A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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25 de abril de 2007

A proteção dos direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais


A reforma psiquiátrica brasileira inspira-se nos diversos processos de reestruturação assistencial que vêm sendo adotados desde os anos 70 por vários países europeus. Dá-se em razão de notórios abusos praticados em manicômios tanto por funcionários administrativos como também por profissionais da área da saúde mental, notadamente por uma exagerada visão organicista, principalmente contra aqueles que se encontravam internados em instituições asilares durante boa parte de suas vidas, estando distantes do convívio social.

Nossa política pública segue orientação contida na Declaração de Caracas, datada de 14 de novembro de 1990, aprovada por aclamação na Conferência Regional para a Reestruturação da Assistência Psiquiátrica nas Américas, que muda o paradigma hospitalocêntrico para o serviço de saúde comunitário.

Cada país tem dado um enfoque diferente para essas questões devido às razões culturais autóctones. Consideradas essas peculiaridades, o que se destaca é que todas essas iniciativas visam o respeito aos direitos humanos dos pacientes e a melhoria na proteção e reintegração social da pessoa do enfermo mental e de sua família. As políticas públicas relativas à saúde mental para tornarem-se eficazes passaram a ter foco universalizante, inclusivo e multiprofissional.

No Brasil, a política governamental de saúde mental tem como uma de suas principais diretrizes a reestruturação da assistência hospitalar psiquiátrica, objetivando a redução contínua e programada de leitos em hospitais psiquiátricos, com a garantia da assistência desses pacientes na rede de atenção extra-hospitalar, buscando sua reinserção no convívio social.

A chamada reforma psiquiátrica de uma maneira geral vem atender não só aos interesses dos enfermos e seus familiares, mas também aos interesses de governos, haja vista que a manutenção de hospitais psiquiátricos acarreta dispêndio de altos recursos públicos. Não se pode ser ingênuo nessa seara e acreditar que tudo está sendo feito no melhor dos mundos e para o bem geral da nação. O Poder Público não pode tudo, é certo. Mas a maioria da população que depende para sua sobrevivência dos serviços públicos de saúde e da assistência social, caso não encontre a sua disposição tais serviços gratuitos estará entregue à própria sorte.

Há muitos interesses em conflito além daqueles surgidos a partir das diferentes orientações acadêmicas adotadas nos variados cursos de psiquiatria e psicologia, tais como: políticas de inspiração neoliberal voltada à redução do tamanho do Estado; corporações profissionais em disputa por mercado de trabalho; interesses de proprietários de clínicas em busca de verbas públicas; disputas partidárias na feitura de orçamentos públicos no Legislativo, lobbies de grandes laboratórios e planos de saúde privados.

Por outro lado, a sociedade humana nunca lidou muito bem com as questões de insanidade mental. Nesse campo vigora desde sempre muito medo e preconceito social. Assim como se diz que na guerra a primeira vítima é a verdade, nos embates sobre saúde mental a primeira vítima é sempre a realidade.

Diz a lei federal 10.216/01,em seu artigo 8º, parágrafo 1º, que: “A internação involuntária deverá, no prazo de setenta e duas horas, ser comunicada ao Ministério Público Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no qual tenha ocorrido, devendo esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva alta”.

Esse mandamento legal é salutar haja vista que internar alguém contra sua própria vontade devido a perturbação mental é ato que se assemelha a uma detenção e que precisa, portanto, ser comunicado com rapidez a alguma autoridade estatal. É ato público e não privado que deva ser mantido em segredo. Não é a mesma coisa que internar alguém que esteja momentaneamente sem consciência, em um hospital geral devido a graves males de saúde física resultantes de acidentes vasculares cerebrais, quedas, acidentes de trânsito etc.

A comunicação da internação de um portador de transtorno mental ao MP servirá até mesmo de proteção para o profissional médico, pois assim agindo ele estará a salvo de uma leviana acusação de prática do crime de cárcere privado (artigo 148 do Cód. Penal), conduta bastante usual entre aqueles que não se conformam com a sua própria internação.

Os Ministérios Públicos estaduais brasileiros devem, cada um a sua maneira peculiar e dentro de seu território, estabelecer rotinas de trabalho que facilitem a eficiente monitoração dos estabelecimentos clínicos públicos e privados que trabalhem com internações psiquiátricas, até mesmo porque a lei não previu sanção penal para os casos de descumprimento legal, ou seja, a não comunicação de internações involuntárias por parte da direção dos estabelecimentos clínicos sequer gera multa.

