A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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19 de novembro de 2007

"Justo para ambas as partes": Sobre Luciano Huck, o “Correria” e Rolex


A idéia que liberta o homem também pode ser a sua prisão.

A realidade é uma só, mas o homem, para compreendê-la, tem de repartir os fatos, dividi-los, tentar disciplinar o que vê e o que presume que ocorra, valorá-los e buscar uma lógica: numa palavra, recriá-los na sua mente. Nesse seu trabalho, pode criar uma teoria que ganha corpo, coerência interna, formando às vezes uma visão de mundo, e até uma ideologia.

Esquece, por vezes, o homem que esse produto de sua mente nem sempre é inteiramente fiel aos fatos, nem sempre os esclarece, muitas vezes distorce-os e até os mascara. Isso ocorre no cotidiano, mas também acontece na própria ciência.

A teoria é um instrumento que se constrói para visualizar um problema, uma série de questionamentos, mas não dá para reduzir o mundo a esse corpo teórico. Marx criou um sistema teórico que foi capaz de identificar problemas econômicos e sociais causados pela revolução industrial e pelo capitalismo em dado contexto histórico. Mas esse “aparelho teórico” não serve para resolver problemas de Física.

O erro é que muitas pessoas formam seu ponto de vista sua teoria peculiar e querem submeter toda complexidade da realidade a ele.

Em suma: a idéia que libertou o homem de sua condição mais primitiva, também faz a sua prisão.

Muito se falou sobre o lamentável – mas pelo jeito foi até festejado por alguns - fato do roubo do Rolex de Luciano Huck.

Para opinar, pessoas, logicamente, têm lançado mão de seus valores pessoais, seu corpo de idéias, sua visão de mundo. E não poderia ser de outro jeito, assim é o ser humano; mas por outro lado o debate sobre esse assunto está com fortíssima radicalização, o que tem acarretado distorções anormais, decorrente da extremada e parcial visão de cada um. Sinal do tempos, a sociedade brasileira caminha para uma (ou está em plena?) radicalização de grandes proporções.

Talvez, a longa história de exclusão e violência do Brasil esteja começando a lhe cobrar as contas.

Acho que certos pontos da realidade também devem ser discutidos e que ficaram omissos. O debate em termos de “mauricinho-grife de luxo-ladrão injustiçado pelo sistema” a meu ver é parcial, porque não só não leva em conta toda complexidade do que está ocorrendo no país, como parece justificar o ocorrido. Mas, não poderíamos querer esse estado de coisas.

Para muitos Huck é culpado por andar com um relógio de grife . Discordo. Rolex não é apenas um “relógio de grife”, o seu valor nunca foi a futilidade de uma mera “grife” Grife: essa coisa que virou uma indústria, forte, como é a São Paulo Fashion Week e outras veleidades desse tipo.

Economicamente a indústria da grife, ou do luxo, é importante, mas, hoje, essa mesma indústria também é quem ajuda a alimentar a violência, como filha espúria do consumismo imoderado e impossível para um país não só de baixa renda mas também com a mais odiosa distribuição possível dela. A meu ver isso não tem sido suficientemente discutido ainda.

Mas Rolex, se não é grife, é um relógio caro. Máquina sofisticada do ponto de vista da engenharia relojoeira, é produto de fácil liqüidez, em qualquer lugar do mundo.

Andar portando um relógio caro em São Paulo é arriscar-se muito. Luciano com certeza sabia disso, e o risco aconteceu-lhe.

O paradoxal é o fato do Sr. Huck ser apresentador da TV Globo, a mesma rede de televisão (aliás como muitas das demais) que incentiva o consumismo irreal, age cinicamente, e divulga muitos dos piores valores que assolam o Brasil. A rede que não hesita em, confessadamente, manipular informações para eleger quem de seu gosto e conveniência. A Rede Globo tem culpa nesse cenário. De resto, a televisão brasileira é, em sua maioria, extremamente antidemocrática, excludente e irresponsável, adotando no mais das vezes uma linguagem maniqueísta e infantil em sua programação.

Sob outro ponto de vista, o escritor Ferréz imaginou , no seu artigo para o jornal Folha de São Paulo (http://www.ferrez.com.br/index.html#) o seguinte lado : um “correria” (o tipo de ladrão) tirou o relógio de Huck. Imaginou o autor do artigo o drama do “correria”, com filho para cuidar, parentes dependentes do seu “trabalho”. Da mãe bêbada, que ele encontraria no bar antes de sair para a “missão” Do pai que não teve perto.

Teria o “correria” alternativa? O “movimento” (esse misto de bandidagem e ideário na periferia) fascina o jovem, atrai as meninas, dá “status” na comunidade, permite acesso a grifes.

Ferréz é um narrador talentoso, sua mensagem foi passada e bem, a titulo de contraponto. Sua missão foi instigar; fê-lo bem.

Funk, pó e violência: a santa trindade da atração para crime organizado.

Talvez não tivesse alternativa o “correria”, mas também talvez o “correria” não quisesse alternativa; para muitos, estudar dá trabalho, é chato, nem há muitas condições para isso – não que inexistam condições, mas são poucas e duras. Ademais, para que resistir ao paradigma da “estética da violência”, que avassala nossa sociedade contemporânea, e ao seu aliado, o consumismo exagerado?

Continuamos há quase trinta anos culpando a sociedade, o tráfico, continuamos “embarcando na onda” da guerra ao tráfico (para alegria dos vendedores de armas), culpando os “playboys cheiradores”, os “correrias”, políticos, policiais e magistrados corruptos, os advogados do crime organizado, já apontamos quase todos ! Mas só fazemos promulgar leis mais duras que não conseguimos cumprir, ou descarregamos nossas consciências em discutíveis ONG’s e na suposta função social das empresas, o que muitas vezes nada mais é do que transferir a responsabilidade do Estado (único que teria recursos e meios suficientes para mudar radicalmente o panorama). E continuamos comprando armas, muitas armas para fazer guerra contra meninos e adolescentes, ou pouco mais velhos do que isso!

E tudo continua como Gilberto Gil dizia na música Tempo Rei: transformando-se... só que, temos visto, tem sido para pior.

São tantas vertentes do problema que vai ser muito difícil mudar esse panorama.

Enquanto isso: foi justo para o “correria”? Ilegal sim; mas foi “justo para ambas as partes”, disse-o Ferréz: um ficou com o relógio e outro com a vida. É a lei da selva, ou de uma guerra. Não está dando para revogar essa lei.

Mas, e se Luciano estivesse armado e, assustado, talvez pensando também no seu filho que acabara de nascer, matado o “correria”? Se Huck tivesse virado Hulk.

“Justo também para ambas as partes”. A lei da guerra é assim: matar ou morrer.

A cada dia que passa, isso vai ficar para as pessoas mais claro. E caro.

Por Jarbas Andrade Machioni, advogado - http://www.ultimainstancia.com.br/

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