Um princípio ético fundamental no
Tribunal do Júri é agir com honestidade intelectual perante o corpo de jurados.
A honestidade intelectual diz respeito à aquisição, análise e transmissão de
ideias, sem deformações. Significa atuar com integridade, negando-se a levantar
uma ideia que sabe de antemão ser equivocada ou falsa. Isso significa dizer que
o tribuno não deve confundir os jurados com desinformações, como também não
deve tolerar que alguém assim o faça.
Todavia, lamentavelmente,
presenciamos alguns defensores – privados e públicos - apostando na confusão em
busca de impunidade, com violação a tal princípio. É triste, mas é fato. Quem
milita no Tribunal do Júri pode testemunhar essa conduta odiosa e maléfica para
a justiça.
No caso de denúncia (e pronúncia) por
tentativa de homicídio, tais defensores, visando a desclassificação delitiva,
apegam-se ao laudo pericial de lesões corporais da vítima para, em seguida,
levantarem cortina de fumaça com olhos voltados à distorção do juízo dos
jurados na análise do conjunto fático-probatório, transportando-os ao terreno
da confusão mental.
Missão quase cumprida. Jurado com a
mente confusa é terra fértil para a impunidade, pois o veredicto equivocado
advém de mal-entendido, e não de má vontade. Noutras palavras, certo da
confusão, anuncia-se em alto e bom som o famoso in dubio pro reo,
com olhos voltados à absolvição ou desclassificação. Numa palavra: impunidade.
Mas essa postura não é correta, ética e
justa. Não se deve aceitar o inaceitável. O princípio ético fundamental impõe
fiscalização e, uma vez detectados, a consequente denúncia do emprego de toda a
argúcia e de todo o engodo para iludir os jurados. Daí a importância dos
apartes e da réplica nos debates em plenário.
A lição antiga, mas sempre atual, que
vem da Itália ensina que a rainha das provas é a lógica humana. Essa é premissa
decisiva para o escorreito julgamento popular, já que o jurado é o senhor da
verdade pela lógica e pela intuição. Vale dizer, a grande arma contra a
impunidade e a injustiça é a inteligência dos membros do Conselho de Sentença.
Por conseguinte, importa destacar que o
diagnóstico diferencial entre o crime de lesões corporais e o crime de
homicídio tentado não está adstrito ao laudo pericial, uma vez que reclama a
análise de todo o conjunto fático-probatório, com observância ao tempo do crime,
qual seja, o momento da conduta (artigo 4º do Código Penal).
Antes de tudo, é importante lembrar
que, no crime de lesões corporais, a qualificadora do perigo de vida[1] só admite o preterdolo,
uma vez que tal crime é punido a título de dolo enquanto ela é a título de
culpa. Se o sujeito lesiona a integridade corporal da vítima com intenção de
lhe causar perigo de vida, responde por tentativa de homicídio e não por lesão corporal
qualificada pelo resultado[2].
Equivale a dizer: a lesão corporal com
perigo de vida não se confunde com a tentativa de homicídio. Se o agente
considerou a possibilidade de matar a vítima, haverá tentativa de homicídio, e
não lesão corporal.
Como já abordado noutro lugar[3], para a configuração do
homicídio tentado, é preciso examinar todos os elementos exteriores da conduta,
pelos meios probatórios disponíveis com o condão de verificar: a postura do
agente antes, durante e depois da investida contra a integridade corporal da
vítima; o instrumento empregado no ataque; a zona corporal visada; e a
intensidade/número de golpes ou tiros. Ou seja, tais fatores determinarão se o
agente agiu com animus occidendi ou animus laedendi, pois, segundo
John Locke, “as ações dos seres humanos são as melhores intérpretes de seus
pensamentos”[4].
O quesito “resultou perigo de
vida?”, a ser respondido pelo médico-perito, não é decisivo para a
distinção entre os crimes de lesões corporais e homicídio tentado, como alguns
defensores pregam equivocada e maliciosamente aos jurados. E eles sabem disso!
Para a configuração de homicídio
tentado não é indispensável a presença de lesão mortal, ou seja, com a força de
levar a vítima à óbito. Tanto isso é verdade que nos casos de tentativa branca
de homicídio inexistirá dano físico à vítima atacada, cujo laudo pericial será
negativo para lesões corporais, embora o agente tenha agido com desejo
assassino, ao investir contra a vida alheia.
Cuidado: a ação mortífera não está
condicionada à existência de lesão mortal. Para que haja crime de homicídio
tentado é preciso o emprego de ação mortífera, independentemente de produção de
lesão mortal.
O experto que examina o corpo do
ofendido e as respectivas lesões desconhece o contexto fático-probatório afeto
ao caso penal. Isto é, sua função é examinar a natureza e a sede das lesões
corporais constatadas. O fato de negar “perigo de vida” não desconfigura a
ocorrência de homicídio tentado. Não mesmo.
Como afirmou o imperador romano Adriano, in maleficiis voluntas spectatur, non exitus - no crime se observa a intenção, não o resultado[5]. Ou seja, a análise, então, deve recair sobre a vontade do agente no momento da conduta (artigo 4º do Código Penal), e não sobre o resultado – a extensão do dano físico, a natureza da lesão corporal causada. Esta servirá de bússola para fins de dosimetria da pena (a fração redutora, segundo a norma de sanção constante no artigo 14, II, do Código Penal).
Portanto, a afirmação costumeiramente
feita por alguns defensores no plenário do Júri de que “o laudo pericial ao
responder ‘não’ para o perigo de vida, negou o crime de tentativa de homicídio”
é intelectualmente desonesta, pois visa o engodo do jurado, já que, em regra,
ele desconhece a Dogmática Jurídica, o Direito Probatório e a Medicina Legal.
Trata-se de estelionato intelectual. Postura que deve ser identificada e
denunciada pelo Ministério Público ao Conselho de Sentença, em respeito à vida,
à moral, à verdade e à justiça.
Por César Danilo Ribeiro de Novais,
Promotor de Justiça do Tribunal do Júri e autor do livro “A Defesa da Vida no
Tribunal do Júri”.
[1] Segundo a doutrina, “perigo de
vida é, para a medicina legal, uma situação atual, real, tecnicamente
comprovada, consequente à lesão sofrida, que levará com grande probabilidade à
morte a vítima, se não socorrida em tempo hábil.” (GOMES, Hélio. Medicina legal.
32ª ed. Rio de Janeiro: Freitas bastos, 1997, p. 462)
[2] Cf. JESUS, Damásio
Evangelista. Direito penal: dos crimes contra a pessoa e dos
crimes contra o patrimônio. 26ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 138-139.
[3] NOVAIS, César. A defesa da
vida no tribunal do júri. 3ª ed. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2022, p.
89-91.
[4] LOCKE, John. Ensaio sobre o
entendimento humano. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
[5] GARCÍA DEL CORRAL,
Ildefonso. Cuerpo del derecho civil romano. T. III. Espanha: Lex
Nova, 2004, p. 756.
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