A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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2 de abril de 2007

A utilidade da criminologia para o Promotor de Justiça


SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. A natureza científica da Criminologia; 3. Investigação criminal e controle externo da atividade policial; 4. Atos infracionais e medidas sócio-educativas; 5. Outros procedimentos criminais; 6. Uma conclusão; Referências bibliográficas; Notas.

1.Introdução

Há quem diga que, para compreender o Direito, é necessário estudar muito mais do que Direito. A mensagem é clara: a formação do profissional das carreiras jurídicas deve passar, necessariamente, pelo contato com outros campos do saber humano, numa abordagem interdisciplinar. Só assim a aplicação e manipulação das normas poderá vir a ser mais dinâmica, vale dizer, melhor adequada às condições do meio social e com maior grau de eficácia.

Uma dessas ciências que se apresentam como fiéis aliadas do operador do Direito, sem dúvida, é a Criminologia. Nesse sentido, poder-se-ia defini-la como um conjunto de conceitos devidamente sistematizados que tratam da análise do perfil biopsicosocial do criminoso, do fenômeno do crime na sociedade, da participação da vítima no evento criminógeno e dos mecanismos de controle social atuantes sobre a criminalidade.

Por ora, discorreremos sobre a natureza científica da Criminologia. A partir daí, tentaremos demonstrar em que áreas do Direito esse ramo do conhecimento pode ser útil, e em particular, para o exercício das funções institucionais do Promotor de Justiça.

2.A natureza científica da Criminologia

Na história da humanidade, a existência mesma do crime e suas conseqüências sempre foi uma preocupação presente. Os atos que infringem as normas sociais, sobretudo quando graves e extremamente prejudiciais à convivência, aí incluídos o homicídio, a lesão corporal ou a ameaça, acarretam intranqüilidade e incertezas junto à comunidade, diluindo o sentimento de justiça, paz e harmonia. Essa situação tornou necessário conhecer com profundidade o homem que cometia esses delitos e as razões que o levaram a tanto. Daí que, no âmbito das ciências humanas ou culturais, o crime e o criminoso também passaram a ser objeto de estudo particular. Assim nasceu a Criminologia.

Todavia, antes de tratar da especificidade da Criminologia como ciência, convém traçar as características fundamentais do conhecimento científico, a fim de nos situarmos no vasto território do saber humano.

Pode-se dizer que a ciência moderna, desde Descartes e Bacon, e alcançando Kuhn e Popper, é um modo específico e qualificado de conhecimento, apresentando-se como seus elementos imprescindíveis: (a) o rigor metodológico, na medida que a aquisição do saber deve seguir regras preestabelecidas e tidas pelo consenso como adequadas aos objetivos esperados; (b) a necessidade de experimentação, isto é, de sujeição das hipóteses construídas a partir da observação da realidade concreta e empírica; (c) a possibilidade de refutação e a transitoriedade, vez que as hipóteses elaboradas pelo cientista eventualmente serão contrariadas pela realidade dos fatos, de tal maneira que a ciência não pode ser entendida como um conhecimento fechado e acabado, senão um processo que se complementa e se aperfeiçoa. Afinal, o que hoje é uma certeza científica, amanhã poderá deixar de sê-la.

A partir dessas premissas, faz-se importante destacar os dois campos sobre os quais a ciência atualmente se debruça: os fenômenos naturais e os sociais. A distinção, embora sem uma separação radical, torna-se até imprescindível, isto porque os métodos e os objetos de estudos se diferenciam em cada um deles.

A observação da natureza ensejou o surgimento da ciência contemporânea. Os fenômenos naturais estão adstritos ao âmbito do ser, daquilo que necessariamente deve acontecer, numa relação de causa e efeito, sob pena de a hipótese científica ser afastada porque não explica o que aconteceu. Em contrapartida, o palco de atuação das ciências humanas é a própria sociedade e o homem que a ela pertence. E dada a complexidade da natureza humana, até hoje incompreendida em todas as suas verdadeiras dimensões, não se pode falar em relação necessária de uma causa que gera um efeito. Há apenas um amplo campo de possibilidades, com tendências mais ou menos fortes e determinantes. Afinal, o homem é essencialmente livre, sendo que a sua conduta nunca será previsível em absoluto [01]. E é dentre as ciências humanas, também chamadas sociais ou culturais, que o Direito e a Criminologia são encontrados.

Depois de adequadamente posicionados na seara das ciências sociais, convém descrever o mecanismo de produção do saber científico. Nesse sentido, o pesquisador procura observar a realidade social e, confrontando dados obtidos nesse estudo com as idéias tomadas como premissas provisórias, logra alcançar uma hipótese que, se observados os cânones da moderna ciência, pode explicar o fenômeno estudado. Chega-se então à teoria, ou seja, aquele corpo de conceitos sistematizados que nos permite conhecer um dado domínio da realidade. A teoria, como se ressaltou, é composta de conceitos, como tal nada mais do que a representação das propriedades essenciais comuns a um grupo de objetos.

