SÍNDROME
DE ESTOCOLMO NO FEMINICÍDIO
Não são raros, infelizmente, os casos em que, durante o julgamento por feminicídio[1], a própria vítima, fragilizada, emocionalmente devastada ou ainda sob domínio psicológico do agressor, tenta atenuar sua responsabilidade criminal. À primeira vista, soa contraditório. Na essência, é a face mais cruel da dinâmica de dominação que estrutura os relacionamentos abusivos.
Nessas
situações, cabe ao Ministério Público, na defesa da vida e dignidade da
mulher, alertar os jurados de que, por vezes, é preciso salvar a vítima de si
mesma. É nesse exato contexto que se revela a Síndrome de Estocolmo,
fenômeno amplamente reconhecido pela criminologia e psicologia, em que a vítima
desenvolve mecanismos inconscientes de defesa em favor de quem a violenta.
Proteger quem lhe causou dor não reflete autonomia, mas o colapso emocional
produzido por período de violência, que destrói sua autoestima e sua percepção da
própria dignidade. A mulher, embora viva, pode já estar psicologicamente
desfeita.
Noutras
palavras, essa condição retrata o quadro mental de quem
foi submetida a ciclos sucessivos de violência doméstica, marcado por medo
crônico, impotência aprendida e extrema dificuldade de romper com o agressor.
Fenômeno que escancara os efeitos devastadores da violência prolongada sobre
sua saúde física, psíquica e social. Não se trata de consentimento ou fraqueza
moral, mas de um mecanismo de sobrevivência, como ensina Dee L. R. Graham[2].
Diante
de um cenário de opressão, medo e dependência, a mulher, para suportar,
desenvolve laços afetivos distorcidos com quem lhe ameaça, controla e subjuga.
Não é retratação consciente, mas efeito trágico da opressão estrutural que
adoece e anula. E essa circunstância não absolve: condena. Escancara um
relacionamento pautado pela opressão, pela violência, pela manipulação e pelo
controle emocional. Mostra que o agressor não destruiu apenas o corpo, mas a
identidade, o amor-próprio e a liberdade moral da vítima, mergulhando-a numa prisão psíquica
que sabota sua capacidade de reação.
Por consequência, nesses casos, defender o direito ao silêncio da vítima a pretexto de evitar a reevitimização, como fazem alguns, não é
proteger, mas sim perpetuar a violência. O cala-boca já morreu! Silenciar, aqui, é
consentir com a opressão que a mantém cativa no ciclo de dor, cooperando com a impunidade do ofensor. O que se exige do
Poder Judiciário e do Ministério Público não é conivência com um silêncio adoecido, mas a oferta de
apoio psicossocial capaz de fortalecer a vítima, romper amarras emocionais e
permitir que o Estado e a sociedade cumpram seu dever de enfrentamento firme e
efetivo da violência contra a mulher.
É
aqui que se impõe o espírito da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), que convoca
o Estado e a sociedade a enfrentarem a violência doméstica de forma
intransigente. Quando a vítima, em plenário, tenta proteger seu agressor, cabe
ao Tribunal do Júri assumir esta missão de suma importância: ser instrumento de
ruptura desse ciclo de dor, ainda que contra a vontade aparente da ofendida. A
omissão, nesse contexto, não é prudência: é cumplicidade.
É
fundamental compreender que o Tribunal do Júri julga sob dois prismas: um
interno, que resolve o caso concreto; e outro externo, que comunica à sociedade
quais valores são intangíveis e quais condutas são intoleráveis. Condenar o
feminicida, mesmo quando a vítima não se reconhece como tal, é reafirmar que a
vida da mulher é inviolável, mesmo que ela, já dilacerada, não consiga
mais defendê-la. E se, no plenário, a mulher tenta proteger quem a destruiu,
isso não apaga o crime. Ao contrário: ela própria se torna a mais contundente
prova do ciclo de opressão que sofreu. Sua submissão não é escolha livre, mas
efeito devastador de uma relação marcada pela violência, pela ameaça e pelo temor.
Em
conclusão, justamente quando a vítima se mostra incapaz de reconhecer sua dor e
seu valor, é que o Tribunal do Júri deve se agigantar como instrumento de
resgate da dignidade perdida, reafirmando o compromisso da sociedade, representada pelos jurados, com a
tutela da vida e a proteção integral da mulher violentada. Vale dizer: condenar
é proteger. Absolver ou mitigar a responsabilidade do agressor é perpetuar a
violência e, nesse gesto, fazer-se cúmplice dela.
[1] “O feminicídio é o crime mais
grave que existe. Consiste em dupla violação: (1) viola a fonte de todos os
interesses, direitos e deveres humanos, qual seja, o direito à vida; e (2) viola
a fonte geradora da vida, a mulher”. (NOVAIS, César. A defesa da vida no
tribunal do júri. 4ª ed. Cuiabá: Editora Anacon, 2025, p. 92)
[2] GRAHAM, Dee L. R. Amar para
sobreviver: mulheres e a síndrome de Estocolmo social. Tradução de Mariana
Coimbra. São Paulo: Editora Cassandra, 2021.
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