁄0120886-6)
RELATOR: MINISTRO ARNALDO ESTEVES LIMA
RECORRENTE: J V A
ADVOGADO: CARLOS JOSÉ REIS DE ALMEIDA
RECORRIDO: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL

RELATÓRIO

MINISTRO ARNALDO ESTEVES LIMA:
Trata-se de recurso ordinário em habeas corpus interposto em favor de J. V. A – denunciado pela suposta prática dos crimes previstos nos arts. 243 da Lei 8.069⁄90 e 330 do Código Penal – contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul, nos termos da seguinte ementa (fl. 41):

HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL POR FALTA DE JUSTA CAUSA. IMPOSSIBILIDADE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CARACTERIZADO. ORDEM DENEGADA. A denúncia contém a qualificação do acusado, a classificação do crime, o rol de testemunhas e a exposição do fato criminoso, incabível, portanto, o trancamento da ação penal, enquanto demanda, induvidosamente, profunda incursão no conjunto da prova.

Sustenta o recorrente a ausência de justa causa para a ação penal sob os seguintes argumentos:

a) já responde administrativamente pelos fatos narrados na denúncia; b) a venda de bebida alcoólica a menor não é conduta abrangida pelo tipo descrito no art. 243 da Lei 8.069⁄90; c) a desobediência a alvará judicial, no caso, não caracteriza o crime previsto no art. 330 do Código Penal, uma vez que, para a essa conduta, há previsão específica de sanção administrativa nos arts. 252 e 258 da Lei 8.069⁄90.

O Ministério Público Federal opina pelo provimento parcial do recurso para que seja determinado o trancamento da ação penal apenas em relação ao crime do art. 330 do Código Penal (fls. 68⁄75).

É o relatório.

RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 19.661 - MS (2006⁄0120886-6)

EMENTA

HABEAS CORPUS. PENAL. VENDA DE BEBIDA ALCOÓLICA A MENOR DE 18 ANOS. CONDUTA QUE CARACTERIZA CONTRAVENÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA NÃO EVIDENCIADA. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. DESCUMPRIMENTO DE ALVARÁ JUDICIAL. INGRESSO E PERMANÊNCIA DE MENORES EM CASA DE ESPETÁCULOS. PREVISÃO DE SANÇÃO ADMINISTRATIVA EM LEI ESPECÍFICA. FATO ATÍPICO. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA.
1. O trancamento da ação penal por esta via justifica-se somente quando verificadas, de plano, a atipicidade da conduta, a extinção da punibilidade ou a ausência de indícios de autoria e prova da materialidade, o que não se vislumbra na hipótese dos autos. Precedentes.
2. Não há falar em trancamento da ação penal iniciada por denúncia que satisfaz todos os requisitos do art. 41 do CPP, sendo mister a elucidação dos fatos que em tese caracterizam a contravenção penal prevista no art. 63 do Decreto Lei 3.688⁄41, à luz do contraditório e da ampla defesa, durante o regular curso da instrução criminal.
3. Não caracteriza crime de desobediência (art. 330 do Código Penal) o descumprimento de determinação constante em alvará judicial que regula o ingresso e a permanência de menores em casa de espetáculos se, para tal descumprimento, há previsão de sanção de natureza administrativa no próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo o fato atípico. Precedentes.
4. Ordem parcialmente concedida apenas para determinar o trancamento da ação penal quanto ao crime previsto no art. 330 do Código Penal.

VOTO

MINISTRO ARNALDO ESTEVES LIMA (Relator):
O trancamento da ação penal pela via do habeas corpus só se justifica quando verificadas, de plano, a atipicidade da conduta, a extinção da punibilidade ou a ausência de indícios de autoria e prova da materialidade (HC 38.895⁄RS, Rel. Min. GILSON DIPP, DJ de 14⁄3⁄2005, p. 400; RHC 16.833⁄SP, Rel. Min. FELIX FISCHER, DJ de 14⁄3⁄2005, p. 386; RHC 15.568⁄SP, Rel. Min. LAURITA VAZ, DJ de 14⁄3⁄2005, p. 383).

Nesse sentido, adoto como razões de decidir os argumentos constantes do parecer exarado pelo Subprocurador-Geral da República Wagner Natal Batista, in verbis (fls. 70⁄75):

O recurso deve ser processado. É tempestivo e a matéria foi debatida no Tribunal de origem.

O primeiro fundamento da ordem deve ser rechaçado de plano. É consagrada na legislação, doutrina e jurisprudência a independência das instâncias penal, civil e administrativa, não havendo necessidade de expressa previsão na norma para tanto, salvo em casos especiais. Aliás o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente prevê sanções penais e administrativas para condutas idênticas.

O art. 243 do referido diploma dispõe da seguinte forma:

"Vender, fornecer ainda que gratuitamente, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a criança ou adolescente, sem justa causa, produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, ainda que por utilização indevida:

Pena - detenção de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave".

Sendo a conduta do paciente a venda de bebidas alcoólicas a menores, afirma o recorrente que bebidas alcoólicas não estão compreendidas no elemento normativo do tipo, posto que o art. 81 do mesmo Estatuto diferencia bebidas de "produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica", senão vejamos:

"Art. 81. É proibida a venda à criança ou ao adolescente de:
I - omissis
II - bebidas alcoólicas
III - produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica ainda que por utilização indevida".