Toda ciência tem uma finalidade, um propósito. Não se busca o conhecimento das coisas do mundo à toa. Em muitos casos, o objetivo é proporcionar maior conforto ao homem, como é o caso das ciências tecnológicas, ou melhorar a sua qualidade de vida, sendo esta a preocupação da medicina e da educação física. Com a ciência criminológica não haveria de ser diferente. Logo, acreditamos que a Criminologia apresenta objetivos próprios, a saber: (a) determinação da etiologia do crime, isto é, a procura das causas, daquilo que origina o crime; (b) análise da personalidade e conduta do criminoso, pois é importante saber o que se passa com aquele homem envolvido com o delito para uma mais ampla visualização do fenômeno; (c) identificação dos fatores determinantes da criminalidade, isto é, tentar desvendar porque o crime acontece de tal maneira e sob tais circunstâncias, e ainda, qual a sua abrangência no meio social; (d) proposição de meios de prevenção do crime e ressocialização (reencontro) do delinqüente, tudo isso em caráter profilático.

O objeto de estudo da Criminologia, vale dizer, aquela porção da realidade sobre a qual ela se lança, é constituído a um só tempo pelo crime, pelo criminoso, pelas propostas de sua readequação ao meio comunitário e pelos mecanismos de controle social que recaem sobre o fenômeno.

É certo dizer que o objeto da nossa disciplina não foi concebido dessa maneira. Trata-se de um alargamento engendrado a partir da experiência acumulada com o passar dos anos e das teses concebidas por aqueles que, ao longo desse tempo, sempre se preocuparam com a problemática do crime e do criminoso.

E quanto ao método? Já que toda ciência se alicerça num procedimento de obtenção do conhecimento, como critério de validação e aceitação dos resultados, convém determinar como a Criminologia alcança suas proposições. Nesse sentido, há dois métodos primordiais: o individual e o estatístico.

O primeiro deles, identificado com a Criminologia Clínica, ramo tradicional dessa ciência, parte da análise de casos particulares, observando-se o aspecto biológico (orgânico) e comportamental do indivíduo, seja ele o criminoso, seja a vítima. Utiliza-se basicamente da experimentação e da indução. O segundo, por sua vez, está ligado à Criminologia Geral, cuja perspectiva é o estudo de grupos e episódios coletivos, recorrendo à estatística e aos estudos sociológico e histórico. As teses derivam da dedução dos dados estatísticos coletados.

Com um objeto de estudo tão abrangente e uma metodologia bastante sofisticada, seus propósitos não são menos ambiciosos: a Criminologia se propõe a apresentar estratégias e fornecer informações para definição de políticas eficazes de prevenção do crime e, ainda, de tratamento e readequação do delinqüente ao meio social.

Para o Promotor de Justiça, a Criminologia pode oferecer uma variada gama de elementos extremamente úteis e enriquecedores da atuação institucional, em várias áreas de interesse. Convém destacar algumas delas.

3.Investigação criminal e controle externo da atividade policial

No campo da investigação criminal (inquérito policial), a Criminologia analisa o desempenho das polícias na tarefa de dissuasão e repressão do cometimento de delitos, a problemática das cifras negras (episódios criminógenos que escapam à intervenção estatal) e, ainda, a própria participação dos órgãos policiais como agentes estimuladores da criminalidade enquanto instâncias de controle social formal, como se observa nos relatos de violência policial. Inclusive, o estudo nessa área contribui significativamente para um exercício mais dinâmico do controle externo.

Com efeito, o pleno exercício do controle previsto no art.129, inciso VII, da CF/88, exige o domínio de dados ou informações a respeito da natureza e da execução da atividade policial. Isso significa que o Promotor deve conhecer a realidade dos departamentos de polícia, como a função policial vem sendo desempenhada por seus agentes, que fatores sociais, econômicos, políticos e morais, além dos jurídicos, porventura influenciam o cotidiano da prevenção e repressão dos delitos.

Em outro plano, esses elementos permitem que o Promotor analise de maneira mais completa e abrangente as notícias inseridas nos autos de um inquérito policial, ou seja, o titular da ação penal poderá fundamentar melhor suas manifestações relativamente à requisição de novas diligências ou o arquivamento daquela peça inquisitiva.

4.Atos infracionais e medidas sócio-educativas

Na seara da proteção à infância e à juventude, de igual modo a Criminologia pode ser importante fonte de subsídios. A título de exemplo, lembra-se o instituto da remissão. Nessa hipótese, a ciência criminológica se mostra capaz de auxiliar o Promotor de Justiça na análise e sopesamento dos valores e circunstâncias relacionados ao adolescente infrator, isto é, sua personalidade voltada ou não para a delinqüência, o contexto social em que ele se acha inserido, sua relação com a família, a escola e a comunidade, bem assim a natureza e repercussão social do ato imputado ao adolescente.

