A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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16 de junho de 2024

Resultou Perigo de Vida?

 

Um princípio ético fundamental no Tribunal do Júri é agir com honestidade intelectual perante o corpo de jurados. A honestidade intelectual diz respeito à aquisição, análise e transmissão de ideias, sem deformações. Significa atuar com integridade, negando-se a levantar uma ideia que sabe de antemão ser equivocada ou falsa. Isso significa dizer que o tribuno não deve confundir os jurados com desinformações, como também não deve tolerar que alguém assim o faça.

Todavia, lamentavelmente, presenciamos alguns defensores – privados e públicos - apostando na confusão em busca de impunidade, com violação a tal princípio. É triste, mas é fato. Quem milita no Tribunal do Júri pode testemunhar essa conduta odiosa e maléfica para a justiça.

No caso de denúncia (e pronúncia) por tentativa de homicídio, tais defensores, visando a desclassificação delitiva, apegam-se ao laudo pericial de lesões corporais da vítima para, em seguida, levantarem cortina de fumaça com olhos voltados à distorção do juízo dos jurados na análise do conjunto fático-probatório, transportando-os ao terreno da confusão mental.

Missão quase cumprida. Jurado com a mente confusa é terra fértil para a impunidade, pois o veredicto equivocado advém de mal-entendido, e não de má vontade. Noutras palavras, certo da confusão, anuncia-se em alto e bom som o famoso in dubio pro reo, com olhos voltados à absolvição ou desclassificação. Numa palavra: impunidade.

Mas essa postura não é correta, ética e justa. Não se deve aceitar o inaceitável. O princípio ético fundamental impõe fiscalização e, uma vez detectados, a consequente denúncia do emprego de toda a argúcia e de todo o engodo para iludir os jurados. Daí a importância dos apartes e da réplica nos debates em plenário.

A lição antiga, mas sempre atual, que vem da Itália ensina que a rainha das provas é a lógica humana. Essa é premissa decisiva para o escorreito julgamento popular, já que o jurado é o senhor da verdade pela lógica e pela intuição. Vale dizer, a grande arma contra a impunidade e a injustiça é a inteligência dos membros do Conselho de Sentença.

Por conseguinte, importa destacar que o diagnóstico diferencial entre o crime de lesões corporais e o crime de homicídio tentado não está adstrito ao laudo pericial, uma vez que reclama a análise de todo o conjunto fático-probatório, com observância ao tempo do crime, qual seja, o momento da conduta (artigo 4º do Código Penal).

Antes de tudo, é importante lembrar que, no crime de lesões corporais, a qualificadora do perigo de vida[1] só admite o preterdolo, uma vez que tal crime é punido a título de dolo enquanto ela é a título de culpa. Se o sujeito lesiona a integridade corporal da vítima com intenção de lhe causar perigo de vida, responde por tentativa de homicídio e não por lesão corporal qualificada pelo resultado[2].

Equivale a dizer: a lesão corporal com perigo de vida não se confunde com a tentativa de homicídio. Se o agente considerou a possibilidade de matar a vítima, haverá tentativa de homicídio, e não lesão corporal. 

Como já abordado noutro lugar[3], para a configuração do homicídio tentado, é preciso examinar todos os elementos exteriores da conduta, pelos meios probatórios disponíveis com o condão de verificar: a postura do agente antes, durante e depois da investida contra a integridade corporal da vítima; o instrumento empregado no ataque; a zona corporal visada; e a intensidade/número de golpes ou tiros. Ou seja, tais fatores determinarão se o agente agiu com animus occidendi ou animus laedendi, pois, segundo John Locke, “as ações dos seres humanos são as melhores intérpretes de seus pensamentos”[4].

O quesito “resultou perigo de vida?”, a ser respondido pelo médico-perito, não é decisivo para a distinção entre os crimes de lesões corporais e homicídio tentado, como alguns defensores pregam equivocada e maliciosamente aos jurados. E eles sabem disso!

Para a configuração de homicídio tentado não é indispensável a presença de lesão mortal, ou seja, com a força de levar a vítima à óbito. Tanto isso é verdade que nos casos de tentativa branca de homicídio inexistirá dano físico à vítima atacada, cujo laudo pericial será negativo para lesões corporais, embora o agente tenha agido com desejo assassino, ao investir contra a vida alheia.

Cuidado: a ação mortífera não está condicionada à existência de lesão mortal. Para que haja crime de homicídio tentado é preciso o emprego de ação mortífera, independentemente de produção de lesão mortal.

O experto que examina o corpo do ofendido e as respectivas lesões desconhece o contexto fático-probatório afeto ao caso penal. Isto é, sua função é examinar a natureza e a sede das lesões corporais constatadas. O fato de negar “perigo de vida” não desconfigura a ocorrência de homicídio tentado. Não mesmo.

Como afirmou o imperador romano Adriano, in maleficiis voluntas spectatur, non exitus - no crime se observa a intenção, não o resultado[5]Ou seja, a análise, então, deve recair sobre a vontade do agente no momento da conduta (artigo 4º do Código Penal), e não sobre o resultado – a extensão do dano físico, a natureza da lesão corporal causada. Esta servirá de bússola para fins de dosimetria da pena (a fração redutora, segundo a norma de sanção constante no artigo 14, II, do Código Penal).

Portanto, a afirmação costumeiramente feita por alguns defensores no plenário do Júri de que “o laudo pericial ao responder ‘não’ para o perigo de vida, negou o crime de tentativa de homicídio” é intelectualmente desonesta, pois visa o engodo do jurado, já que, em regra, ele desconhece a Dogmática Jurídica, o Direito Probatório e a Medicina Legal. Trata-se de estelionato intelectual. Postura que deve ser identificada e denunciada pelo Ministério Público ao Conselho de Sentença, em respeito à vida, à moral, à verdade e à justiça.

Por César Danilo Ribeiro de Novais, Promotor de Justiça do Tribunal do Júri e autor do livro “A Defesa da Vida no Tribunal do Júri”.

 


[1] Segundo a doutrina, “perigo de vida é, para a medicina legal, uma situação atual, real, tecnicamente comprovada, consequente à lesão sofrida, que levará com grande probabilidade à morte a vítima, se não socorrida em tempo hábil.” (GOMES, Hélio. Medicina legal. 32ª ed. Rio de Janeiro: Freitas bastos, 1997, p. 462)

[2] Cf. JESUS, Damásio Evangelista. Direito penal: dos crimes contra a pessoa e dos crimes contra o patrimônio. 26ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 138-139.

[3] NOVAIS, César. A defesa da vida no tribunal do júri. 3ª ed. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2022, p. 89-91.

[4] LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

[5] GARCÍA DEL CORRAL, Ildefonso. Cuerpo del derecho civil romano. T. III. Espanha: Lex Nova, 2004, p. 756.

 

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