A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



Pesquisar Acervo do Blog

2 de novembro de 2007

Princípio Antrópico: uma justificativa científica para a dignidade humana


O presente texto não é propriamente “jurídico”. Na verdade, não tem nada de jurídico. Ele contém apenas algumas inquietações “filosóficas” de um jurista que também gosta de temas como a criação do universo e da vida. Por isso, ele não é uma peça essencial deste Curso de Direitos Fundamentais, embora tenha uma conexão com o princípio dignidade da pessoa humana. Se você preferir “pular” essa análise do princípio antrópico fique à vontade. Do contrário, caso prefira continuar essa “viagem”, sugiro que mantenha os pés no chão e a cabeça nas nuvens.

Em princípio, pode parecer meio sem sentido tentar fazer alguma ligação entre as descobertas científicas e a dignidade da pessoa humana. Afinal, o que é que o modelo do “big bang” ou a física quântica teriam a acrescentar à concepção jurídica de dignidade humana?

Na verdade, elas modificam bastante os fundamentos filosóficos que alicerçam a dignidade do homem.

Como se sabe, a noção original de dignidade da pessoa humana foi moldada e construída a partir da concepção de que o “homem é a medida de todas as coisas”. Feitos à imagem e semelhança de Deus, os homens seriam criaturas divinas especiais ocupando um lugar de destaque no universo, até porque o Planeta Terra seria o centro de tudo.

De repente, a ciência conseguiu destruir cada uma dessas cômodas concepções de mundo, que nos fazia viver melhor, já que fornecia algum sentido especial para nossa existência.

Primeiro, vieram Copérnico, Kepler, Galileu, entre outros, que demonstraram que a terra gira em torno do sol e não o contrário. Logo, se existisse um centro para o universo, esse centro seria ocupado pelo sol e não pela Terra.

Depois, vieram os astrônomos com seus poderosos telescópios que demonstraram que a Via Láctea é apenas mais uma entre bilhões de outras galáxias que compõem o universo (cerca de 140 bilhões), muitas delas bem maiores do que a nossa.

Portanto, como explica o físico brasileiro Marcelo Gleiser, “nossa galáxia, a Via Láctea, é apenas uma entre bilhões de outras, sendo sua posição perfeitamente irrelevante. Nosso planeta não ocupa uma posição especial no sistema solar, nosso Sol não ocupa uma posição especial em nossa galáxia, e nossa galáxia não ocupa uma posição especial no Universo”[1].

Além disso, dentro da linha temporal do universo, ainda somos apenas bebês. A Terra tem cerca de 4,6 bilhões de anos, enquanto os homens existem há apenas alguns milhares de anos. Se a história do universo fosse representada como uma linha do tempo esticada entre as mãos na extremidade de dois braços estendidos, então uma lixa de unha poderia apagar toda a existência humana com um único aparar de unhas[2]. “Nós fazemos parte de apenas cerca de 0,0001% da história da terra”[3].

Em um contexto menos cosmológico, Charles Darwin apresentou provas convincentes de que os homens seriam apenas uma evolução natural dos primatas, que, na luta pela vida (“struggle for life”), conseguiram desenvolver algumas habilidades diferenciadoras, como a capacidade de raciocinar.

Um século depois de Darwin, com a descoberta do DNA e com o mapeamento do genoma humano, ficou efetivamente demonstrado que não somos muito diferentes, em essência biológica, do que os nossos ancestrais primatas:

“Por mais complexa que seja, no nível químico a vida é curiosamente trivial: carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio, um pouco de cálcio, uma pitada de enxofre, umas partículas de outros elementos bem comuns – nada que você não encontre na farmácia próxima -, e isso é tudo de que você precisa. A única coisa especial nos átomos que o constituem é constituírem você. É o milagre da vida”[4].

Será que somos mesmo apenas “filhos do carbono e do amoníaco”, como defendia pessimistamente o poeta Augusto dos Anjos? Somos apenas “lixo nuclear” ou “refugos estrelares”, como dizem os astrofísicos mais realistas?

Não é bem assim. Na verdade, a própria ciência, responsável pela destruição dos mitos da criação, cuidou de encontrar respostas para tornar mais relevante nosso papel no universo. Como defende Simon Singh, parece as forças que controlam a evolução do universo foram ajustadas cuidadosamente para que existíssemos[5]. O princípio antrópico – prossegue Singh – declara que qualquer teoria cosmológica deve levar em conta o fato de que o universo evoluiu para nos conter[6].

No mesmo sentido, Bryson explica:

“Para estar aqui agora, vivo no século XXI e suficientemente inteligente para saber disso, você também teve de ser o beneficiário de uma cadeia extraordinária de boa sorte biológica. A sobrevivência na Terra é um negócio extremamente difícil. Das bilhões e bilhões de espécies de seres vivos que existiram desde a aurora do tempo, a maioria – 99,99% - não está mais aqui” [7].

Outra imagem bastante ilustrativa sobre a mágica da vida humana é a seguinte: imagine uma caixa bem grande contendo todas as peças de um Boing 777 desmontadas. Imagine agora que um furacão igualmente grande passou bem no local onde estava a caixa e a balançou bem muito. Depois que o furacão passar, você abre a caixa e vê o Boing todo montadinho, bonitinho, pronto para decolar. Essa é a mesma probabilidade para você está aqui hoje, vivo e pensando nessas coisas.

