No Tribunal do Júri, definido
o Conselho de Sentença com a seleção pelas partes do sétimo, e último, jurado
segue-se o momento solene do compromisso. Objetivamente, este impõe que o cidadão
examine a causa com imparcialidade e a decida com consciência e justiça.
É o que dispõe o artigo
472 do CPP: “Formado o Conselho de Sentença, o presidente, levantando-se, e,
com ele, todos os presentes, fará aos jurados a seguinte exortação: Em
nome da lei, concito-vos a examinar esta causa com imparcialidade e a proferir
a vossa decisão de acordo com a vossa consciência e os ditames da justiça. Os
jurados, nominalmente chamados pelo presidente, responderão: Assim o prometo”.
A partir desse momento, o
cidadão está investido nas funções de juiz de fato. Sem ter lado previamente
definido, examinará a causa e os debates entre as partes e, quando da votação
dos quesitos, elegerá o monossílabo sim ou não, segundo sua íntima convicção.
Mas isso não é o bastante. É imprescindível que decida também conforme os
ditames da justiça. Se assim não for, o compromisso estará quebrado, e, então,
convertido em descompromisso.
Isso significa dizer que não
há lugar para decisão desprovida de justiça. É inadmissível que haja solução
injusta na causa. Ou seja, se pelas provas do processo e a ordem jurídica estiver
manifesta e indubitável (1) a inocência ou (2) a culpa do acusado, respectivamente,
haverá manifesta injustiça no caso de (1) condenação ou (2) absolvição.
É importante então
indagar: qual o significado de ditames da justiça?
Grosso modo,
é a decisão ditada, desenhada ou informada pela justiça. E o que é justiça?
Sem prejuízo de conceitos
e reflexões filosóficos em torno do vocábulo em questão, é preciso ter em mente sua concepção jurídica. E, nesse sentido, justiça é o que se apresenta em
consonância com o direito.
Os romanos ensinaram que
justiça consiste em dar a cada um o que é seu. Em complemento, e melhor
explicando, é oportuno citar o ensinamento, muito didático, de Maria Helena
Diniz: “Como, em regra, o dever de dar a cada um o que é seu vem imposto por
norma jurídica, pode-se afirmar que o justo é o que exige o direito. Daí ser a
justiça o próprio ordenamento jurídico e o ideal a que deve tender o direito”[1].
“Governo de leis e não de
homens” foi o lema da reação de colonos ingleses na América do Norte e da
insurreição do terceiro estado na França, no século XVIII. Os ideais
revolucionários inspiraram, e ainda inspiram, os princípios básicos do Estado
Democrático de Direito contemporâneo.
Assim, a decisão de
qualquer juiz, togado ou leigo, deve se pautar pela legalidade, que
exprime o justo. “Com a lei, pela lei e dentro da lei; porque fora da lei não
há salvação”[2],
disse, com genialidade e sabedoria, o polímata Ruy Barbosa.
Um dos pilares do Tribunal do Júri é a soberania dos veredictos, segundo o qual a última e definitiva palavra nos crimes dolosos contra a vida e conexos, pertence ao povo. E a sua palavra não pode ser substituída ou alterada por qualquer juiz, desembargador ou ministro. Significa também que os veredictos ostentam eficácia imediata: absolveram, liberdade; condenaram, prisão. Mas, por óbvio, o Judiciário tem o poder-dever de analisar, em grau recursal, se o julgamento popular está ou não eivado de nulidade e/ou de grosseiro error in judicando.
A propósito, há uma distinção muito clara entre afirmar que o jurado pode julgar em determinado sentido e dizer que isto é a coisa certa a ser feita, ou que ele nada faz de errado ao agir desse modo. É verdade que o Conselho de Sentença tem o direito de fazer algo que seja a coisa errada a fazer, porém, não é menos verdade que tal deliberação é sindicável pelas instâncias recursais para que a sociedade tenha a chance de receber a justa prestação jurisdicional, em novo julgamento popular.
As hipóteses legais de
absolvição estão gizadas nos artigos 386 e 415 do Código de Processo Penal.
Fora de tais dispositivos não há possibilidade jurídica para a absolvição.
Muitos afirmam que o jurado
é soberano e, por isso, pode absolver por qualquer - até mesmo sem - motivo.
Pode, então, condenar por qualquer ou sem motivo? Ou essa falácia só vale para
livrar assassino da prisão?
É preciso ter coerência e
seriedade no discurso, ainda que isso custe interesses corporativos. Afinal, o
grau de civilização de um povo também é medido pelo grau de proteção do direito
à vida, que inclui a seriedade e a gravidade da punição estatal ao assassino. O
sistema jurisdicional deve olhar não apenas para os injustos, mas também (e
principalmente) para os injustiçados.
Não existe poder
incontrolável em um Estado Democrático de Direito. “(...) trata-se de uma
experiência eterna que todo homem que possui poder é levado a dele abusar; ele
vai até onde encontra limites”[3].
Em um país com cerca de
60 mil assassinatos por ano, não há espaço para criação ou admissão de
doutrina, teoria, tese ou norma com o objetivo de livrar ou mitigar a responsabilidade
penal de assassino. Nenhuma invencionice jurídica pode favorecer caçadores de
pessoas, em um país minimamente civilizado.