Como se sabe, poucas informações nesse sentido poderão ser encontradas nos autos do procedimento em mãos do Promotor de Justiça. Maior riqueza de detalhes só poderá ser amealha através da oitiva informal do adolescente. Nessa ocasião, e tendo em vista que o Estatuto da Criança e do Adolescente deixa de oferecer mecanismos específicos para condução dessa audiência, o agente ministerial haverá de se cercar, em primeiro lugar, do bom senso, e mais ainda, das idéias, conceitos e conclusões produzidos pelo saber criminológico, em especial, no tocante à delinqüência infanto-juvenil.

Outrossim, a Criminologia também se dispõe ao fornecimento de critérios adequados para proposição da medida sócio-educativa mais correta e justa, se for o caso. Decerto, se a mens legis está direcionada à reinserção do adolescente no meio social, eliminação da gravidade de eventuais condutas desviantes, plena materialização do princípio diretivo da proteção integral e garantia do pleno desenvolvimento da pessoa, uma série de aspectos merecem ser considerados para se chegar à medida sócio-educativa que se mostre mais apropriada para atingir esses fins.

5.Outros procedimentos criminais

Além de tudo quanto já foi exposto, no trato dos procedimentos afeitos à processualística penal, a análise de todos os elementos componentes do objeto de estudo da Criminologia ajuda a melhor entender e aplicar institutos como o do interrogatório e confissão em juízo, intervenção da vítima como assistente da acusação, delação premiada, incidente de insanidade mental, transação penal, suspensão condicional do processo, medida cautelar de afastamento do agressor na hipótese de violência doméstica etc. E particularmente no segmento da execução penal, o exame criminológico é importante elemento para concessão de benesses previstas na lei específica.

De fato, em determinadas passagens, a lei remete ao subjetivismo do Promotor de Justiça a aplicação de certos institutos. É o caso da transação penal e da suspensão condicional do processo. Os requisitos subjetivos previstos pela legislação não podem ser preenchidos por critérios arbitrários e opiniões puramente pessoais do agente ministerial. A análise deve se circunscrever a elementos próprios que possibilitem ou não o enquadramento nas hipóteses legais.

Por derradeiro, registre-se a relevante contribuição da Criminologia para o surgimento de normas próprias destinadas à regulação, enfrentamento e jurisdicionalização dos fenômenos da criminalidade organizada, ambiental, tecnológica e do colarinho branco, delinqüência juvenil, racismo e outras formas de preconceito, além das diversas manifestações de violência, quais sejam, urbana, rural, doméstica, grupal, policial, carcerária e assim por diante.

6.Uma conclusão

Poder-se-ia elencar um amplo conjunto de aspectos em que a Criminologia ainda pode ser de grande utilidade para um desempenho otimizado dentro das funções ministeriais. De qualquer modo, se o Promotor de Justiça incluir na sua atividade institucional a exploração desse vasto manancial de conhecimentos, decerto sua atuação se tornará mais abrangente, dinâmica, coerente e, sobretudo, apta a verdadeiramente promover a justiça.

Referências bibliográficas

ALBEGARIA, Jason. Criminologia: teoria e prática, Rio de Janeiro: Aide, 1988.
DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinqüente e a sociedade criminógena, Coimbra: Coimbra Editora, 1997.
FERNANDES, Newton; FERNANDES, Valter. Criminologia integrada, 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antônio; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos, introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95 – lei dos juizados especiais criminais, 4ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
OLIVEIRA, Frederico Abrahão de. Manual de Criminologia, 2ª ed., Porto Alegre: Sagra, 1996.
OLIVEIRA, Marcus Vinícius Amorim de. Guia de Estudo de Criminologia, 2ª ed., Fortaleza (mimeo), 2003.
OMNÈS, Roland. Filosofia da Ciência Contemporânea, São Paulo: UNESP, 1996.
ZORRILLA, Carlos González. Para que sirve la Criminologia? Nuevas aportaciones al debate sobre sus funciones, São Paulo: RBCCrim, n.°6, abr-jun/1994, pp.7/25.

Notas

01 Foi exatamente a dificuldade de determinação da previsibilidade das condutas do homem que impediu, por muito tempo, que as ciências humanas se firmassem e fossem reconhecidas como tal.

Por Marcus Vinícius Amorim de Oliveira, promotor de Justiça no Ceará, professor de Direito Processual Penal na Unifor e de Criminologia na Faculdade Christus, mestre em Direito pela UFC, in www.jus.com.br

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O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)