Seguindo essa mesma linha de reflexão, Marcelo Gleiser chega à conclusão de que:

“somos mesmo raros, que a vida é um privilégio e que a inteligência é uma centelha do divino que carregamos conosco. Com o poder vem a responsabilidade: se somos raros, devemos fazer todo o possível para preservar o que temos, para preservar nossa casa, nosso maravilhoso planeta, que nos permitiu chegar até aqui. Temos o dever não só de preservar a vida aqui, mas de criar uma ética cósmica, de espalhá-la pela galáxia, de fazer do cosmo uma entidade humana.

Talvez seja esse o nosso destino: povoar o universo de vida, celebrando a cada dia sua criatividade inigualável. Se as estrelas nos deram a poeira da qual somos feitos, e o Sol a energia para animá-la com vida, cabe a nós louvá-la. Disso depende o futuro de nossa espécie e, talvez, da vida no universo”[8].

Provavelmente, mais importante do que a capacidade de pensar e de se maravilhar com o mundo à nossa volta seja a capacidade de pensar eticamente. Fazer o bem não por instinto, mas por consciência de que isso é certo é, provavelmente, o que distingue os seres humanos dos outros seres. “Como seres humanos somos duplamente sortudos, é claro. Desfrutamos não só do privilégio da existência, mas também da capacidade singular de apreciá-la e até, de inúmeras maneiras, torná-la melhor” [9].

Para finalizar, faço questão de reproduzir as proféticas palavras de Pico Della Miràndola, que, no longínquo ano de 1486, escreveu um livro justamente sobre “A Dignidade do Homem” (o título original é “Oratio de Hominis Dignitate”), onde prenunciou:

“o homem, na verdade, é reconhecido e consagrado, com plenitude de direitos, por ser, efetivamente, um milagre”[10].

Agora podemos pousar.

Por George Marmelstein, juiz federal em Fortaleza-CE, http://georgemlima.blogspot.com/

NOTAS:

[1] GLEISER, Marcelo. A Dança do Universo – dos mitos de criação ao big-bang. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 353.

[2] SINGH, Simon. Big Bang. São Paulo: Editora RCB, 2006, p. 439.

[3] BRYSON, Bill. Uma Breve História de Quase Tudo. São Paulo: Quetzal Editores, 2004, p. 484. Para ilustrar a dimensão irrisória da participação humana no Planeta Terra, Marcelo Gleiser faz a seguinte ilustração: vamos imaginar que a Terra não tenha 4,6 bilhões de anos, mas apenas 46 anos. Nessa escala, nada podemos afirmar concretamente sobre a vida na primeira década de existência da Terra. A vida surgiu há pelo menos 35 anos, quando a Terra tinha onze anos. Montanhas e oceanos se formaram, e durante muito tempo a vida permaneceu em seu estado primitivo. Seres multicelulares surgiram há vinte anos. A vida floresceu nos oceanos há apenas seis anos, e saiu da água há quatro. Plantas e animais dominaram a superfície há dois anos. Os dinossauros atingiram o auge de sua existência há um ano, e quatro meses depois estavam extintos. Macacos humanóides se transformaram em humanóides macacos na semana passada, e a última Idade do Gelo ocorreu há alguns dias. Nossa espécie – Homo sapiens – surgiu cerca de uma hora atrás. E a renascença, junto com nossos heróis, Copérnico, Galileu, Kepler e Newton, aconteceu há apenas três minutos! (GLEISER, Marcelo. Poeira das Estrelas. Rio de Janeiro: editora Globo, 2006, p. 224/225).

[4] BRYSON, Bill. Uma Breve História de Quase Tudo. São Paulo: Quetzal Editores, 2004, p. 12.

[5] SINGH, Simon. Big Bang. São Paulo: Editora RCB, 2006, p. 451.

[6] SINGH, Simon. Big Bang. São Paulo: Editora RCB, 2006, p. 451. O filósofo canadense John Leslie imaginou o cenário do pelotão de fuzilamento para elucidar o princípio antrópico. Imagine que você foi acusado de traição e está esperando para ser executado diante de um pelotão de vinte soldados. Você ouve a ordem para disparar, vê os vinte fuzis atirararem e então percebe que nenhuma bala o atingiu. A lei diz que você pode ir embora, livre, em tal situação, mas, à medida que caminha para liberdade, começa a se perguntar por que ainda está vivo. Será que todas as balas erraram por acaso? Será que esse tipo de coisa acontece uma vez a cada 10 mil execuções, ou você apenas teve muita sorte? Ou haveria um motivo por trás de sua sobrevivência? Será que todos os vinte integrantes do pelotão de fuzilamento erraram deliberadamente porque acreditavam na sua inocência? Ou será que, quando as miras dos fuzis foram calibradas na noite anterior houve um erro de alinhamento, de modo que todos os fuzis dispararam dez graus para a direita do alvo? Você pode passar o resto da sua vida presumindo que a execução fracassada foi produto apenas acaso, mas será difícil não associar algum significado mais profundo à sua sobrevivência. p. 451/2

[7] BRYSON, Bill. Uma Breve História de Quase Tudo. São Paulo: Quetzal Editores, 2004, p. 12.

[8] GLEISER, Marcelo. Poeira das Estrelas. Rio de Janeiro: editora Globo, 2006, p. 275.

[9] BRYSON, Bill. Uma Breve História de Quase Tudo. São Paulo: Quetzal Editores, 2004, p. 484.

[10] MIRÀNDOLA, Pico Della. A Dignidade do Homem. Ed. Escala: São Paulo, 2002, p. 38.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom esse blog. Gostei muito. Se puder visite o meu. Aguardo a visita. Obrigado.

Postar um comentário

Atuação

Atuação

Você sabia?

Você sabia?

Paradigma

O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)