A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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12 de maio de 2021

A Pena no Homicídio Premeditado

 



A habilidade para viver em sociedade está diretamente relacionada à capacidade de engolir sapos. Os conflitos interpessoais são inerentes à vida social. Aborrecimentos, desaforos, provocações, frustrações, decepções, estresses etc. fazem parte da existência humana. Na realidade, a vida é a arte de engolir sapos[1]. Quem não engole sapos, tem grandes dificuldades para viver em comunidade.

A civilização existe para limitar os apetites naturais (instintos, desejos, vontades, taras e impulsos) dos humanos, sendo o principal deles o denominado killing instinct. A concretização deste (animus necandi) é a prova de que a pessoa não está apta a viver em sociedade.

A maior arma do sapiens é o cérebro. Eventuais conflitos devem ser resolvidos pela razão, palavra e pelo diálogo. A solução não está no uso de armas brancas ou de fogo. A violência não é o caminho.  

Todavia, há pessoas que diante de reveses e dissabores não engolem sequer rãs muito menos sapos e, por isso, envolvidas pela raiva, cogitam praticar o ato extremo, que é o ataque à vida de outrem.

Infelizmente, existe gente que rompe a cogitação e parte para a preparação e execução do crime. Pensa em matar, deseja matar e atua para matar outra pessoa. Aliás, não se deve esquecer que matar alguém é o fato mais sério de uma sociedade civilizada. Exterminar um ser humano é o auge do egoísmo, do ódio, da prepotência e da maldade.

Em muitos casos, com olhos voltados ao êxito na sua consumação, o sujeito premedita o crime de sangue.        

Segundo Houaiss, premeditar significa “armar, arquitetar, delinear, engenhar, esboçar, galivar, idealizar, maquinar, planejar, preparar, programar, projetar, tramar, urdir”[2].

A premeditação foi por Carmignani definida como “occidendi propositum frigido pacatoque animo susceptum, et moram habens atque ocasionem quaerens, ut crimen veluti exoptatum finem perficiat”[3].           

Não há dúvida de que a premeditação reclama a exasperação da pena em razão de maior reprovabilidade da conduta do agente, pois ficam patentes a frieza, obstinação e perversidade na prática do crime, qual seja, o ataque à vida alheia. Logo o homicídio preordenado revela maior intensidade do dolo.

Não bastasse isso, ao premeditar a prática do crime, o agente também visa dificultar a futura apuração dos fatos pelo Estado. Não raro, almeja desenhar o crime perfeito, sem deixar rastros, em busca da impunidade. E, por óbvio, tal circunstância deve militar em seu desfavor, ao ser sancionado.  

No Brasil, ao contrário do que ocorre em outros países[4], a premeditação não constitui circunstância agravante ou qualificadora do crime de homicídio. Mas isso não significa que a premeditação seja indiferente à aplicação e ao incremento da pena.

Segundo a lição de Aníbal Bruno, “a persistência na deliberação criminosa torna mais grave o dolo”[5]. No lugar de desistir, o agente persiste na ideia, busca os meios necessários, planeja a execução e escolhe o melhor lugar e momento para o ataque à vítima.

É inconteste que o homicídio premeditado é mais grave do que aquele que acontece sem premeditação. A persistência na sanha assassina, apesar da passagem do tempo, e o plano macabro traçado merecem maior reprovação.

Está claro no artigo 59 do Código Penal que a valoração das circunstâncias (v.g., premeditação) deve incidir na primeira fase do cômputo da pena, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.

Por isso, na dosimetria penal, uma vez detectada a premeditação, torna-se impositivo ao Judiciário o incremento da pena-base.

Cumpre anotar que o fato de o crime ser premeditado não se confunde com a qualificadora prevista no artigo 121, §2º, IV, do Código Penal (recurso que dificulte ou torne impossível a defesa da vítima). Ainda que possam parecer semelhantes, são figuras distintas. Logo, não há que se falar em bis in idem[6].

Portanto, a preordenação assassina leva à exasperação da pena em razão da maior censurabilidade da conduta. A premeditação é idônea para aumentar a pena-base, pois espelha a intensa culpabilidade do agente e demonstra a existência de circunstância desfavorável[7] no crime de homicídio, tentado ou consumado. É preciso individualizar a pena e punir com seriedade o homicídio - consumado ou tentado - premeditado para a necessária reprovação e prevenção do crime. Quem não engole sapo e, por conseguinte, faz uso de violência sanguinária e atenta de forma calculada e fria contra a vida de alguém deve ser séria e gravemente punido.

Por César Danilo Ribeiro de Novais, Promotor de Justiça do Tribunal do Júri.

 


[1] ALVES, Rubem. Palavras para desatar nós. Campinas: Papirus, 2011.

[2] HOUAISS, Antônio. Dicionário houaiss: sinônimos e antônimos. 2ª ed. São Paulo: Publifolha, 2008, p. 652.

[3] CARMIGNANI, Giovanni. Elementi di diritto criminale. Milano: 1863, p. 328.

[4] A exemplo da Itália que prevê a premeditação como agravante no homicídio e que impõe a prisão perpétua (“ergastolo” - arts. 575 e 577 do Código Penal italiano).

[5] BRUNO, Aníbal. Direito penal: pena e medida de segurança. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967, t. 3, p. 156.

[6] Cf. STJ: HC 276.357/SP e HC 204.144/TO.

[7] Esse é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (v.g. HC 118.267/PB, HC 87.028/MS e EDcl no REsp 252.613/SP)


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