Essa fiscalização transindividual feita pelo MPE não poderá excluir o acompanhamento do interno individualmente, considerando-se que uma pessoa enferma pode permanecer internada por um determinado período em um estabelecimento clínico, receber alta médica e logo a seguir ser novamente internada em outro estabelecimento, cumprindo um ciclo de internações infindáveis dentro do próprio município, em vários municípios vizinhos e até mesmo em outros Estados.

Com tais dados nas mãos, os membros do MP poderão contribuir enormemente para evitar uma possível nova sentença condenatória como a que o Brasil acaba de receber —4 de julho de 2006— da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso de Damião Ximenes Lopes um deficiente mental que faleceu em 4 de outubro de 1999, em conseqüência dos maus tratos recebidos durante os poucos dias —três— em que esteve internado na Casa de Repouso Guararapes, no município de Sobral, Estado do Ceará. De outra parte, o Ministério Público estadual deve aproximar-se cada vez mais dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátricos, onde internos cumprem medidas de segurança impostas pelo Poder Judiciário, pleiteando até mesmo a instalação dessas unidades nas localidades onde ainda não existam. Uma das falhas da lei 10.216/01 é exatamente ter silenciado a respeito das pessoas encarceradas.

Dentre os Princípios para a Proteção de Pessoas Acometidas de Transtorno Mental e para a Melhoria da Assistência à Saúde Mental estabelecidos pela ONU em 1991 —e que foram adotados pelo Brasil, conforme Resolução CFM 1.407/94— encontramos o de número 20 que se refere aos infratores da lei: “2. Essas pessoas devem receber a melhor assistência à saúde mental disponível, como determinado no princípio 1. Estes princípios serão aplicados a elas na maior extensão possível, com modificações e exceções limitadas apenas por necessidades circunstanciais. Nenhuma dessas modificações e exceções deverá prejudicar os direitos da pessoa no que diz respeito aos instrumentos mencionados no parágrafo 5 do princípio 1”.

A proteção civil —a interdição— é um direito humano ao contrário do que apregoa o senso comum que abomina essa possibilidade. Muitas vezes o portador de enfermidade mental possui alguma propriedade imóvel mesmo que de pouco valor econômico ou mantém conta bancária e acaba perdendo seu patrimônio por descuido ou vilania de terceiros. Ademais, se foram declarados insanos mentalmente e receberam medidas de segurança, alguém deveria ser imediatamente nomeado seu curador provisório e assumir a responsabilidade de cuidar de seus interesses.

As Escolas Superiores do Ministério Público deveriam oferecer cursos que proporcionassem aos membros do Ministério Público melhor conhecimento a respeito não só das patologias mentais como também da eficiência e efeitos colaterais provocados pelos medicamentos neurolépticos e benzodiazepinicos. A sociedade precisa estar atenta a essas questões, sob pena de trocar a internação asilar pela overdose medicamentosa. As conquistas das pesquisas científicas na área química de fato tem levado alento à vida dos enfermos mentais e, por conseqüência, de suas famílias. Entretanto, a sociedade brasileira precisa estar melhor informada sobre os efetivos progressos da indústria química, uma vez que há —no mundo todo— graves denúncias a respeito de “maquiagens” feitas em medicamentos antigos com “roupagens” novas com o evidente propósito dos laboratórios na elevação dos preços no mercado para a obtenção de lucros indevidos.

Estamos vivendo em plena era de desvendamento dos mistérios contidos no funcionamento do cérebro humano, escopo da neurociência, e os membros do Ministério Público precisam ter ao menos noções básicas atualizadas sobre esse campo científico que examina de perto as bases bioquímicas do comportamento humano.

O livre arbítrio nem sempre é tão livre assim como nos leva a pensar o senso comum e a doutrina do direito.

Por Inês do Amaral Büschel, promotora de Justiça de São Paulo, aposentada, e associada do Movimento do Ministério Público Democrático www.ultmainstancia.com.br

Um comentário:

Lu disse...

Prezada Dra.,
Sou estudante de direito, me preparando para concursos. Gostaria de agradecer pelo texto publicado. Trata-se de matéria expressamente prevista no edital do próximo concurso do MP/SP.

Por fim, gostaria de pedir autorização para republicar este texto em meu blog, com as devidas citações de fonte.

Agradeço desde já.

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Paradigma

O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)