A venda de bebidas alcoólicas a crianças e adolescentes é expressamente vedada pelo ECA. Resta saber se tal conduta caracteriza crime a ensejar a ação penal.

A norma do art. 243 do ECA classifica-se como norma penal em branco, cujo preenchimento deve ser feito por norma infralegal oriunda do Ministério da Saúde, a quem compete dizer o que está contido no elemento normativo "produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica". As bebidas alcoólicas não estão compreendidas neste conceito, segundo regulamentação da ANVISA. Assim, não pode ser imputada ao paciente a conduta prevista no supramencionado artigo.

A solução de conflitos aparentes de normas em matéria penal resolve-se pelos critérios da consunção, subsidiariedade e especialidade. No caso, há norma penal específica para a punição da venda de bebidas alcoólicas a menores, o art. 63 do DL 3.688⁄41 (Lei de Contravenções Penais).

Apesar de a denúncia dar capitulação errônea ao fato descrito, ela efetivamente descreve fato que constitui contravenção penal, não sendo o trancamento da ação a solução recomendada. É que conforme dispõe o art. 383 do Código de Processo Penal, o juiz pode dar ao fato capitulação diversa da contida na exordial acusatória.

Vejamos precedente desta Casa versando sobre semelhante situação:

RECURSO DE HABEAS CORPUS. CONTRAVENÇÃO PENAL - ART. 63, DO DECRETO-LEI N. 3.688⁄41. VENDER OU SERVIR BEBIDA ALCOÓLICA A MENOR DE 18 ANOS.
Se a denúncia revela indício de contravenção penal, com autoria certa, não pode ser trancada a respectiva ação. Inexiste constrangimento ilegal. Recurso improvido. (RHC 1.858⁄SP, Rel. Min. JOSÉ CÂNDIDO DE CARVALHO FILHO, DJ 22⁄6⁄1992)

Deve, portanto, a ação penal prosseguir em relação à conduta do paciente de vender bebidas alcoólicas a menores.

Por fim, resta saber se o descumprimento do alvará judicial caracteriza ou não o crime de desobediência.

Percebemos que as ordens contidas no alvará judicial apenas regulam proibições já previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, proibindo a entrada de menores de 16 anos no estabelecimento do paciente, condicionando a entrada de maiores de 16 anos e menores de 18 à autorização dos pais e determina a afixação do alvará no estabelecimento.

Para o descumprimento de tais proibições, há previsão de punições administrativas (arts. 252 e 258 do ECA), inclusive o paciente já responde por essas infrações.

Assim, incide o entendimento desta Corte de que se houver previsão de responsabilização administrativa ou cível para o descumprimento de determinação de funcionário público, o fato é atípico, não configurando o crime de desobediência, salvo ressalva expressa da lei, senão vejamos:

PENAL – CRIME DE DESOBEDIÊNCIA – DETERMINAÇÃO JUDICIAL ASSEGURADA POR SANÇÃO DE NATUREZA CIVIL – ATIPICIDADE DA CONDUTA. As determinações cujo cumprimento for assegurado por sanções de natureza civil, processual civil ou administrativa, retiram a tipicidade do delito de desobediência, salvo se houver ressalva expressa da lei quanto à possibilidade de aplicação cumulativa do art. 330, do CP. Ordem concedida para cassar a decisão que determinou a constrição do paciente, sob o entendimento de configuração. (HC 16.940⁄DF, Rel. Min. JORGE SCARTEZZINI, DJ 18⁄11⁄2002)

PENAL. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. DETERMINAÇÃO JUDICIAL ASSEGURADA POR MULTA DIÁRIA DE NATUREZA CIVIL (ASTREINTES). ATIPICIDADE DA CONDUTA.
Para a configuração do delito de desobediência, salvo se a lei ressalvar expressamente a possibilidade de cumulação da sanção de natureza civil ou administrativa com a de natureza penal, não basta apenas o não cumprimento de ordem legal, sendo indispensável que, além de legal a ordem, não haja sanção determinada em lei específica no caso de descumprimento. (Precedentes). Habeas corpus concedido, ratificando os termos da liminar anteriormente concedida. (HC 22.721⁄SP, Rel. Min. FELIX FISCHER, DJ 30⁄6⁄2003).

Alberto Silva Franco, sobre o tema, assim se manifestou, verbis:

"Se, pela desobediência de tal ou qual ordem oficial, alguma lei comina determinada penalidade administrativa ou civil, não se deverá reconhecer o crime em exame, salvo se a dita lei ressalvar expressamente a cumulativa aplicação do art. 330 do CP" (v.g. "Código Penal e sua interpretação jurisprudencial, vol. 1, Tomo II, 6ª ed., p.3.697).

Na mesma esteira, merecem destaque as considerações de Celso Delmanto, que salientou, verbis:

"As determinações cujo cumprimento for assegurado por sanções de natureza civil ou processual civil quanto às administrativas, retiram tipicidade do delito de desobediência (TACrSP, RT 713⁄350) (cf. "Código Penal Comentado", 6ª ed., p. 661).

Sendo atípico o descumprimento do alvará judicial, não há justa causa para o processamento do paciente pelo crime de desobediência.

Ante o exposto, concedo parcialmente a ordem apenas para determinar o trancamento da ação penal quanto ao crime previsto no art. 330 do Código Penal.

É o voto.

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