A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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8 de outubro de 2024

PUNIÇÃO COMO PILAR CIVILIZATÓRIO

 

PUNIÇÃO COMO PILAR CIVILIZATÓRIO

 

Punir é ação afirmativa de direitos humanos e fundamentais. Daí porque uma das funções mais essenciais de qualquer Sistema Jurídico é garantir a ordem e a paz social como base para a construção de uma sociedade justa. E como isso é feito? Através da responsabilização. A punição não é apenas uma ferramenta funcional, é um direito humano fundamental. Pois, sem ela, a estrutura social desmorona, e o caos impera.

 

Quando falamos de punição, muitos acusam os atores do Sistema de Justiça, sobretudo os membros do Ministério Público, de “punitivistas”. O Ministério Público é, antes de tudo, o guardião incansável da legalidade, o vigia que assegura que as leis sejam aplicadas de forma justa e equitativa, para que todo aquele que viola as normas de convivência responda por seus atos. É o fiscal da ordem jurídica. O que é o ordenamento jurídico, senão o instrumento da ordem e da paz social? E como essas garantias são efetivadas? Pela responsabilização e, sim, pela punição provocada pelo Ministério Público. Não há civilidade, não há sociedade coesa sem a punição daqueles que ferem as regras mais básicas.

 

É curioso observar a antipatia que alguns nutrem contra o Ministério Público. Mas, afinal, quem realmente se sente incomodado com a atuação vigilante de Promotores de Justiça? A resposta é clara e objetiva: aqueles que temem a força da lei, que se sentem acuados diante da iminência de serem responsabilizados por seus atos. Quem critica o agente ministerial de maneira indiscriminada, na verdade, sustenta, consciente ou não, uma lógica questionável. Sob o manto de discursos pseudo garantistas, oculta-se o real interesse pela impunidade.

 

Mas o que significa, de fato, o termo “punitivismo”, tão usado de forma pejorativa? Punitivismo, como tentam fazer parecer, seria uma obsessão por punir, por encarcerar, por tirar as liberdades de forma ilegal e injusta. Mas, na verdade, o que se critica não é o excesso, mas a própria ideia de que quem comete crimes deve ser punido. Como se a punição fosse um mal em si mesma, um ato desumano, e não um mecanismo fundamental para proteger as pessoas das maldades das outras e garantir a ordem social.

 

Ora, a punição, longe de ser um mal, é imperativo decorrente de direitos humanos. Punir é uma das formas mais básicas de assegurar que os direitos de todos os cidadãos sejam respeitados. Quando um criminoso é responsabilizado por seus atos, o que está em jogo não é a sua mera privação de liberdade, mas sim a proteção da sociedade como um todo. Há a restrição da liberdade do criminoso como garantia da liberdade das pessoas ordeiras. Uma sociedade que não pune os delinquentes abre mão de sua capacidade de se autoproteger e acaba, inevitavelmente, caminhando rumo à barbárie.

 

Nelson Hungria já dizia que o castigo imposto ao criminoso não pode ser visto como uma vingança, mas como uma necessidade para a preservação da ordem e da justiça. Ele ensinou que aquele que opta por delinquir deve estar ciente de dois perigos inevitáveis: o da defesa privada e o da reação penal do Estado[1]. Ou seja, a punição é não só uma resposta legítima do Estado, mas um reflexo da própria proteção social. Retirar esse pilar de proteção significa permitir que o caos e a violência prevaleçam. Significa fomentar a vingança privada e pavimentar o caminho do regresso à guerra de todos contra todos.

 

Aqueles que criticam a punição parecem se esquecer que, sem ela, não há justiça para a vítima e seus familiares. Quando o foco se desvia completamente para os direitos do criminoso, negligencia-se a necessidade de justiça para quem foi lesado. A punição, portanto, não é sobre vingança ou retaliação, mas sobre justiça para a vítima, para a sociedade e até para o próprio infrator, que precisa entender que suas escolhas e seus atos têm consequências.

 

Alguns defensores de teses pseudo garantistas dirão que o objetivo do Sistema Penal deve ser a reabilitação do infrator, e não sua punição. Mas essa visão romântica ignora uma realidade essencial: a sociedade não pode se dar ao luxo de esperar que todos os criminosos se reabilitem enquanto vivem em liberdade. Alguns atos são tão graves que a única resposta adequada e proporcional é a privação da liberdade. Reabilitação e punição não são excludentes; ao contrário, a punição é muitas vezes o primeiro passo para a reflexão e eventual reabilitação do infrator. Mas, mais importante ainda, a punição garante que outros potenciais infratores saibam que seus atos não ficarão impunes. Trata-se da dupla penal tão cantada e decantada: retribuição-prevenção.

 

Uma sociedade que não pune seus criminosos está, em essência, regredindo aos tempos do homem primitivo, do homem das cavernas, onde não havia justiça ou segurança. Era a lei do mais forte, em que os indivíduos viviam à mercê da violência e do medo. O sistema penal moderno, ao garantir que os infratores sejam punidos de forma justa e proporcional, é o que nos distingue de tempos de barbárie.

 

Vale destacar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos também reconhece a necessidade de punição como um dos elementos da proteção efetiva dos direitos humanos. A Corte estabelece que os Estados possuem obrigações processuais positivas, o que significa que têm o dever de investigar, processar e punir adequadamente aqueles que violam direitos humanos. O não cumprimento dessa obrigação implica em uma falha no dever de proteção por parte do Estado, gerando impunidade e, consequentemente, a erosão do Estado de Direito. Assim, a punição justa não só atende às expectativas da vítima e da sociedade, mas é uma exigência para que os Estados cumpram suas obrigações internacionais de proteção aos direitos humanos.

 

Isso significa dizer que punir é ato civilizatório. É ação de proteção social. Quem defende a punição adequada não está sendo “punitivista”, mas realista, responsável e justo, reconhecendo que uma sociedade civilizada é aquela em que as ações têm consequências, e que aqueles que violam as normas mais básicas da convivência social precisam ser responsabilizados por isso.

 

Portanto, longe de ser um mal necessário, a punição é um pilar civilizatório. E é somente através da aplicação correta e justa das penas que podemos garantir que a sociedade permaneça civilizada, que os direitos das vítimas sejam respeitados e que a ordem e a paz social prevaleçam.

 

Por César Danilo Ribeiro de Novais, Promotor de Justiça do Tribunal do Júri e autor do livro “A Defesa da Vida no Tribunal do Júri”.



[1] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1979, v. I, t. II, p. 289.

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