A propósito, é importante não esquecer que a vida é a base estrutural de toda comunidade humana e pilar fundamental do ordenamento jurídico. Logo, o dever de defesa e proteção do direito à vida é o principal fim do Estado e razão de sua existência. Por consequência, se não se pode exigir que o jurado proteja corretamente o direito à vida, pode-se ao menos exigir que o tente. Pode-se exigir que leve o direito de existir a sério, que emita veredicto coerente com a importância desse direito.
Por tudo isso, a tese da
irrecorribilidade do veredicto absolutório injusto (manifestamente contrário à
prova ou à lei), pregada por defensores, públicos e privados, em
que o assassino sai impune, apesar de ter atacado a fonte de todos os direitos
humanos, é inconstitucional, ilegal e injusta porque desprotege e mitiga a vida humana. Na realidade, essa tese demonstra claramente ter compromisso
apenas com quem atacou a existência alheia, com o erro e a injustiça. Não há nela um fiapo sequer de respeito à vida, à sociedade, à família pranteada e à vítima.
Como assinalou o ministro
Edson Fachin, “júri é participação democrática, mas participação sem justiça é
arbítrio”[4].
Desse modo, detectado
erro grosseiro no julgamento popular pela instância recursal, é necessário que
haja novo julgamento, ocasião em que a soberania dos veredictos estará
preservada e os jurados poderão reafirmar ou modificar os veredictos.
É bom lembrar que,
segundo os anais da assembleia nacional constituinte de 1987[5], tentaram subtrair do
Ministério Público o direito de apelar contra absolvições do Tribunal do Júri. Como
exemplo, foi a emenda apresentada pelo deputado federal Nyder Barbosa
(PMDB/ES): “Seja mantida a instituição do júri para o julgamento dos crimes
dolosos contra a vida, sendo irrecorríveis suas decisões absolutórias”. Tal
emenda, como é óbvio, foi rejeitada.
Prevaleceu então, o duplo
grau de jurisdição nos casos em que a decisão dos jurados for manifestamente
contrária às provas dos autos ou se houver alguma nulidade insuperável. Isso
porque a Constituição Federal remeteu ao legislador ordinário a organização do
Tribunal do Júri e, na linha do inciso LV do artigo 5º, o Código de Processo
Penal estabeleceu a apelação contra decisões manifestamente contrárias à prova dos
autos (artigo 593, III, “d”).
Logo se vê que soberania dos veredictos não significa arbítrio ou poder ilimitado. Ainda que possa muito, o jurado não pode tudo. Não detém poder absoluto para atuar como artífice de um julgamento injusto, qual seja, contrário à lei ou à prova do processo.
Noutras palavras, não deve condenar contra as provas dos autos. Não deve condenar contra os ditames legais. Não deve fazer favor com o sangue alheio (clemência). Não deve absolver contra as provas dos autos. Não deve absolver contra os ditames legais, sob pena de julgamento injusto (contra a prova ou a lei), que é incompatível com o Estado Democrático de Direito.
Daí a previsão de Recurso de Apelação contra condenação ou absolvição injusta, em busca de justiça em novo julgamento popular. Soberania e onipotência injusta e sem limites não se confundem.
O compromisso firmado
pelo jurado deve ser fiscalizado pelas partes - sobretudo pelo Ministério
Público diante de absolvições teratológicas[6] -, pelas instâncias
recursais e pelo novo Conselho de Sentença. A quebra de tal compromisso, produtor de
injustiça, também. A sociedade tem direito à justiça, como tem a família
enlutada, a comunidade indignada e a pessoa vitimada.
Por César Danilo Ribeiro de Novais, Promotor de Justiça do Tribunal do Júri e autor do livro “A Defesa da Vida no Tribunal do Júri”.
[1] DINIZ, Maria Helena. Compêndio
de Introdução à Ciência do Direito. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p.
365.
[2] http://www.casaruibarbosa.gov.br.
Acesso em 09/02/2021.
[3] MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O
espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 166.
[4] STF, Agravo Regimental n. 1.225.185.
[5] https://www2.camara.leg.br/. Acesso em 09/02/2021.
[6] Como já escrevemos, “a experiência
demonstra que, em regra, a decisão popular manifestamente contrária à prova dos
autos ocorre no caso de absolvição arbitrária, uma vez que, para fins de
julgamento pelo Tribunal Júri, o mesmo foi devidamente filtrado pelo
Judiciário, tanto pelo recebimento da denúncia como pela pronúncia (prova da
existência do crime e de indícios suficientes de autoria/participação) - muitas
vezes com sua confirmação pela instância recursal -, o que torna raro que um
processo sem lastro probatório mínimo para a condenação seja submetido à
apreciação dos jurados. Assim, no Tribunal do Júri, há maior risco de absolver
o culpado do que condenar o inocente, em razão de todo o processamento dos
crimes dolosos contra a vida”. (http://promotordejustica.blogspot.com/2019/10/julgamento-soberano.html)
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